19 Fevereiro 2012
A Igreja, que nunca encontrou um verdadeiro acordo com a "Modernidade" enquanto esta era forte, poderá entrar em sintonia com ela agora que é fraca, "Modernidade líquida" ou "Pós-modernidade", caracterizada pelo fim das ideologias e pelo "fim das certezas"?
A opinião é do historiador italiano Franco Cardini, professor do Istituto Italiano di Scienze Umane (Sum), em artigo para o jornal Europa, 07-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Voltar aos e sobre os princípios primeiros, abandonar a baixa cozinha das tensões cotidianas e fazer-se as perguntas de fundo, reexaminar serenamente a história, embora assumindo um ponto de vista decidido e talvez "incômodo" em uma matéria em que, quer nos declaremos católicos ou "laicos", não há pontos de vista cômodos (salvo os do avestruz, enfiar a cabeça debaixo da terra).
À parte de alguns enfants terribles profissionais e com uma grande licença tacitamente reconhecida para serem tais – aqueles "profissionais do anticonformismo" que acabam sendo conformistas ao contrário –, na Itália, não parece ser possível.
Sentem isso com serenidade e rigor um diplomata e estudioso já com mais de 80 anos, Sergio Romano, que muitas vezes nos surpreendeu com os seus comentários no Corriere della Sera, que assumiam uma posição especularmente contrária àquilo que esse jornal defendia na primeira página (por exemplo, no tempo das agressões no Afeganistão e no Iraque, em 2001 e 2003) e um jornalista com pouco mais de 40 anos, Beda Romano, com um livro a quatro mãos que realmente retoma a tradição "cortante" da coleção "Le Spade" da editora Longanesi: La Chiesa contro. Dalla sessualità all’eutanasia tutti i no all’Europa moderna [A Igreja contra. Da sexualidade à eutanásia, todos os nãos à Europa moderna] (Milão, Longanesi, 2012, 247 páginas).
Um livro cuidadosamente distinguido em duas partes, cujo responsável por causa uma delas é identificável com precisão: Sergio para a parte propriamente histórica (Le trincee della Chiesa [As trincheiras da Igreja], p. 9-82), Beda para a parte mais propriamente sociológica e documental (I nuovi costumi sessuali e la rivoluzione bioetica [Os novos costumes sexuais e a revolução bioética], p. 85-231).
Na realidade, da leitura do livro, tem-se a impressão de um trabalho informativo muito exigente, de estrutura ampla e totalmente centrado no presente, precedido por uma longa introdução histórica. Sergio Romano parte, como é certo e previsível, desde do alvorecer da "secularização": que, sem dúvida, tem uma pré-história necessária (a Reforma protestante, o cuius regio eius religio, o "jurisdicionalismo"), mas que conhece um momento fundamental com o nascimento do Estado constitucional, isto é, com o momento em que se reconhecia ao poder uma fonte diferente da Graça de Deus. Uma revolução lenta e difícil, marcada por muito tempo por uma fase intermediária e, se quisermos, ambígua, durante a qual se teria governado "pela Graça de Deus e pela vontade da nação", com uma difícil e às vezes retórica pretensão de que as duas coisas caminhassem realmente lado a lado.
Através das várias fases da delicada relação entre poder secular e Igreja Católica na Europa (e com a necessária diferença entre países de maioria católica, países de maioria protestante, países de confissão mista e países de metabolismo laico mais rápido: tomem-se como respectivos exemplos a Espanha, a Inglaterra, a Suíça e a França), são recordados a laboriosa convivência entre Igreja e catolicismo liberal (na Bélgica, na França do Segundo Império), a "pacífica" Suíça com a sua "guerra religiosa esquecida", a Sonderbund, o perdurante jurisdicionalismo na Áustria dos embora catolicíssimos Habsburgo, a Kulturkampf bismarckiano, as crises de afirmação do nacional-socialismo na Alemanha e da Guerra Civil espanhola, o Vaticano II, o 1968 e os eventos muitos recentes como o impacto com a "revolução sexual" e a descoberta da extensão do fenômeno dos padres pedófilos.
Uma reconstrução histórica que tem os seus momentos dramáticos e as suas perguntas embaraçosas: e tem-se a impressão de que Sergio Romano, sublinhando, por exemplo, o caráter tirânico e racista do nazismo – o que é óbvio –, passe um pouco por cima do fato de que, sobre muitas questões de tipo técnico-científico, o regime hitleriano era objetivamente "moderno" e "progressista", em uma linha que muitos secularistas de hoje aprovariam. Uma bela batata quente: mas também um problema histórico e ético insuperável, infelizmente.
Quanto à situação italiana, sem dúvida, os problemas não resolvidos e as muitas formas de "má consciência" residuais do Risorgimento e da Unificação da Itália – dois movimentos que só podiam entrar em conflito com a Igreja, não como autoridade espiritual, mas sim como poder territorial (porém, na prática, os dois aspectos do problema eram inseparáveis) – acabaram determinando a grande força de um "partido católico" em que os elementos clericais eram fortes e, em última análise, "uma classe política mais fraca e oportunista do que essa (...) nos outros países da Europa cristã". Que, aliás, como indubitavelmente demonstra Beda Romano, já não é mais católica.
A ética católica é objetivamente incompatível com o casamento gay e com a clonagem, assim como com muitos aspectos da problemática relacionada à eutanásia, à pesquisa com células-tronco e até com o sacerdócio feminino (católicos, ortodoxos e cristãos orientais são inflexíveis acerca dessa "fronteira mosaica", largamente superada pelos protestantes). Sem dúvida, as fronteiras éticas são dinâmicas como todas as outras: movem-se, modificam-se. Mas em que sentido e com que velocidade? A Igreja poderá, objetivamente, nunca tendo encontrado um verdadeiro acordo com a "Modernidade" enquanto esta era forte, entrar em sintonia com ela agora que é fraca, "Modernidade líquida" ou "Pós-modernidade", caracterizada não só pelo fim das ideologias, mas também por aquele generalizado "fim das certezas", do qual o chamado "relativismo" (um termo rico em ambiguidades, além do mais) é um caso exemplar?
João Paulo II e Bento XVI mais de uma vez sublinharam um dado de fato: mesmo em países "catolicíssimos" como a Itália e a Espanha – que tais, além disso, sempre foram de modo bem diferente... –, os católicos efetivos (aqueles observantes, não aqueles que são sociologicamente tais por serem, como tais, computados em nível estatístico) já são agora uma claríssima minoria, e o magistério da Igreja, em questões como as sexuais, é largamente – embora tacitamente – ignorado por grandes parte dos próprios fiéis.
Como reagir diante dessa realidade: modificando a ética para comprazer a tendência moderna que, de outro lado, parece ser, por sua vez, fraca e contraditória? Ou reforçando da disciplina, com o risco de uma Kulturkampf renovada e generalizada? Ou desenhando serena, mas rigorosamente, as "novas fronteiras", com amplas aberturas onde seja possível e renovados e mais rigorosos fechamentos lá onde o catolicismo e o mundo atual parecem realmente irreconciliáveis?
Como muitas vezes acontece nas coisas deste mundo, ir de acordo é mais difícil e pode ser mais perigoso do que se declarar adversário. Pensemos nos jovens: hoje, existem muitos jovens que se comprometem juntos com o voluntariado, com a luta contra a miséria e a injustiça social no mundo, em um sentido muito objetivamente coerente com o magistério da Igreja Católica.
É mais importante isso ou o fato de que alguns deles são homossexuais e outros gays, que alguns se permitiram práticas eutanásicas com relação a seus parentes doentes e outros não, que alguns utilizem habitualmente sistemas contraceptivos e outros não? E é ao mesmo tempo concebível que a Igreja abandone as suas fronteiras ético-teológicas em nome da urgência de certas batalhas sociais e humanitárias, é possível que as modifique em um sentido constantemente voltado a facilitar o diálogo com os não crentes?
Concluída a leitura do belo livro dos Romano, a dúvida não desaparece, mas, ao contrário, se torna ainda mais pesada. Sinal de que o livro é bem-sucedido: os problemas que não são simples, na realidade, não devem ser simplificados, mas sim enfatizados. O simplismo é inimigo da simplicidade e leva a falsas soluções. O primeiro passo necessário para a verdadeira solução dos problemas é a consciência da sua complexidade. Precisamente o que falta na maior parte da opinião pública.
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O ''não'' da Igreja à modernidade líquida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU