23 Janeiro 2011
Na religião, pode-se falar de prêmios e castigos utilizando uma linguagem metafórica que possa motivar as pessoas a fazer o bem e evitar o mal. Tal é o sentido dos textos dos evangelhos que falam do "fogo" eterno, do "ranger de dentes", do "verme da consciência" ou de outras expressões parecidas.
A reflexão é do teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado em seu blog, Teología Sin Censura, 16-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As pessoas que têm crenças religiosas costumam dizer que aqueles que (ao morrer) se vão "desta vida" passam, assim, para a "outra vida", os bons ao céu, e os maus ao inferno. A isso costuma-se acrescentar uma especificação: no céu, só podem entrar aqueles que chegam ali inteiramente purificados, e para isso existe o purgatório.
A crença na outra vida é compreensível se levarmos em conta as muitas limitações que esta vida tem. Sempre existiram pessoas (muitas pessoas) que desejam a felicidade sem limites. Assim como existem pessoas que, dadas as tantas injustiças que existem neste mundo, esperam que Deus castigue os maus e canalhas no outro mundo. Parece lógico, portanto, que haja gente que alimente crenças em prêmios e castigos além da morte.
Dessa forma, a primeira coisa que convém levar em conta ao falar desse obscuro e complicado assunto é que as crenças relativas à outra vida logicamente têm consequências (para o bem ou para o mal) nesta vida. O mais certo é que, por exemplo, quando o franciscano Maximiliano Kolbe se deixou matar para salvar um companheiro em um campo de concentração da última guerra mundial, ele tomou essa decisão exemplar motivado pelo amor cristão e pela esperança na felicidade da vida futura. Assim como também se pode dar por certo que os pilotos camicazes, que se mataram milhares de pessoas nas Torres Gêmeas de Nova York, cometeram tal atrocidade por motivações políticas reforçadas, em última instância, pelo desejo de chegar ao paraíso celestial. Não resta dúvida de que a esperança na outra vida pode ser um estímulo para o bem ou uma ameaça para o mal.
Por isso, não é de se estranhar que os pregadores da "outra vida" tenham utilizado tantas vezes o argumento do céu e do inferno para motivar os fiéis, algumas vezes, a obter objetivos exemplares. E, em outros casos, para submeter os crédulos, para assustar pessoas de boa vontade ou pessoas ingênuas, sem reparar que, com base em sermões truculentos, constrangeram não poucas psicologias frágeis, levaram muitas pessoas ao confessionário e até se negociou a outra vida mediante indulgências que deixaram abundantes benefícios, esmolas, heranças e outras vantagens de maior ou menos quantia.
O que há depois da morte? Como é lógico, tudo o que transcende esta vida pertence ao âmbito do transcendente. E o transcendente é, por definição, o que não está ao nosso alcance, ou seja, o que não conhecemos nem podemos conhecer. Portanto, dizer, determinar, especificar e explicar o que acontece depois da morte é um alarde que carrega consigo tanto atrevimento quanto ingenuidade, já que isso é o mesmo que falar do que não sabemos nem podemos saber.
Mas não está tudo dito na Bíblia e nos livros sagrados? Não foi definido pelo papas pelos concílios da Igreja? Sejamos lógicos, sinceros e honestos. Todos os livros sagrados, incluindo a Bíblia, tudo o que os papas e os concílios disseram, tudo isso foi dito "a partir da imanência" e, portanto, é "imanente". Isto é, tudo isso não pode alcançar aquelas realidades que, por definição, nos transcendem. Em outras palavras, aquelas realidades que não estão ao nosso alcance. E se estão, não nos é falado do "transcendente", mas sim do "imanente", disfarçado de falsa "divindade".
A fé não é um saber baseado em argumentos demonstráveis pela evidência. A fé é uma "convicção livre". No caso da fé cristã, essa convicção leva consigo a esperança de que a morte não tem a última palavra. É a convicção da sobrevivência de uma plenitude de vida, sem que possamos especificar mais em que essa plenitude pode consistir. E quanto ao inferno, se Deus efetivamente é justo, fará justiça, sem que possamos saber como essa justiça será feita.
Mas falar de inferno como se costuma fazer nos catecismos e sermões de costume, com todo o respeito do mundo, eu não acredito que isso possa ser verdade. Por uma razão que, para mim pelo menos, é incontestável. O inferno, por definição, é um castigo eterno. Pois bem, um castigo (seja o que for) tem razão de ser como "meio" para algo (corrigir, melhorar, educar, defender os inocentes...), mas nunca pode ter razão de ser como "finalidade" em si mesmo. Um castigo, assim pensado e realizado, não pode ter sua origem na bondade, mas sim na maldade. Ou seja, um castigo assim não pode ter sido pensado por Deus, nem pode ser mantido por Deus. Um suposto castigo "divino", que, ao mesmo tempo, é concebido como "eterno", é uma contradição em si mesmo. Porque o "divino", que não pode ser entendido senão como bondade e fonte de bem, não pode ser causa e origem de um mal, que não tem mais finalidade em si mesmo do que fazer sofrer, ou seja, causar mal, dano e maldade. Porque, se é "eterno", não é "meio" para coisa nenhuma, mas sim algo cuja única finalidade é o sofrimento sem fim. Tornar Deus causador e responsável por isso é a agressão mais brutal ao "divino" que a mente humana pôde inventar.
Na religião, pode-se falar de prêmios e castigos utilizando uma linguagem metafórica que possa motivar as pessoas a fazer o bem e evitar o mal. Tal é o sentido dos textos dos evangelhos que falam do "fogo" eterno, do "ranger de dentes", do "verme da consciência" ou de outras expressões parecidas. Tudo o que passe disso e converta as metáforas em linguagem descritiva de uma realidade que está "acima" ou "abaixo", no alto dos céus ou nas profundezas do inferno, tudo isso só pode ser uma linguagem imaginativa da qual não nos cabe certeza alguma.
A finalidade das religião deve se centrar em tornar-nos boas pessoas, que sejamos respeitosos e honrados, honestos e sinceros, responsáveis e pessoas de bom coração. E que, além de tudo isso, tenham uma fé que lhes leve a manter viva a esperança que transcende o presente. Se isso lhes motiva a ser ainda mais boas pessoas, então se poderá dizer que a religião é cabal. E é o que tem que ser. Com toda sinceridade, confesso que o que acabo de explicar faz parte do próprio eixo das minhas crenças religiosas.
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Prêmios e castigos da "outra vida" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU