Um dos brasileiros mais homenageados em 2011 abandonou a vida pública por opção, vive recolhido numa chácara em
Taboão da Serra, nos arredores da capital paulista, e se negou a romper o isolamento para comemorar seus 90 anos de idade.
Dom
Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo e maior ícone vivo da Igreja Católica no país, fez aniversário em 14 de setembro.
A reportagem é de
Bernardo Mello Franco e publicada pelo jornal
Folha de S. Paulo, 16-10-2011.
Apesar da insistência de amigos e religiosos, o cardeal que enfrentou a ditadura militar (1964-1985) em defesa dos direitos humanos recusou todos os convites para celebrar a data fora do retiro.
A atitude alimentou a volta de rumores sobre sua saúde, mas os poucos que convivem com ele asseguram que sua forma física e mental é invejável para a idade.
"Ninguém entende esta opção de se recolher, mas dom Paulo está muito bem. Suas graves doenças não estão nele, estão na cabeça das pessoas", brinca a franciscana
Devani de Jesus, espécie de anjo da guarda do religioso.
Na lista de comemorações frustradas, estavam uma missa solene na catedral da Sé, um ato com discurso e plantio de árvore no largo de São Francisco e a entrega de uma placa comemorativa na Câmara Municipal. As duas últimas chegaram a acontecer, mesmo sem a presença dele.
"O pessoal fica meio decepcionado, mas compreende", conforma-se o coordenador da Pastoral Operária Metropolitana,
Paulo Pedrini. Ao justificar a opção pelo silêncio, há quatro anos, ele disse a amigos que sairia de cena para não fazer sombra aos sucessores na igreja.
"Se eu continuar dando entrevistas, vou tirar o espaço de quem está em meu lugar", afirmou à jornalista
Angélica Rittes, que passou 34 anos a seu lado na Arquidiocese.
O cardeal foi substituído pelo amigo dom
Cláudio Hummes em 1998, mas continuava a aparecer em público, no rádio e nos jornais. Escreveu uma autobiografia e manteve a exposição dos tempos de arcebispo, quando desafiou generais em nome de bandeiras como o voto direto e a reforma agrária.
Na crise do mensalão, em 2005, declarou sua decepção com o ex-metalúrgico
Lula, a quem visitou na cadeia e apoiou nas greves do ABC. A decisão de se retirar coincidiu com a ascensão de dom
Odilo Pedro Scherer, da ala mais conservadora do catolicismo. O novo arcebispo assumiu em abril de 2007. Em dezembro,
dom Paulo deixou a casa na zona norte de SP e foi para o "exílio" em Taboão.
Por escrito,
dom Odilo afirmou não ver relação entre o afastamento e as mudanças na igreja. "Tenho grande apreço e relacionamento fraterno com dom Paulo", disse.
Ele sustentou que o recolhimento "é uma decisão de
dom Paulo, que é arcebispo emérito e, portanto, não está mais diante de responsabilidades diretas na igreja". "Mesmo assim, ele tem toda a liberdade de se expressar, se achar que deve fazer isso." O teólogo
Leonardo Boff, amigo desde os anos 50, vê outra razão. "Se ele se manifestasse, criaria conflitos. Acredito que ele decidiu se calar por isso", afirma.
OS EMBATES
As discordâncias com colegas de batina não são novidade na trajetória do cardeal, que fez críticas públicas a
João Paulo II e travou embates com o colega
Joseph Ratzinger, hoje papa
Bento XVI.
Em 1973, ele surpreendeu a igreja ao vender o Palácio Episcopal por US$ 5 milhões para financiar núcleos
comunitários na periferia. Na cruzada contra a repressão, denunciou a tortura, visitou presos políticos e foi a Brasília protestar com o presidente
Emilio Garrastazu Medici. Segundo o relato do cardeal, o general deu um murro na mesa e o enxotou gritando que seu lugar era "na sacristia". Em 31 de outubro de 1975,
dom Paulo abriu a Sé para um culto multirreligioso em memória do jornalista
Vladimir Herzog, morto nos porões. O ato entrou para a história como marco inicial da luta pela redemocratização do país.
O engajamento político rendeu retaliações do Vaticano. Em 1989, sua diocese foi dividida em cinco, numa medida para esvaziar seu poder.
O cardeal não se fez de rogado. Três anos depois, estava na linha de frente pelo impeachment de
Fernando Collor, acusado de corrupção.
Criado numa família de 14 irmãos em Santa Catarina,
dom Paulo leva vida metódica e de hábitos franciscanos.
Acorda antes das 6h30, reza missa às 7h, lê dois jornais e sai para caminhar. Toma um copo de suco de lima da pérsia às 10h, faz sua oração pessoal e almoça ao meio-dia.
À tarde, divide-se entre leituras em vários idiomas - ele prefere a Bíblia em grego. Faz novas caminhadas, brinca com sua pastora-alemã e encerra o dia com rezas e música clássica. O próprio cardeal escolhe os CDs; seu compositor predileto é
Mozart. Em janeiro,
dom Paulo precisou extrair a vesícula. Teve infecção pulmonar e passou 19 dias internado. No hospital, chamou o bispo emérito de Blumenau, dom
Angélico Bernardino, e repetiu seu lema: "Esperança sempre!"
Foi só mais um susto para quem já sofreu um infarto, retirou a próstata, venceu um câncer no olho esquerdo e sobreviveu a um grave acidente de carro aos 71 anos.
No dia em que chegou aos 90, ele voltou a exibir disposição e bom humor ao receber convidados para sua missa na chácara, única celebração da qual aceitou participar.
Lá, arrancou risadas ao contar como virou arcebispo, após recusar três convites do papa
Paulo VI. "Fui chorar junto a São Pedro, em Roma, e [depois] comecei a ser bispo em São Paulo. E não sabia que era tão bom!", disse.
Em outra ocasião, emocionou o jornalista e amigo
Ricardo Carvalho ao descrever sua fase atual: "Estou preparando minha passagem". O religioso, que perdeu a irmã
Zilda Arns no terremoto que devastou o Haiti em 2010, voltou a conviver com a morte semana passada, quando a irmã
Olivia faleceu aos 91 anos. "Estou conformado porque é a vontade de Deus", disse a freiras que o consolaram.
Ao ser questionado sobre o assunto,
dom Paulo gosta de responder de forma leve, porém espirituosa: "Estou preparado. Não tenho medo, mas também não tenho pressa."
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O silêncio do cardeal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU