Por: Jonas | 09 Março 2012
O ex-secretário geral (1995-2004) da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), Rubens Ricupero, prognosticou que a recuperação da crise econômica demorará quatro ou cinco anos.
Recupero, que ostenta uma extensa carreira na diplomacia brasileira, onde também desempenhou funções ministeriais, estimou que a paralisação de numerosas negociações multilaterais, como a Rodada de Doha na Organização Mundial do Comércio (OMC), se prolongará por um tempo.
A causa dessa paralisação está relacionada com um fenômeno em curso: o deslocamento do poder mundial do Atlântico Norte para o Pacífico asiático. Nessa circunstância, é difícil obter consenso sobre temas densos nos fóruns multilaterais, disse Ricupero.
A entrevista é de Gustavo Capdevila, publicada no sítio IPS, 07-03-2012. A tradução é do Cepat.
Confira a entrevista.
Qual é seu diagnóstico da situação global?
Num curto prazo, nos países industrializados não acredito que possa existir muita esperança de uma recuperação. Os europeus ainda não possuem sequer uma estratégia para lidar com os problemas dos países endividados. Será necessário muito sofrimento antes de chegar a isso. Na Alemanha, o país que conta, o crescimento praticamente desapareceu. Em outros há recessão, como na Itália e Holanda. Parece que este será outro ano perdido para a Europa.
E nos Estados Unidos?
Dependerá muito da eleição presidencial de novembro. Não se pode fazer uma predição, mas eu me arriscaria a dizer que o presidente Barack Obama conquistará sua reeleição. A economia estadunidense começa a apresentar indícios de recuperação, lenta e insuficiente na criação de emprego, porém em condições de ganhar algum ritmo e conteúdo nos próximos anos.
Um desalentador panorama, então.
Neste e no próximo ano, não teremos grandes diferenças em relação à dicotomia que vivemos nos últimos tempos. A economia do Sul segue crescendo, especialmente na China, na Índia e em outros países asiáticos e, em consequência, também nos países latino-americanos e do Oriente Médio. Não vejo no horizonte nenhum grande perigo de uma catástrofe como a de 2008, com a queda da Lehman Brothers, nem uma recuperação muito encantadora.
Será uma longa espera?
Como ocorreu nos anos de 1930, essa recuperação demorará. A plena recuperação da economia mundial, como um todo, não será observada em menos de quatro ou cinco anos.
Na América Latina também?
Não. Isso não quer dizer que outras regiões não possam recuperar-se antes. Deve-se levar em conta que nos anos de 1930, exceto alguns casos como da Argentina, que sofreu mais por sua dependência das exportações para a Grã-Bretanha e pela sua decisão de tentar pagar a dívida, os demais países latino-americanos tiveram uma boa situação, como Colômbia, Brasil, Chile, Peru e México.
O panorama atual é parecido?
Hoje, vejo duas diferenças a nosso favor. Primeiro, em 1930 não existia o atual fenômeno das economias da China, Índia e outros países asiáticos. O mundo dependia basicamente dos países industrializados. A segunda diferença é que nós, latino-americanos, nos anos de 1930 já começávamos com um endividamento exterior muito forte. Dessa maneira, a grande maioria dos países da região não podia pagar seus compromissos.
Desta vez, estamos começando a década em uma situação incomparavelmente melhor. Temos boas reservas, baixo nível de dívida e uma situação interna mais favorável em termos de crescimento, de emprego e de melhores índices sociais. Refiro-me à situação em países como Brasil, Chile, Argentina e Peru, não tanto àqueles que dependem mais diretamente do mercado dos Estados Unidos, os países do norte da região.
As negociações internacionais tropeçam com sérias dificuldades em questões como desarmamento, comércio e ambiente. Como você vê o sistema multilateral?
De maneira muito negativa, porque é certo que em praticamente todos os grandes temas verifica-se uma paralisação.
Quais as razões?
Existem dois fenômenos que se sobrepõem. Um é de conjuntura: a crise econômica, que mais cedo ou tarde terá que desaparecer. Outro é mais intenso: há anos estamos assistindo uma transferência, dos eixos da economia mundial e da demografia mundial, do Atlântico Norte para o Pacífico asiático.
Esse é um fenômeno que o grande historiador francês, Fernando Braudel (1902-1985), chamou de uma tendência secular, de longo, longuíssimo prazo, como foi a mudança do eixo do comércio mundial do Mediterrâneo para o Atlântico no século XVI, no momento das grandes descobertas.
Esse deslocamento do poder é irreversível?
Não irá parar. Pelo contrário, a crise de conjuntura está acelerando-o e reforçando-o. Na medida em que os Estados Unidos se fragilizam economicamente, é claro que isso favorece muito a acumulação de reservas e de poder financeiro de países como a China. São esses momentos muito raros da história, que ocorrem uma vez a cada dois ou três séculos, quando acontece uma mudança na distribuição mundial. E, nesses momentos, é difícil que haja consenso para enfrentar as questões mais densas nos fóruns multilaterais.
Apresente-me mais detalhes desse fenômeno.
Até recentemente, o mundo tinha os Estados Unidos como o árbitro que decidia. Era a potência hegemônica que garantia a ordem econômica liberal. Desempenharam esse papel desde os fins da Segunda Guerra Mundial, com a reorganização do sistema econômico e financeiro – a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do antecessor da OMC, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) – e do sistema político por meio da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).
Durante o longo período da Guerra Fria, os Estados Unidos continuaram sendo o país que garantia a produção de resultados nas grandes conferências, das quais surgiram os chamados regimes internacionais. Tanto é assim, que quando os Estados Unidos se abstinham, como no caso do direito do mar, o assunto não caminhava.
Qual é a nova realidade?
Hoje, os Estados Unidos começam a reavaliar suas posições, a sentirem-se mais chamados aos problemas internos, a mudarem sua estratégia militar. Os estadunidenses estão transferindo a ênfase do Oriente Médio, dos temas islâmicos, para a Ásia. E começam a considerar que o grande adversário estratégico, em longo prazo, é a China. Não é a Al-Qaeda, nem os islâmicos.
Então, nesse processo não aparece ninguém que pode desempenhar esse papel de árbitro. É o que se percebe nos episódios da Síria no Conselho de Segurança da ONU e, também, em outras grandes negociações internacionais.
É uma mudança de poder iminente?
Não. Num curto prazo, eu não vejo possibilidade de mudança. Caso Obama seja reeleito, estará mais atento aos problemas internos, como vem fazendo. E os chineses e indianos ainda possuem desafios muito grandes em seus países. Eles não estão prontos, nem querem assumir o peso dessa responsabilidade.
É um momento muito difícil, que corresponde à definição de crise do grande pensador marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Gramsci dizia que a crise é o momento intermediário em que o mundo velho acaba de morrer e o mundo novo tem dificuldade para nascer. Nessa etapa intermediária, todo tipo de sintoma de morbidez sobe à superfície.
É o que estamos vivendo. Inclusive, o fato de que ainda os países industrializados começam a discutir a crise do capitalismo. Porém, não encontram uma saída porque são as mesmas pessoas que criaram a crise e seguem dando as cartas.
Você acredita que haverá alguma reação?
Teremos uma história turbulenta nos próximos anos. Não no sentido de um conflito mundial, mas nesse tipo de coisas que estamos vivendo: insatisfação, indignação, desejo de mudança. Isto não é negativo, porque nunca se deve perder de vista que a história se move nos momentos de dificuldades.
Não chego ao ponto de dizer, como os marxistas, que a violência é move a história, mas a insatisfação sim. Ela é a raiz das grandes mudanças mundiais, como a Revolução Francesa, a Reforma religiosa e o Renascimento. Nelas havia uma insatisfação com a vida que se levava.
E na atualidade?
Essa insatisfação social pode ser altamente criativa. É perturbadora para os que vivem nesses momentos, pois é algo que questiona todos os valores, todos os hábitos, porém é criativa. Não acredito que seja ruim que as pessoas não se sintam satisfeitas com um sistema baseado na injustiça e na falta de igualdade. É necessário rebelar-se contra o que os banqueiros têm feito e seguem fazendo. Por isso eu digo: viva os homens e as mulheres que lutam por uma economia com mais equidade, justiça e equilíbrio. Não se deve resignar com isso.
A crise pode afetar a sobrevivência das organizações multilaterais?
Particularmente, a ONU demonstrou uma grande flexibilidade. Eu cito dois episódios. Em 1971, quando a China comunista foi admitida e passou a ser membro permanente do Conselho de Segurança, dizia-se então, na época posterior à Revolução Cultural, que seria produzida uma grande instabilidade no mundo. E não foi o que ocorreu.
O segundo episódio: o fim do comunismo produziu uma mudança total no mapa do mundo. A União Soviética se desfez não sei em quantos pedaços. A federação iugoslava também. E tudo isso ocorreu com um grau de violência relativamente contido, exceto o caso dos iugoslavos, por outras razões.
Em ambos os momentos o que se viu é que as organizações, em especial as da ONU, souberam acomodar-se às mudanças. O ruim é quando a organização é tão rígida que não pode ajustar-se e perece. A ONU tem essa flexibilidade, o que às vezes causa muita perplexidade e insatisfação.
Você acredita que as organizações financeiras, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC vão sobreviver intactos?
Não. Eu espero que esse movimento de mudança modifique não somente a economia interna dos países, num sentido que a afaste desse fundamentalismo de mercado, como também mude as instituições que representaram esse espírito fundamentalista. E para isso, o papel principal deve corresponder às pessoas no mundo – não somente no Sul – que possuem consciência desse problema, de que não se pode continuar com uma organização que leva para um crescimento mais elevado da desigualdade.
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“A indignação social pode ser muito criativa”, segundo Rubens Ricupero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU