Por: André | 28 Junho 2012
“Toda esta cena (...) me permite confirmar, a partir de um lugar pragmático e ideológico, que a governabilidade é um tópico característico da esfera secular (...). No melhor dos sentidos, Lugo reage como um religioso em um terreno onde a pretensão das manifestações políticas e seu vínculo com as estruturas sociais devem jogar outro tipo de reação”, escreve o rabino argentino Daniel Goldman, em artigo publicado no jornal Página/12, 26-06-2012. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Como todas as sextas-feiras à tarde, fui ao serviço religioso da minha congregação. Antes de sair de casa, observei pela televisão que estava para começar a sessão no Senado do Paraguai na qual se julgaria a atuação do presidente Fernando Lugo. Quando voltei, deparei-me com o golpe de Estado consumado e a imagem de Federico Franco já fazendo o juramento.
Este sinal de celeridade dos tempos que correm (num duplo sentido) me leva, na minha humilde condição, a refletir de maneira cíclica e breve sobre as relações entre religião e poder. Sem querer meter a cabeça entre rebanhos e pastores que não me pertencem, em outras latitudes, pensadores como Karl Barth e Michael Waltzer (para citar aqueles que me são mais significativos) e em nosso país, especialistas como José Míguez Bonino e Rubén Dri, estudaram de um modo profundo este tópico. Estes autores analisaram desde um lugar conceitual o intrincado vínculo entre profecia antiga, o sacerdócio, os reinados e as hoje variadas e versáteis formas do entramado complexo de processos políticos, apropriações de linguagens e significações culturais e de poder.
A tradicional dupla religião-Estado adquiriu com Lugo, em um princípio, uma forma e uma variante de ilusão libertadora, própria de uma cosmovisão religiosa levada a cabo por um bispo ativo e comprometido com os pobres e os mais necessitados. Oriundo de um terreno com um tipo doutrinário imbuído de argumentos e elementos relacionados à Teologia da Libertação, imaginamos que levaria a quebrar o paradoxo entre o mundo espiritual e o terrenal (para defini-lo de alguma maneira), acercando as brechas de justiça social em um continente cujas diferenças obscenas escandalizam qualquer pessoa que de maneira consciente se identifica como crente do Transcendente.
E como sabemos agora, ciladas, escândalos e erros induzidos desembocaram em uma entrevista coletiva de um Lugo chamativamente sorridente, que dava a impressão de aceitar os ardis da legalidade institucional sobre a legitimidade de seu próprio lugar, como se fosse uma sorte providencial místico-religiosa na qual o destino o colocou em um espaço e um instante teúrgico, e no qual só se atreveu a pronunciar como enunciado geral as máfias e o narcotráfico, sem citar nomes nem dados. Algo como uma espécie de anúncio críptico-profético, totalmente desvinculado de uma denúncia política com peso, própria do que se necessitava nesse momento.
Toda esta cena, à qual se acrescenta a celeridade ajustada à imediatez e à superficialidade do tempo presente, me permite confirmar, a partir de um lugar pragmático e ideológico, que a governabilidade é um tópico característico da esfera secular, como afirma Michael Lerner. No melhor dos sentidos, Lugo reage como um religioso em um terreno onde a pretensão das manifestações políticas e seu vínculo com as estruturas sociais devem jogar outro tipo de reação.
Há algum tempo escutei meu amigo Fortunato Mallimaci, a quem considero o maior pesquisador das relações entre religião e poder, que “cada vez que um religioso quer ocupar o espaço partidário, perde a identidade e fica preso a outra lógica que não é a sua propriamente. Portanto, desvanece-se a promessa emancipadora e o projeto”. Para pensar, não para nos encher de esperança messiânica, nem cometer mais erros.
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Lugo, religião e governabilidade. Artigo de Daniel Goldman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU