16 Fevereiro 2012
O embaixador André Aranha Corrêa do Lago, de 52 anos, é um economista apaixonado por arquitetura e um diplomata que fala direto. "O que não se pode aceitar é que os países desenvolvidos considerem que nós temos que repensar o que é padrão de consumo de classe média, e eles, não", diz, referindo-se às negociações da Rio+20, a conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, em junho, no Rio.
A reportagem e a entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 16-02-2012.
Lago, que serviu nas embaixadas brasileiras em Madri, Praga, Washington, Buenos Aires e na missão brasileira junto à União Europeia, em Bruxelas, diz claramente que a Rio+20 é uma conferência sobre desenvolvimento sustentável, com seus pilares econômico, social e ambiental. Não é só frase de efeito. "Os europeus dizem que o Brasil está tirando o foco da Rio+20", menciona. Lago não é explícito, mas trata-se de uma referência ao esforço europeu, encabeçado pela França, de aprovar na Rio+20 a criação de uma agência ambiental mundial, ideia que o Brasil não apoia. "A Rio+ 20 não é uma conferência ambiental, é sobre desenvolvimento sustentável. Quem está tirando o foco da Rio+20 são eles, colocando apenas o pilar ambiental na mesa."
O negociador-chefe do Brasil para a Rio+20 diz que os empresários são peças-chave em uma conferência que quer desenhar o desenvolvimento do mundo para os próximos 20 anos. E que um dos desafios da Rio+20 é "convencer o empresariado médio e micro que o desenvolvimento sustentável não é agenda apenas de multinacionais gigantes, que têm dinheiro sobrando e que, portanto, podem investir nessas outras dimensões."
Eis a entrevista.
As pessoas não têm ideia clara do que é a Rio+20. O senhor pode explicar?
A Rio+20 pertence a uma família de conferências das Nações Unidas que só acontece com pouca frequência. São conferências de questionamento geral e trabalham com o longo prazo. A Rio+20 têm várias dimensões, mas sua definição formal é que é uma conferência da ONU que vai reunir todos os países do mundo para debater temas que só são discutidos neste nível de profundidade a cada 10 ou 20 anos. É completamente diferente da conferência de Copenhague (em 2009, na Dinamarca) ou da de Durban (em 2011, na África do Sul), que são as reuniões anuais da negociação de mudança do clima.
O que pode sair dela?
Por ser rara e ambiciosa, podem sair daí coisas como na Rio 92 que, no momento em que acontecem a gente não se dá conta do quanto são importantes.
Quais coisas?
Quando foi assinada a Convenção do Clima, na Rio 92, ninguém podia imaginar que 20 anos depois ela se tornaria a principal negociação econômica no mundo. Mas essas conferências, ao trabalharem com o longo prazo, têm também enorme grau de incerteza. Existem processos que param no meio e outros que inspiram toda uma geração.
O produto principal da Rio+20 é um documento que pode dizer o quê?
O produto principal da Rio+20 é reunir todos os países e as melhores mentes das instituições internacionais e repensar o desenvolvimento do mundo. Em momentos como o de hoje, quando pensamos no curto prazo - como nas reuniões do G-20, onde todos pensam como será a crise em uma semana, um mês ou um ano -, a grande contribuição da Rio+20 é pensarmos o que queremos para o longo prazo. É a conferência para tentar determinar qual o nosso objetivo comum para as próximas décadas.
A Rio+20 tem duas frentes, da economia verde e da governança. Pode explicar?
Isso são os mandatos. Quando se tem uma conferência das Nações Unidas, todos os países do mundo têm que concordar em qual vai ser a agenda. Não é uma decisão nem das Nações Unidas, nem do país anfitrião. É uma decisão de todos. Neste caso, a decisão foi de que a Rio+20 deveria se concentrar em dois temas: a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza e a governança internacional do desenvolvimento sustentável, ou seja, de que maneira vamos estruturar o debate internacional em torno dessa questão.
O senhor mencionou outro dia que o "espírito de Estocolmo" está sendo sentido de novo, e de maneira forte, nas negociações da Rio+20. O que quer dizer?
Quando ocorreu a 1ª conferência ambiental da ONU, em Estocolmo, em 1972, no período preparatório os países em desenvolvimento reagiram muito mal à introdução da questão do ambiente porque interpretavam que era uma deturpação do debate. Que o debate legítimo da ONU, desde os anos 50, era o desenvolvimento. E, graças ao Brasil e há alguns outros em desenvolvimento, caiu a ficha e a questão do ambiente passou a ser ligada diretamente à do desenvolvimento. O consenso foi de que não se podia desligar os dois.
Mas a participação do Brasil foi esquisita, defendendo o crescimento a qualquer custo...
Não, isso foi muito mal interpretado naquela época, parecia que o Brasil estava atrapalhando uma agenda progressista. Mas naquele período houve um relatório com grande impacto, do Clube de Roma. Era um clube de grandes empresários e, nesse relatório, havia uma renovação daquelas preocupações malthusianas [economista britânico Thomas Malthus] de que nunca ia haver suficientes recursos naturais para todo mundo.
A solução que as pessoas encontravam era "controle a população dos países em desenvolvimento, porque senão eles vão consumir o que nós precisamos". Isso classifica o mundo em duas categorias, aqueles que já chegaram a um certo nível de consumo e acham legítimo continuar a tê-lo e querem restringir o crescimento dos outros. Isso acabou mudando. Mas muitos países europeus não se convenceram disso.
Este espírito voltou nas negociações da Rio+20?
O espírito pré-Estocolmo é a visão de que o problema do mundo é que tem pobre demais e poucos recursos naturais. Hoje isso está retornando.
Bom, mas não é verdade que no mundo há pobres demais e recursos naturais de menos?
Agora a preocupação é outra: os pobres estão virando classe média. E não se achava que isso ia acontecer tão rápido. Entre China, Brasil, Índia e outros países em desenvolvimento estamos botando centenas de milhões de pessoas na classe média. Estas pessoas estão consumindo mais, o que é uma ótima notícia. E também é verdade que isso representa um desafio para o ambiente. Mas a solução não é restringir o consumo só deles. A solução é um esforço mundial para que não haja uma divisão do gênero: a classe média americana pode ter quatro carros e classe média indiana tem que andar de bicicleta.
A sinalização dos países desenvolvidos é "vocês chegaram à classe média na hora errada?"
A sinalização é a seguinte: "Nós inventamos esse conceito de classe média meio para a gente. Não é para vocês, não". Isso não é possível. Os países em desenvolvimento, com toda razão, consideram que, é claro que temos todos que nos preocupar com as emissões e as consequências da entrada de milhões de pessoas na classe média mundial. Mas não podemos aceitar que vá haver duas classes médias, duas categorias diferentes.
O que achamos é que os países desenvolvidos, em vez de se preocupar tanto com o que está acontecendo nos países em desenvolvimento, deveriam mostrar o caminho. Isso está já determinado desde o Rio de Janeiro, em 1992. Um dos princípios do Rio é a mudança dos padrões insustentáveis de produção e consumo, com os países desenvolvidos tomando a liderança. Temos que criar uma ideia de classe média que seja atraente o suficiente para europeus e americanos, e atraente o suficiente para indianos e brasileiros.
Este ponto, na Rio+20, pode ter qual formato?
Tem que ser uma questão absolutamente chave. Se estamos trabalhando na Rio+20 para os próximos 20 anos, temos que pensar em medidas que teremos que tomar internacionalmente e que tenham impacto para as próximas duas décadas. A perspectiva é que até lá centenas de milhões de pobres deixarão de ser pobres, o que é uma maravilhosa notícia. Essa visão dramática do mundo tem que ser equilibrada pelo lado positivo do que está acontecendo. Mas temos, sem a menor dúvida, todos, que repensar nossos padrões de consumo. O que não se pode aceitar é que os desenvolvidos considerem que nós temos que repensar o que é padrão de consumo de classe média, e eles, não.
Há um documento, que esperamos aprovar na Rio+20 e que determina essas questões. Temos que mudar e ter consciência de que em um mundo onde teremos bilhões de pessoas de classe média, a ideia do que é o consumo tem que ser mudada. Não podemos ter 7 bilhões de pessoas consumindo como a classe média americana ou italiana.
O senhor não concorda com a visão "dramática" do mundo.
Esse alarmismo da falta de recursos naturais vem de Malthus, e a história tem provado que as coisas não são assim. Em 1971 se achava que a população mundial só ia estabilizar em 14 bilhões, mas já sabemos hoje que vai estabilizar em 9 ou 10 bilhões e a partir daí irá cair. E há progresso tecnológico, uma quantidade inimaginável de coisas novas acontecendo.
Há chance de, na Rio+20, sair uma agência ambiental mundial nos moldes da OMC, para o comércio, ou a OIT, para o trabalho?
Nós não queremos uma agência ambiental mundial. Essa é a agenda de Estocolmo. Queremos uma agência internacional sobre desenvolvimento sustentável, que trate de maneira equilibrada o econômico, o ambiental e o social. Por outro lado, queremos que seja fortalecido o pilar ambiental no Pnuma, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Mas o que tem que sair do Rio de Janeiro não é o fortalecimento simplesmente do meio ambiente. É o fortalecimento do desenvolvimento sustentável, do tratamento equilibrado entre econômico, ambiental e social. Os europeus dizem que o Brasil está tirando o foco da Rio+20. A Rio+ 20 não é uma conferência ambiental, é sobre desenvolvimento sustentável. Quem está tirando o foco da Rio+20 são eles, colocando apenas o pilar ambiental na mesa.
Pode sair uma agência sobre desenvolvimento sustentável?
Este é o objetivo. O fortalecimento da governança internacional de desenvolvimento sustentável. Mas a forma que esta agência terá... Uma coisa é o que o Brasil quer. A outra é o que 193 países querem.
O que o Brasil quer?
O Brasil quer que saia uma coisa ambiciosa, que os 193 países queiram. Mas o Brasil não é um país que declara que quer uma coisa extraordinariamente ambiciosa sabendo que aquilo é impossível. Também não podemos predeterminar a opinião de 193 países. Seria pretensioso e inadequado para o presidente de uma conferência.
Na proposta brasileira defendia-se que o Ecosoc, o conselho econômico e social que existe na ONU, seja reformulado, fortalecido e acrescido da vertente ambiental. Isso pode acontecer na Rio+20?
Estão sendo examinadas todas as possibilidades. Os países têm diferentes visões. O público e os políticos, em geral, não têm noção do que é o Ecosoc e para o que serve. Temos que ter uma solução que não só seja efetiva para as Nações Unidas, mas percebida como tal pelos governos nacionais e pela sociedade civil.
Procuro sempre explicar que precisamos ter resultados significativos na Rio+20 em três dimensões. Na multilateral, das Nações Unidas, com o fortalecimento da ONU, de seus instrumentos e de sua eficiência. Outra é o que pode trazer de impactos sobre o Brasil, que o país seja o líder mundial na luta do desenvolvimento sustentável. A terceira dimensão é a sociedade civil aceitar e se envolver nessa agenda, o setor empresarial, os trabalhadores, as ONGs, a Ciência. Toda a sociedade civil mundial tem que acreditar que esta é a agenda que deseja para os próximos 20 anos.
Como os empresários podem aproveitar a Rio+20?
Os empresários são absolutamente chave na Rio+20. A conferência vai tratar de um assunto caro a eles, que é o longo prazo. O empresariado precisa de segurança com relação ao longo prazo. Na Rio 92 quem apoiava o desenvolvimento sustentável era muito ligado a uma visão idealista do mundo. Eram grandes líderes empresariais convictos de que a dimensão ambiental e social era chave. Nos últimos 20 anos apareceram milhares de exemplos de empresas que ao darem atenção à dimensão social e ambiental, ao lado da econômica, naturalmente, cresceram mais, se fortaleceram, ganharam mais mercado. Um passo importante na Rio+20 é convencer o empresariado médio e micro que o desenvolvimento sustentável não é agenda apenas de multinacionais gigantes, que têm dinheiro sobrando e que, portanto, podem investir nessas outras dimensões. O Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] assinou um convênio com a organização da Rio+20, e isso é uma sinalização internacional de que a entidade que, no Brasil, reúne as pequenas e micro empresas acredita na agenda da sustentabilidade.
O senhor fala que é importante trazer os mecanismos financeiros internacionais tipo Banco Mundial, BID e FMI para este debate. O que o senhor imagina?
Se nós estamos pensando em uma entidade - não vamos dar nome à agência, conselho, porque não houve acordo sobre isso - multilateral que vai assegurar que desenvolvimento sustentável seja o paradigma do desenvolvimento mundial, é evidente que essa entidade tem que envolver o Banco Mundial, o FMI, a OMC. Esses organismos são da estrutura das Nações Unidas, mas sua estrutura de funcionamento é muito diferente. Temos que assegurar que esses organismos também sejam defensores do desenvolvimento sustentável.
Como os EUA estão se comportando com relação à Rio+20?
Os EUA têm sido muito construtivos. O grande papel que o Brasil pode ter é justamente de, tendo conhecimento das dificuldades que países como os EUA, Alemanha ou Indonésia têm no tratamento de certas questões, conseguir um resultado com o qual esses países possam concordar. Não é nenhuma vitória propor algo que não será consenso e não será aprovado.
Mas assim não se enfraquece a conferência?
Há um certo cansaço que existe do público com relação à capacidade da ONU de conseguir coisas ambiciosas uma vez que têm que haver o consenso de mais de 190 países. Há sempre o temor de se ter o menor denominador comum. A sociedade civil vai ficar observando os líderes mundiais e dizendo a eles "vocês podem ser mais ambiciosos."
O senhor diz que, nas negociações internacionais, o confronto Norte-Sul que se verificava passa a ser mais pressão sobre os emergentes. É assim?
No momento em que há uma tal crise nos países mais ricos do mundo, e eles observam China, Índia e Brasil crescendo entrando na lista das maiores economias do mundo, há uma tendência natural dos países ricos de tentar dividir algumas das suas responsabilidades, sobretudo financeiras, com esses países que parecem estar ricos. Tem uma tendência dos países ricos em achar que os emergentes deveriam fazer mais.
Isso é uma deturpação. Apesar de Brasil, China e Índia terem conseguido grandes progressos recentes, são ainda países em desenvolvimento. Nenhum de nós está dizendo que já é desenvolvido. Temos plena consciência de que temos imensa dívida social e muito o que fazer para nos considerarmos desenvolvidos. Estamos tratando com sociedades que têm um nível de qualidade de vida para as suas populações infinitamente superior do que o que Brasil, China e Índia podem oferecer para a maioria da sua população.
Essa pressão também ocorre nas negociações da Rio+20?
Na b há uma grande diferença entre o que Brasil, China e India consideram que é o maior papel para eles no mundo atual e o que os países ricos consideram que é o maior papel para nós no mundo a partir de agora.
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Não se pode ter dois padrões de consumo, para país rico e pobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU