Por: André | 23 Fevereiro 2012
“Temos que agradecer a John Hick que, com seu estudo hermenêutico dos Evangelhos e sua interpretação metafórica, abrindo passagem entre a folhagem, tenha sido capaz de chegar ao tronco das verdades reveladas e nos oferecer uma interpretação religiosa de Jesus de Nazaré que possa conviver com os conhecimentos científicos atuais”, escreve José Luis Servera, em artigo publicado no sítio Atrio, 21-02-2012. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Por ocasião do recente falecimento do teólogo presbiteriano John Hick quero expressar nestas linhas o meu agradecimento por sua obra, que significou para mim uma verdadeira passagem de esclarecimento, no meu itinerário de busca de quem foi e o que significa realmente, para os que nos chamamos cristãos, Jesus de Nazaré.
Na busca do sentido da vida de Jesus de Nazaré para um cristão atual, influíram significativamente vários teólogos, ou melhor dito, crentes. A primeira chacoalhada me foi dada há anos por Robinson com seu livro Sincero para com Deus, seguido por Spong com A ressurreição, mito ou realidade, Joseph Moingt com O homem que vinha de Deus, Hans Küng com Ser cristão, Edward Schillebeeckx com Jesus, a história de um vivente e o mais recente, que descobri tarde, e ao qual estou profundamente agradecido, John Hick, com A metáfora de Deus encarnado.
A fé é um caminho de aprofundamento em nós mesmos, como afirma Marcel Légaut em seu livro O homem em busca de sua humanidade, descobrimento e aproximação à figura de Jesus de Nazaré e estilo de vida, fruto e consequência de toda esta busca e reflexão. Todas as reflexões que John Hick faz não são apenas fruto de um pesquisador, mas também, e sobretudo, de um crente que busca a verdade de sua crença, o poder continuar crendo em um mundo atual com uma ciência muito desenvolvida que nos permite analisar com mais precisão os textos antigos e nos coloca problemas para a compreensão atual de nossa fé.
John Hick representa uma postura teológica que hoje não se pode ignorar e cuja obra já é clássica para expressar esta postura. As demais obras, de outros teólogos que estão em sua linha, podem ser consideradas complementares. A obra de Hick também é atual no problema do debate sobre os paradigmas teológicos, defendendo já em seus começos o paradigma pluralista, que hoje pouco a pouco vai se impondo na maior parte da teologia atual.
John Hick lançou seu tema em 1977, já há mais de 30 anos, buscando voltar ao sentido originário da cristologia, libertando-a da mistificação metafísica. Hick, aplicando a metáfora na cristologia, pretende distanciar-se da metafísica. Considera a metáfora o modo de expressão insubstituível, necessário e único para expressar aquilo que nenhuma outra forma de linguagem tem o poder de veicular, de onde o título de um de seus livros – A metáfora de Deus encarnado – para explicar quem foi Jesus de Nazaré.
A metáfora de Deus encarnado não é um livro qualquer, nem para qualquer um. Ao ler o livro, se alguém nunca se colocou o tema e for crente, a primeira impressão é de um choque ou de uma comoção profunda. Nele, enfrenta problemas de fé e ciência, fé e metafísica, diferentes tipos de paradigmas teológicos exclusivo, inclusivo e pluralista com todas as suas consequências. Afirma que a ideia de encarnação se entende melhor e com mais congruência de um modo metafórico e não literal.
Segundo Hick, Jesus corporificou, ou encarnou, o ideal do que pode chegar a ser a vida humana vivida em resposta crente a Deus, de forma que Deus pode agir através dele e que Jesus, desta maneira, deu corpo a um amor que é a verdadeira resposta humana ao amor de Deus; que perfeitamente podemos ter Jesus – assim entendido – como nosso Senhor, aquele que tornou Deus real para nós, e cuja vida e ensinamentos nos desafiam a viver na presença de Deus; e que um cristão não tradicional, baseado nesta nova compreensão de Jesus pode ver-se a si mesmo como um a mais entre outras diferentes respostas humanas à Realidade última que chamamos Deus, e pode servir para o desenvolvimento da comunidade mundial e para a paz no mundo melhor do que um cristão que continua se olhando a si mesmo como o lugar da revelação final e o provedor da única salvação possível para todos os seres humanos.
O mundo da teologia está experimentando atualmente uma onda de grande atividade no tema central da cristologia: a discussão sobre o significado religioso de Jesus Cristo. Esta discussão produziu naquele momento uma réplica semelhante àquela causada pelo livro de Robinson Sincero para com Deus, 14 anos antes.
Nem sempre nos damos conta de que Jesus mesmo pudesse ter ignorado estas colocações. Ele viveu uma experiência tão intensa e comunicadora do poder da graça divina, que suas palavras e sua vida continuamente tornavam real a presença divina para os que encontravam inspiração em sua pessoa. Ele pensava que o Reino de Deus viria num futuro próximo e que Deus estava de uma maneira especial em seu próprio ministério. Dentro deste universo conceitual, “Jesus se via a si mesmo como o último mensageiro antes da restauração do Reino”. Contudo, o profeta escatológico Jesus foi se transformando, no pensamento cristão, no Deus Filho baixado do céu para viver uma vida humana e nos salvar por sua morte redentora. Em torno deste tema central, se desenvolveu um corpo de crenças sobre a natureza pecadora e a culpa original da humanidade: uma longa história de divinas intervenções milagrosas ao longo da história judaica, o nascimento virginal de Jesus, seus milagres, sua assombrosa morte, a ressurreição corporal e a ascensão; a Igreja como corpo dos redimidos, e mais adiante, o céu, o inferno e o purgatório.
Este conjunto de ideias, que forma o quadro em cujos termos os cristãos entenderam durante muito tempo o universo e o lugar que nele ocupavam, somente começou a ser questionado seriamente a partir do século XVII, à medida que começava a tomar forma a cosmovisão científica moderna. Esta produziu uma dissonância cognitiva que, para o final do século XIX, havia criado um abismo entre aqueles que gradualmente chegaram a aceitar os novos conhecimentos – entre os quais a evolução biológica e o estudo histórico-hermenêutico das Escrituras foram os temas mais polêmicos – e aqueles que, pelo contrário, como a Igreja Hierárquica, reagiram com uma renovada adesão à sua cosmovisão ameaçada.
Para dar apenas um exemplo relevante para o tema deste livro: por mais de mil anos o dito “Extra Ecclesiam nulla salus” foi um dogma cristão firmemente defendido. No entanto, hoje muito poucos católicos se atreveriam a defender tal afirmação. Portanto, não se pode supor razoavelmente que as doutrinas teológicas não possam mudar. Na realidade, a totalidade do corpo doutrinal foi se desenvolvendo, algumas vezes mais devagar e outras mais rapidamente, ao longo da história do cristianismo. Do mesmo modo as propostas atuais que propugnam novas mudanças devem ser consideradas cada uma delas por seu fundamento e características próprias.
Esta nova conscientização pública é a que minou a credibilidade do sentido tradicional e literal da superioridade cristã e questionou, portanto, o núcleo teológico do dogma, segundo o qual Jesus de Nazaré era Deus encarnado em sentido metafísico.
Temos que agradecer a John Hick que, com seu estudo hermenêutico dos Evangelhos e sua interpretação metafórica, abrindo passagem entre a ramagem, tenha sido capaz de chegar ao tronco das verdades reveladas e nos oferecer uma interpretação religiosa de Jesus de Nazaré que possa conviver com os conhecimentos científicos atuais.
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John Hick e sua cristologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU