08 Junho 2012
No artigo abaixo, o ex-provincial dos Irmãos de Maryknoll, Jon Sivalon, afirma que a ação contra a Leadership Conference of Women Religious (LCWR) e outras recentes ações do Vaticano "deve ser vistas como 'incursões iniciais de choque e de pavor' para suavizar as áreas mais fortes de resistência" antes que um grande ataque tenha início.
A reportagem é de Robert McClory, publicada no sítio do jornal National Catholic Reporter, 04-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Esse grande ataque está previsto para outubro de 2012", diz ele, "com a abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização para a Transmissão da Fé Cristã". O alvo, diz Sivalon, é a cultura moderna, que o Papa Bento XVI está determinado a desacreditar através de "uma hermenêutica do entrincheiramento".
O artigo foi publicado originalmente na página da organização de apoio às religiosas dos EUA I Stand With the Sisters (www.istandwiththesisters.org).
Eis o texto.
Vaticano declara o "Ano do Ataque"
Por John C. Sivalon, M.M.
Sob o pretexto de um "Ano da Fé", o Vaticano lançou um ataque total contra qualquer teologia ou interpretação do Vaticano II baseada no que ele chama de "hermenêutica (interpretação) da ruptura". Esse ataque teológico está articulado no documento conhecido como Porta Fidei, escrito por Bento XVI e mais especificado em um documento intitulado Nota com indicações pastorais para o Ano da Fé, que foi elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé.
Ambos os documentos são citados pelo cardeal Levada em sua declaração sobre a avaliação doutrinal da Leadership Conference of Women Religious (LCWR). A base lógica para essa avaliação e outras medidas punitivas que foram feitas nos últimos meses (Cáritas Internacional, instituições de ensino e as escoteiras) devem ser entendidas no contexto mais amplo desse especial "Ano do Ataque".
O verdadeiro cerne da questão de acordo com a Nota é uma "correta assimilação" do Vaticano II contra "interpretações errôneas". Bento XVI gosta de se referir a essas interpretações como sendo baseadas em uma "hermenêutica da descontinuidade", enquanto se refere à sua própria interpretação como sendo baseada em uma "hermenêutica da renovação". Na verdade, rótulos melhores para estas hermenêuticas, respectivamente, são uma "hermenêutica da missão" contra a "hermenêutica do entrincheiramento" de Bento XVI.
A hermenêutica da missão vê nos documentos do Vaticano II uma tentativa por parte da Igreja de redescobrir em seu passado os núcleos de compreensões novas e estruturas eclesiais novas que respondam mais autentica e relevantemente ao que o Concílio chamou de mundo moderno. Essa hermenêutica vê os Padres Conciliares confirmando a tradição como um fundamento sobre o qual a fé pode construir e crescer continuamente enquanto o seu contexto muda. Ela também vê Deus continuamente presente na história e na cultura, oferecendo gentilmente novas percepções para compreender e interpretar a plenitude da revelação.
A hermenêutica do entrincheiramento, por outro lado, vê nos documentos do Vaticano II a reafirmação de doutrinas ossificadas em uma linguagem que pode ser entendida pelo mundo moderno. A hermenêutica do entrincheiramento se refere à tradição como um muro que funciona para deter compreensões errôneas. Ela também tende a ver o moderno contexto do mundo negativamente, muitas vezes atribuindo a ele rótulos como secularismo, relativismo ou pluralismo. Como Bento XVI diz, "enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade...". A hermenêutica do entrincheiramento, portanto, anseia pelo passado, por uma era idealizada de cristandade.
Assim, a ação contra a LCWR e as outras ações contra vozes leais de cristãos fiéis, abertos para discernir a sabedoria de Deus na cultura moderna, devem ser vistas como incursões iniciais de choque e de pavor para suavizar as áreas mais fortes de resistência, antes que o verdadeiro ataque comece. Esse grande ataque está previsto para outubro de 2012, com a abertura do Sínodo dos Bispos sobre a "Nova Evangelização para a Transmissão da Fé Cristã". O primeiro documento de trabalho (Lineamenta) para esse sínodo estabelece claramente o alvo da "Nova Evangelização".
O alvo é claramente a cultura moderna. De acordo com o documento, o mundo moderno é sintetizado por uma cultura do relativismo, que, afirma-se, infiltrou-se até mesmo na vida cristã e nas comunidades eclesiais. Os autores afirmam que as suas "sérias implicações antropológicas (...) colocam em questão a própria experiência humana básica, como a relação homem-mulher, o sentido da procriação e da morte". Associado a esse fenômeno, afirma o documento, está a enorme mistura de culturas, resultando em "formas de contaminação e de erosão das referências fundamentais da vida, dos valores pelos quais se dava a vida, das próprias ligações através dos quais os indivíduos estruturam as suas identidades e acedem ao sentido da vida". Bento XVI, em outros lugares, rotulou isso de pluralismo, completando assim a sua trilogia do endemoninhado: secularismo, relativismo e pluralismo, enquanto ele sonha com uma cultura da Europa medieval restabelecida e romantizada.
Em claro contraste, os institutos de mulheres religiosas exemplificam dramaticamente a hermenêutica da missão: elas saíram dos "hábitos" que as separam do mundo; enfrentam aos desafios de abraçar a presença de Deus na cultura moderna; e lutam fielmente sendo um sinal autêntico e claro do amor de Deus pelo mundo. A avaliação contra elas é ultrajante pela sua arrogância paternalista e pelo seu patriarcado. Mas também é claro que ela tem a ver com muito mais: a dramática fissura dentro da Igreja Católica Romana com relação à interpretação do Vaticano II e o abraço (ou a falta de) à presença de Deus na cultura moderna.
Nesse ataque, o que é mais pernicioso, além dos efeitos sobre as vidas das pessoas imediata e dramaticamente visadas, é a apropriação de conceitos desenvolvidos por aqueles que operam a partir de uma hermenêutica da missão por parte daqueles que defendem uma hermenêutica do entrincheiramento, que, então, redefinem e usam esses conceitos para defender e apoiar o seu ataque. Três exemplos rápidos disso se encontram na declaração do cardeal Levada sobre a avaliação doutrinal da LCWR e na própria avaliação doutrinal.
Primeiro, Levada afirma que o objetivo primordial da avaliação é ajudar a implementar uma "eclesiologia da comunhão". Os teólogos que desenvolveram essa eclesiologia basearam suas reflexões na ênfase do Vaticano II sobre a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo ou Povo Peregrino. Todas essas imagens foram empregadas pelo Vaticano II para ampliar a compreensão da Igreja como algo mais do que a hierarquia. Nenhum desses paradigmas imaginam a unidade como algo fabricado por meio da força ou da obediência à doutrina. Ao contrário, a unidade é vista como algo que flui do diálogo e do discernimento comum enquanto o Povo de Deus luta junto para ser testemunhas fiéis e autênticas do Amor que se autoesvazia. Quem mais do que esses institutos de mulheres religiosas resume a comunhão fundamentada na fé e vivida como amor que se autoesvazia?
Em segundo lugar, a avaliação doutrinal sobre a LCWR define o caráter sacramental da Igreja quase que exclusivamente como hierarquia patriarcal. Novamente, o documento da avaliação usurpa uma compreensão da Igreja do Vaticano II como sacramento e o reformula. O Vaticano II, por outro lado, postula a Igreja em sua inteireza como sacramento do Reino de Deus.
Finalmente, no período pós-Vaticano II, muitos teólogos de várias partes do mundo desenvolveram a imagem da Igreja como Profeta. Eles estabeleceram essa visão sobre uma opção preferencial pelos pobres, uma crença na salvação como libertação e a necessidade de ser crítico não apenas das estruturas do mundo, mas da própria Igreja e do seu papel no suporte a situações de opressão e denegrimento humanos. No entanto, o documento da avaliação nega qualquer possibilidade de profecia voltada à própria hierarquia da Igreja ou separada dessa hierarquia. Essa abominável desconsideração pelos profetas bíblicos e pela seu forte posicionamento contra os sacerdotes, reis e rituais de fé vazios, de alguma forma, não é percebida como uma ruptura com o passado ou com a tradição por parte daqueles que operam a partir dessa hermenêutica do entrincheiramento.
Como católicos modernos que celebram o 50º aniversário da abertura do Vaticano II, nós entramos em um novo capítulo da história da Igreja. O Concílio que foi convocado para abrir as janelas está sendo agora reinterpretado como persianas fechadas, protegendo a Igreja dos ventos com força de vendaval de um mundo em busca de autenticidade espiritual. Embora se afirme que será um momento de renovação, o "Ano da Fé" está realmente dedicado à idolatria da doutrina, do poder e da hierarquia. As irmãs em seu serviço comum à Igreja e ao mundo, que não só fazem um voto de pobreza, mas que realmente vivem esse voto sem privilégios, status ou acumulação de riquezas, são um vívido e profético contraste com a inautenticidade do chamado ao entrincheiramento disfarçado de renovação.
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Maior ''ataque'' virá em outubro, alerta ex-provincial maryknoll - Instituto Humanitas Unisinos - IHU