04 Agosto 2012
O Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) estima que cerca de três milhões de brasileiros estejam envolvidos hoje em empreendimentos de economia solidária. Na Cúpula dos Povos, grande evento da sociedade civil realizado paralelamente à Rio+20, a economia solidária, também conhecida como ecosol, foi apresentada como uma das propostas concretas para a crise socioambiental vivida atualmente pelo planeta. O FBES vem batalhando desde o ano passado por uma lei da economia solidária que rompa com os vários entraves burocráticos que essa outra forma de fazer economia encontra. Nesta entrevista, realizada em parte durante a Cúpula dos Povos e complementada por email, Diogo Ferreira, da coordenação executiva do FBES, fala sobre a diversidade de empreendimentos que já existem e situa a economia solidária no campo da disputa por um outro modelo de desenvolvimento. Para ele, a ecosol ataca com um dos elementos fundamentais do capitalismo - a mais-valia.
A entrevista é de Raquel Júnia e publicada pelo sítio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz, 03-08-2012.
Eis a entrevista.
Durante a Cúpula dos Povos, os diversos movimentos sociais, organizações e redes têm apresentado soluções à crise do planeta. O que propõe a Economia Solidária?
Estamos trazendo a reflexão sobre a necessidade do trabalho autogestionário, a afirmação de que existem outras formas de trabalho que não o trabalho com carteira assinada. Outra questão importante que nós e outras redes estão trazendo é que existem outros modelos de desenvolvimento possíveis, que partam do protagonismo social, a partir do local, com base em relações horizontais. Trazemos essa proposta do que já está acontecendo na economia solidária no Brasil, como o caso das redes que estão se desenvolvendo, dos bancos comunitários, dos fundos rotativos, das experiências de formação e, para, além disso, procuramos refletir sobre a falta de democracia econômica. Não podemos aceitar que 99% da população fique à parte de qualquer decisão que a envolva do ponto de vista econômico, então, esse é um debate maior que a gente traz, junto com a valorização do trabalhador e da trabalhadora, seja no caso de uma produção mais justa e saudável, como é o caso da agroecologia que também é uma bandeira nossa, seja da luta por moradia, da valorização das mulheres, a necessidade de respeitar os povos tradicionais, um desenvolvimento que traga tudo isso com base em relações horizontais. Essa outra proposta de desenvolvimento tem que abranger uma diversidade muito grande de atores e ações, e o que os movimentos colocam aqui na Cúpula, não é com base apenas em utopias, mas sim no que estamos fazendo no dia a dia na cidade e no campo.
Você pode detalhar como funcionam as experiências de bancos comunitários e também a diversidade de iniciativas que fazem parte da economia solidária?
Os bancos comunitários são verdadeiras revoluções locais que acontecem onde a comunidade se empodera e fala: ‘nós também podemos fazer nossa própria moeda e nosso próprio sistema financeiro local', e atuam dentro da perspectiva do desenvolvimento local. Com a moeda social, a renda fica somente na localidade e tem também uma questão muito simbólica de afirmarmos que o dinheiro não é fim, mas é meio. A moeda é simplesmente um símbolo de troca. Quando falamos de banco comunitário, estamos falando não somente de um empreendimento, mas estamos falando justamente de um modelo de desenvolvimento justo e solidário numa localidade inteira, numa grande rede de economia solidária. Então, os bancos comunitários trabalham desenvolvendo e fomentando ações produtivas locais com base na economia solidária, na agroecologia, na segurança alimentar, com a moeda própria para garantir que a renda e a receita da própria comunidade favoreçam o seu desenvolvimento. A moeda é somente um mecanismo de troca e não uma finalidade em si mesma. A diversidade da economia solidária se dá em muitos campos, desde a produção de alimentos de todos os tipos, passando pelo artesanato e indo para produtos processados e manufaturados como malhas de algodão orgânico, sapatos, dentre outras coisas. Ou seja, a economia solidária hoje consegue atender boa parte de nossas necessidades básicas de consumo. E por falar em consumo, ainda há diversas experiências no Brasil de grupos de consumo responsável, que também são empreendimentos de economia solidária. Há ainda formas de organização variadas, ou seja, os empreendimentos de economia solidária podem ser associações, cooperativas, grupos informais, empresas recuperadas. Todos regidos sobre o sistema de autogestão. Muitos se organizam em redes de produção, comercialização e consumo. Estas iniciativas estão se norte a sul do país, e envolve pelo menos três milhões de pessoas no Brasil.
Quantas experiências de bancos comunitários já existem atualmente no país?
Cerca de 80 experiências. Até cinco anos atrás eram apenas 10 experiências e com o apoio do governo federal. Então a gente vê que quando o governo federal está disposto a fomentar outro modelo de desenvolvimento a resposta da sociedade é imediata. O grande desafio é exatamente quebrar a barreira do pensamento das pessoas de que o dinheiro é um fim em si mesmo, por isso essa discussão tem um aspecto pedagógico muito importante, de afirmarmos que a moeda social está ali para promover o desenvolvimento local, que vale tanto como qualquer outra moeda e que precisamos fomentá-la. O próprio nome já diz, é um banco da comunidade, então é a comunidade que define a sua taxa de juros, a quem vai apoiar, quanto vai disponibilizar, enfim, é um banco deles. Então eles dizem, por exemplo: ‘a gente quer fomentar a agricultura familiar e não a agroindústria', eles têm esse potencial. Ainda no campo das finanças solidárias, tem os fundos rotativos que também são uma grande revolução, que são os próprios movimentos se financiando, ou seja, guardam os recursos, investem em suas produções. Isso acontece não somente em dinheiro, há fundos rotativos de sementes, de animais, no caso dos agricultores familiares, ou seja, a comunidade percebe que se articulando e trabalhando junto pode resolver problemas específicos ou até mais gerais e macroestruturais, com relação ao financiamento da sua produção e outra forma de fazer economia. Por exemplo, a cooperativa que faço parte tem um fundo rotativo, a gente conseguiu através de doações um dinheiro para a compra de equipamentos e o dinheiro desses equipamentos tem que voltar para a gente investir em outras produções, mas não é investir por investir, mas sim investir com base numa visão de que temos que cada vez mais fechar esse ciclo de produção e consumo dentro dessa rede de economia solidária, de agroecologia, da agricultura familiar.
Há muita resistência a essas propostas, uma vez que elas acabam ameaçando a hegemonia do sistema financeiro?
Atualmente, a economia solidária tem crescido bastante no Brasil como um todo, é lógico que quebra paradigmas, mas não por uma questão idealista, mas pela necessidade real das pessoas. Como a economia ordinária, da ordem capitalista, não nasceu para incluir, as pessoas sentem necessidade de encontrar outras formas, e uma dessas formas é a economia solidária, por isso ela encontra algumas resistências, mas tem crescido bastante, porque vivemos num momento de crise onde as desigualdades e a exclusão se acentuam. E a economia solidária entende que todos os temas, como o da justiça ambiental, da agroecologia, da soberania alimentar, são complementares. No Encontro de Diálogos e Convergências, que foi um grande esforço que fizemos no ano passado, nós, de todas essas redes, nos colocamos todos na condição de humildade para construirmos algo em comum.
Como vocês avaliam hoje as políticas públicas no campo da economia solidária nas esferas dos executivos municipais, estaduais e federal?
Hoje cerca de um terço dos Estados tem leis estaduais de economia solidária. E uma quantidade muito pequena de municípios tem leis municipais. Para além das leis, que em sua maioria são bastante tímidas, as políticas públicas de economia solidária ainda são bastante tímidas, não conseguem promover saltos qualitativos na realidade dos EES [Empreendimentos de Economia Solidária] e não reconhecem a economia solidária como uma outra estratégia de desenvolvimento. Por isso estamos em campanha pela lei de iniciativa popular da Economia Solidária. Estamos em processo de coleta de assinaturas nos estados através dos fóruns. Muitos estão coletando assinaturas nas plenárias estaduais e em eventos onde a economia solidária está em pauta. Nossa meta é ter cerca de um milhão de assinaturas até dezembro deste ano.
A existência de uma Secretaria Nacional de Economia Solidária [Senaes] no âmbito federal fortalece os empreendimentos em economia solidária ou a existência da Secretaria por si só não significa muito? E o Conselho Nacional de Economia Solidária, qual a relevância desse mecanismo?
Temos que reconhecer a importância da Senaes para o movimento, está é uma conquista. Mas entendemos que ela apenas não basta. Precisamos de mais recursos, de mais estrutura para execução das políticas públicas, dentre outras coisas. Na II Conferencia Nacional de EcoSol foi deliberado que precisamos de um Ministério da Economia Solidária, e é este espaço institucional que buscamos. Mas nossa batalha maior é para que o direito ao trabalho associado e autogestionário seja não somente garantido, mas incentivado, a partir da valorização das iniciativas e saberes locais, dentro de uma outra forma de produção, comercialização e consumo. Ou seja, batalhamos por uma política pública que de fato reflita a importância desta outra forma de desenvolvimento que está acontecendo pelo Brasil.
O Conselho é um espaço importante de diálogo entre sociedade civil e governo, além de ser um dos mecanismos de pensarmos as confluências das políticas públicas. Mas não estamos satisfeitos com nosso conselho, achamos que ele deve estar num patamar maior, tal como o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar], e estar diretamente ligada a presidência.
Quem defende a economia solidária fala muito sobre o fim da relação entre patrão e empregado. Mas há um universo muito grande de trabalhadores assalariados que estão na trincheira da luta por condições dignas de trabalho e melhores salários, além de se envolverem também em outras lutas, como da justiça ambiental, por exemplo, e que se posicionam claramente contra o sistema capitalista. Como a economia solidária suplanta essa relação de patrão e empregado e pretende dialogar com esses trabalhadores?
Antes de afirmar a questão do trabalho associativo, é importante deixar claro que a economia solidária não defende uma precarização do trabalho, muito pelo contrário, defendemos uma emancipação a partir do trabalho com base no trabalho associativo e no princípio da autogestão. O trabalho assalariado não rompe com a questão do opressor e do oprimido, nós queremos romper com isso propondo outra forma de trabalho onde os trabalhadores sejam donos de seu próprio negócio de forma coletiva. Muitos acreditam, sobretudo pessoas de outros países, que o Brasil, por esse modelo de desenvolvimento que está adotando, tem crescido bastante e está em outro patamar, mas o que a gente vê é que as favelas estão tão grandes quanto em outros momentos, que as condições de desigualdade social não contribuíram para alterar nenhuma estrutura social de poder. Então, a gente tem que romper com essa estrutura e apresentamos como proposta o trabalho associativo, baseado na autogestão, quando é possível romper com a mais-valia, que é um dos males e um dos princípios basilares da economia capitalista.
Você disse que algumas experiências de economia solidária revolucionam as relações de trabalho e renda das populações. Há quem atribua a economia solidária um certo conformismo com o sistema capitalista, atuando a sua margem, mas sem necessariamente se organizando para derrubá-lo. Como você vê essa polêmica? A economia solidária é revolucionária no sentido de almejar o fim do capitalismo e a construção de outro sistema?
Este assunto é complicado e mesmo no movimento há divergências sobre ele. O fato é que o capitalismo permeia a vida de todos nós, a economia solidária é uma forma de contestação deste sistema por dentro dele com base em suas contradições e contestando um elemento central nele que é a mais-valia. Além disso, ela consegue ser uma economia mais múltipla do que o capitalismo, pois envolve a economia mercantil, não mercantil, etc. Se vai derrubá-lo, ou não, somente a caminhada irá dizer e os contextos que vão surgir.
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‘O trabalho assalariado não rompe com a questão do opressor e do oprimido’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU