18 Novembro 2011
"Hoje, Antônia Melo é o ponto de referência mundial do movimento Xingu Vivo Para Sempre. É conhecida não apenas na região do Xingu e no Brasil, ela é admirada nos dois hemisférios, nas Américas, na Ásia e na Europa. Quem fala em Xingu Vivo Para Sempre, se refere a esta mulher, mãe e irmã, irmã de todos os povos do Xingu", escreve D. Erwin Kräutler, bispo do Xingu, PA, em artigo que nos enviou e publicamos a seguir.
Eis o texto.
Sim, comadre! Tenho o privilégio de ser padrinho do filho mais novo de Antônia Melo da Silva, aliás, também meu xará!
Altamira, outubro de 1987
Tiros, gritos de socorro e desespero, correria desencontrada na descida da rua Sete de Setembro, em direção ao Açaizal. "Tranca a porta!" "Quem foi que atirou?" "Não sei, nem quero saber! Não vi nada. Só ouvi tiros!" "Morreu alguém?" "Também não sei. Quem sabe, algum vagabundo! Não quero me meter em encrenca. Tenho filhos pra criar!"
Nem todos reagem desta maneira. Há quem sente no coração o ímpeto irresistível de socorrer. Quem corre risco de vida, precisa de socorro imediato. Antônia Melo, mãe de cinco filhos, decide tornar-se mãe de quem perdeu a mãe. Reconhece o menor que foi baleado. Coitado! Ainda criança, ficou órfão de mãe. Entrou em depressão e refugiou-se nas cavernas do submundo. Entregue à própria sorte afundou-se cada vez mais no poço lamacento da droga. E agora está aí, baleado. Antônia pede um carro para levar o rapazinho ao hospital. Deita-o no seu colo. Mas é tarde demais. O menino morre. Morre nos braços de Antônia Melo. Não morreu sozinho. Ao morrer sente o afago da mãe. Nunca mais havia sentido esse carinho, depois que sua mãe partiu. Melo lhe fecha os olhos.
Morto no colo de uma mãe! Nossa Senhora da Piedade! Quem não lembra o cenário de Gólgota? Como descrever os contornos da dor!
Com o garoto morto nos braços, Antônia Melo se abala até as entranhas. Uma profunda indignação, uma indizível revolta a invade. Que mundo injusto e assassino é esse! E é neste momento que jura lutar, enquanto Deus lhe der fôlego, contra a violência e a injustiça, contra as estruturas desumanas de um sistema iníquo que, em vez de promover vida, gera morte.
Altamira, 1989 a 1993
Meninos seviciados, mutilados, assassinados com todos os requintes de perversidade que só o inferno pode ter inventado. As autoridades judiciais pouco se empenham na elucidação dos bárbaros crimes que horrorizaram o Brasil e o mundo. Omissas e lerdas, tornam-se co-responsáveis pela perda de pistas importantes de identificação dos criminosos. Querem antes encobrir e fazer esquecer esses crimes que conspurcam a imagem da cidade. E quase conseguem o intento, se não houvesse um grupo de mulheres, liderado por Antônia Melo, que começa a protestar contra a negligência da Justiça e denunciar a omissão de quem teria o dever constitucional de defender a dignidade e os direitos humanos. Junto com as mães que perderam seus filhos, Antônia Melo cria o "Comitê em Defesa das Crianças e Adolescentes de Altamira". Ela confia na força transformadora das mulheres numa sociedade injusta e perversa. Assim funda em 1991 o "Movimento das Mulheres do Campo e da Cidade" que coordena durante anos. Em 1994 é eleita a 1ª Conselheira do Conselho Tutelar. Ficou nesta função até 2000. Em Altamira nunca houve alguém que assumiu com tanta garra, dia e noite, correndo até risco de vida, este "ministério da defesa" da infância e adolescência desvalida. Considero a Melo candidata inquestionável e imbatível para todos os prêmios que o mundo outorga a pessoas engajadas pelos Direitos Humanos.
Altamira, março 2006
Altamira mais uma vez vira manchete. Mães de adolescentes, desesperadas com o sumiço de suas filhas, todas de menor idade, gritam por socorro. Meninas são aliciadas na porta de colégios e sexualmente abusadas por homens da "haute volée" da cidade. E, mais uma vez, os crimes ficariam encobertos pelo descaso das autoridades judiciais e soterrados debaixo das túnicas pretas com que se paramentam, se não fossem as mulheres - e entre elas Antônia Melo - a tomar a frente nas manifestações de rua para exigir a prisão e punição desses monstros de paletó e gravata.
Altamira, da década de 70 até os dias de hoje
"Kararaô" vira "Belo Monte". O grito de guerra do povo Kayapó, dado ao projeto de hidrelétrica no Rio Xingu, é substituído pelo bucólico Belo Monte. É o carro-chefe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), engendrado pelos governos do PT. Esperávamos que das cinzas da ditadura militar e dos subsequentes governos, pouco preocupados com os verdadeiros anseios do povo brasileiro, surgisse um outro Brasil. Mas, uma vez no poder, inclusive com nosso voto, os protagonistas do "Governo popular" trocam de casaco. O que antes condenaram com veemência, de repente, da noite para o dia, passam a defender com unhas e dentes. Mudaram de script. Muitos dos correligionários do tempo da campanha "Lula Lá" que nas praias douradas do "Bytire" (1), o rio de águas verdes-esmeralda, juraram defender o "Xingu Vivo para Sempre", traem as bases que os elegeram. Inspirados por uma espécie de "raison d`état", vendem a mãe Consciência. Desertam para o lado daqueles que antes, erguendo punhos cerrados, combatiam.
Lula vem a Altamira e, num discurso ridículo, indigno de um Presidente da República, dirige-se em tom zombador aos que defendem o Xingu Vivo: "certamente meia dúzia de jovens bem-intencionados, mas certamente com intenções, intenções, talvez não pensando em Belo Monte..." e assim por diante até provocar náuseas (2). Os amigos e combatentes de outrora usam broche de lapela "Presidência da República" como prova de que agora são investidos de "autoridade" para impedir o ingresso de quem não reza na cartilha do PAC.
Revistam bolsas e sacolas para detectar eventuais cartazes ou faixas contra Belo Monte, proibidos de serem ostentados no estádio. Que vergonha! Antônia Melo lá está. Talvez seja a mais constrangedora experiência que já passou em sua vida, vendo-se humilhada por quem antes apoiava seu empenho em favor dos povos do Xingu. Mas, quem sai de cabeça erguida do estádio é ela! Mulher fiel a seus princípios.
Hoje, Antônia Melo é o ponto de referência mundial do movimento Xingu Vivo Para Sempre. É conhecida não apenas na região do Xingu e no Brasil, ela é admirada nos dois hemisférios, nas Américas, na Ásia e na Europa. Quem fala em Xingu Vivo Para Sempre, se refere a esta mulher, mãe e irmã, irmã de todos os povos do Xingu.
O legado dos pais
A trajetória de Antônia Melo é de uma incrível firmeza e determinação. Seus pais, Eliza Sabino de Melo e Gentil Lourenço de Melo foram cearenses, religiosos por convicção, de fé profunda, de uma ética à toda prova, tanto em nível familiar como comunitário. Casaram no Ceará, mas foram morar em Piripiri, no Piauí, onde lhes nasceram cinco filhos e três filhas, uma delas Antônia, em família carinhosamente chamada de "mocinha". De lá partiram para Altamira, onde chegaram no mes de dezembro de 1953. Aí nasceram mais três filhos e duas filhas.
Conheci pessoalmente os pais da Antônia. Guardo até hoje a memória de dona Eliza: mulher abnegada, mãe exemplar e solícita, trabalhadora e humilde, mas também uma pessoa emotiva que não escondeu seus sentimentos. Dona Eliza lembra a mulher descrita no capítulo 31 do Livro dos Provérbios. E seu Gentil! Pai dedicado, homem de bem com senso de justiça irretocável e incansável arrimo de sua família. Conhecia também o sofrimento atroz. Foi-lhe amputada uma perna. Um cavalo, amansado por ele, de repente se assustou com o barulho desconhecido de um caminhão. Seu Gentil caiu. Quebrou a perna. Em Altamira não havia recursos. Teve que empreender uma longa viagem para Belém. Quando lá chegara, já se haviam passado oito dias desde o acidente. Deu gangrena. Não existia outra alternativa a não ser amputar a perna. Que homem impressionante, seu Gentil "da Aurora" (3) ! Gentil, não apenas de nome, "gentil" em suas atitudes, no seu modo de se relacionar com o próximo. Onde seu Gentil aparecia, crianças, jovens, mulheres e homens o reverenciavam. Não foi homem de muita conversa, mas de um admirável testemunho de vida. Quem o conhecia, o venerava. Foi um homem justo que andava com Deus (4), verdadeiro patriarca!
Creio que os pais de Antônia intuíram qual seria, no futuro, a missão de sua filha. Queriam que estudasse e seu Gentil conseguiu com Dom Clemente uma vaga no internato do Instituto Maria de Mattias. Entrou em 1958 com nove anos e, terminando o primeiro grau, se despediu do Instituto em 1967, com dezoito anos, para ser professora na Zona Rural e dar catequese para crianças e adolescentes. Em 1970 casou. Em 1980 volta ao banco escolar para concluir o curso de magistério. Graduou-se em 1983.
A mística
Nunca foram vantagens ou interesses pessoais que guiaram Antônia Melo. Pelo contrário, sua vida pessoal se confunde com a vida em favor do próximo e contra um sistema injusto e excludente. É chamada de "guerreira", mesmo que ela seja visceralmente contra todo derramamento de sangue. Ela é "guerreira" da "não-violência ativa" e talvez um dia a história a coloca ao lado de figuras como Mahatma Gandhi da libertação da Índia, Martin Luther King dos negros, Margarida Maria Alves do Nordeste, as Irmãs Serafina e Dorothy do Xingu, e tantos outros que deram a vida ou viveram a vida para realizar a utopia de "Um outro mundo é possível". É "guerreira" por sua intransigência na defesa da dignidade e dos direitos humanos, "guerreira" porque não recua, "guerreira" porque não se deixa intimidar. Ela é "guerreira" porque é mulher-líder, materna e sororal, que sabe compaginar a dimensão samaritana (5) de assumir o sofrimento de crianças, mulheres e homens que caíram nas mãos de ladrões, com a dimensão profética de bradar sua indignação e revolta e denunciar o esquema que está por trás de todas as agressões e violências.
A mística que subjaz a todo e empenho de Antônia Melo é, sem dúvida, o entranhado amor pelas pessoas que o sistema capitalista rejeita e exclui, despreza e discrimina, considera "supérfluas" e "descartáveis" (6). Nesta sua opção de vida segue os passos do próprio Jesus. Manifesta sua fé inquebrantável na utopia de um mundo diferente, justo fraterno, solidário. Ela mesma admite que sua militância começou a partir da experiência nas Comunidades Eclesiais de Base e baseada na Teologia da Libertação que inspira a caminhada das CEBs (7). A libertação de todas as formas de escravidão, tanto no âmbito pessoal, como no social e político, não cai do céu, mas exige um engajamento decidido. O deus do sistema neo-liberal é a maximização de lucros a qualquer preço, a busca de vantagens financeiras, mesmo que nessa ambição os atores protagonistas percam todos os escrúpulos e exterminem a sangue frio a quem defenda o direito dos pequenos. O atual sistema neoliberal é de um cinismo sarcástico. Não rouba somente a milhões de seres humanos o direito ao essencialmente necessário para sobreviver. Há ainda uma investida mais perversa contra grupos e povos que são culturalmente diferentes e se negam a rezar na cartilha do sistema imposto. Esses são tidos como "obstáculos", "entraves" ao "progresso" e por isso têm que ser eliminados sem dó e piedade. Não perdem apenas o direito de "ter", são sumariamente condenados a deixar de "ser".
Antônia Melo vive sua vida e dá a sua vida pelas irmãs e irmãos banidos do festim da vida. Que Deus a abençoe hoje e sempre!
Altamira, 7 de novembro de 2011
Erwin Kräutler
Bispo do Xingu
Notas:
1.- O "rio Xingu" na língua Kayapó: "BY-TIRE". A segunda sílaba "tire", significa "grande",
"majestoso", "imenso". Um kayapó já idoso e, por isso, respeitado como sábio, explicou ao Padre Renato Trevisan S.X., meu amigo e profundo conhecedor do mundo kayapó, que a sílaba "by" significa "algo muito misterioso", inexprimível, inexplicável, e por isso "sagrado": intocável, inviolável.
2.- Discurso no Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, no Estádio de Altamira, em 22 de junho de 2010.
3.- Nome da colônia em que se encontrava seu sitio.
4.- Cf. Gênesis 6,9.
5.- Cf. Evangelho de Lucas 10,25-37.
6.- Cf. Documento Final da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, Aparecida, 13 a 31 de maio de 2007, n. 65.
7.- Em 1984 realizou-se em Altamira a Primeira Grande Assembléia do Povo de Deus. Desde então, de cinco em cinco anos, se repete esse evento que reune centenas de representantes de comunidades de todo o Xingu. Antônia Melo estava ativa em todas e sempre deu o seu recado.
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