03 Setembro 2012
Cardeal, arcebispo, biblista, escritor, reitor, jesuíta: a resposta que capta as peculiaridades da pessoa de Martini é obtida dizendo que ele foi um homem de Deus.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università San Raffaele, de Milão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quem foi Carlo Maria Martini? Pode-se responder dizendo que foi um cardeal durante um longo tempo papável, o arcebispo por mais de 20 anos de uma das maiores dioceses do mundo, o presidente durante uma década do Conselho das Conferências Episcopais Europeias.
Um biblista na origem da edição crítica mais creditada em nível internacional do Novo Testamento (The Greek New Testament), o reitor de duas das mais prestigiadas instituições acadêmicas do mundo católico (Universidade Gregoriana e Instituto Bíblico), um especialista pregador de exercícios espirituais para todas as categorias de pessoas, um jesuíta daquela gloriosa e discutida Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, um autor com uma vasta bibliografia em diversas línguas, e outras coisas ainda. Mas a resposta que capta as peculiaridades da sua pessoa é obtida dizendo que ele foi um homem de Deus.
A característica essencial da sua pessoa e da sua mensagem está toda contida no título do primeiro documento programático que ele dirigiu à diocese de Milão no início do seu episcopado em 1980: A dimensão contemplativa da vida. A esse objetivo, ele educou com os seus ensinamentos e ainda mais com toda a sua pessoa, com a voz, o olhar, o comportamento.
Aproximar-se de Martini significava, de fato, entrever o que de mais alto pode habitar no peito de um homem, ou seja, a inteligência que serve incondicionalmente ao bem e à justiça e que nunca cessa, nem mesmo diante dos absurdos e das tragédias da vida, de alimentar uma esperança singular no sentido e na direção da vida.
Se a expressão "nobreza de espírito", tão cara a Mestre Eckhart e a Thomas Mann, significa alguma coisa, trata-se da tentativa de descrever a experiência suscitada pelo encontro com pessoas como Martini, profundamente homens, mas também tão diferentes do que é simplesmente humano, totalmente transparentes, mas não isentos de silente mistério.
Martini foi um dos expoentes mais significativos do que é normalmente definido como catolicismo progressista, isto é, aquele ideal de ser cristão não contra, mas sempre e somente a favor da vida do mundo. Nisso, ele representou um dos mais belos frutos do Concílio Vaticano II e daquela estação que acreditava na renovação da Igreja em autêntica fidelidade ao Evangelho de Cristo, sem mais nenhum compromisso com o poder.
Agora que ele está morto, essa estação se afasta cada vez mais e se tornam cada vez mais raras, no mundo católico italiano, as vozes proféticas. Mas justamente a propósito de profecia, é necessário enfatizar a sua livre autodeterminação de enfrentar a morte de modo totalmente natural, sem sondas nasogástricas ou outros aparelhos do gênero disponibilizados pela técnica, na plena confiança de quem sabe que está para entrar naquela dimensão eterna que a fé chama de "casa do Pai".
Seja-me concedida, por fim, uma recordação pessoal daquele que foi o meu pai espiritual. Se eu, de fato, comecei a viver seriamente a fé cristã, foi principalmente por causa dele: como bispo da minha diocese, ele fazia resplandecer na minha jovem mente de estudante o ideal cristão. O que me conquistou, desde os seus primeiros discursos que eu lia ou escutava, foi a linguagem. Antes ainda das coisas que ele dizia, o que capturava a minha jovem atenção era o modo com que ele as dizia, totalmente desprovido de retórica eclesiástica, mas ao mesmo tempo tão diferente com relação à linguagem cotidiana, um modo de falar que sabia perceber um outro mundo sem ser "do outro mundo".
As suas palavras eram simples, mas severas, compreensíveis, mas profundas, elementares, mas arcanas, e sobretudo sempre referidas às coisas e às situações, nunca ditas por si mesmas, para impactar o auditório. Eu era pouco mais do que um menino e certamente, naquela época, não saberia dizer nada das características da sua linguagem, mas percebia dentro de mim a autenticidade existencial, sentia um estilo diferente, nada eclesiástico, mas nem por isso desprovido de sacralidade, ao contrário, a ponto de me fazer sentir que havia verdadeiramente algo de sagrado na existência concreta dos seres humanos que devia ser servida com retidão, integridade e amor. E isso Carlo Maria Martini fez, em fidelidade a Deus e aos seres humanos, por toda a sua longa vida.
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Martini, um homem de Deus. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU