25 Fevereiro 2013
"Essa mudança de pontificado em 2013 – que é a primeira nos tempos modernos após uma renúncia papal – poderia modificar muitas coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado de preparação para um novo concílio ecumênico", avalia especialista em assuntos do Vaticano.
“A decisão de renunciar é surpreendente, mas não está em contradição com a identidade teológica de Ratzinger. Pode-se classificar Bento XVI como “teologicamente conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do ministério papal – na tradição e no Vaticano II”, afirma Massimo Faggioli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião, ser papa no catolicismo global se tornou uma “tarefa muito moderna e desafiante, e é provável que um teólogo conservador a sinta como um fardo insuportável (além das razões relacionadas à sua saúde)”. Faggioli pontua que em certos aspectos o Concílio Vaticano II veio “cedo demais”, e questões silenciadas pela Santa Sé, como o papel das mulheres na Igreja, o casamento dos sacerdotes e a ordenação de homossexuais, devem ser revistas.
Massimo Faggioli (foto) é doutor em História da Religião e professor de História do Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de Minnesota, Estados Unidos. Seus livros mais recentes são Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013) e True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012) e, em espanhol, Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI, (Madrid: PPC Editorial), 2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sob quais aspectos deve ser compreendida a renúncia de Bento XVI?
Massimo Faggioli – O papa pode renunciar, e certamente esse ato não é ilegal. Mas ele também deve ser entendido como um ato de governo e como uma decisão pessoal do papa, que tem a ver com seu estado de saúde, mas também com o caos existente no Vaticano e em algumas áreas do catolicismo. Chama a atenção que Bento XVI tenha dito que tomou essa decisão sozinho, sem consultar ninguém. Esse é um elemento muito interessante. Uma decisão tomada pelo papa após uma consulta com alguém outro teria levantado questões canônicas, mas também teria sido um sinal de colegialidade na Igreja – e a colegialidade é algo que foi aprovado pelo Vaticano II, mas jamais chegou a fazer parte do governo da Igreja, com exceção de alguns poucos casos.
IHU On-Line – Quais foram suas principais motivações?
Massimo Faggioli – Paulo VI foi o papa que concluiu o Vaticano II; João Paulo II foi o último papa que também foi padre conciliar no Vaticano II; Bento XVI é o último papa que esteve no Vaticano II (como teólogo, não como bispo). Essa mudança de pontificado em 2013 – que é a primeira nos tempos modernos após uma renúncia papal – poderia modificar muitas coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado de preparação para um novo concílio ecumênico ou colocar em pauta muitas questões que, durante demasiado tempo, foram consideradas “resolvidas”.
IHU On-Line – Em que sentido a renúncia do papa e a escolha de um novo pontífice podem representar uma mudança nos rumos da Igreja Católica?
Massimo Faggioli – A renúncia é o acontecimento principal, porque nas leis da Igreja havia um cânone que permitia isso ao papa, mas não dispunha o que aconteceria depois da renúncia. Nesse sentido, trata-se de uma decisão que cria um precedente, mas ainda há muitas coisas que não sabemos como irão se desdobrar, e este é um momento muito delicado. Trata-se de um conclave excepcional, e não normal. Também é uma situação perigosa, porque o papa disse que a “Sede vacante” começa em 28 de fevereiro, mas, em certo sentido, desde seu anúncio em 11 de fevereiro a Sé de Pedro já está vacante na prática.
IHU On-Line – A renúncia de Bento XVI ocorre 50 anos depois do Concílio Vaticano II e 600 anos depois da última renúncia papal. Podemos dizer que se trata do principal acontecimento no Vaticano nas últimas décadas? Por quê?
Massimo Faggioli – A decisão de renunciar é surpreendente, mas não está em contradição com a identidade teológica de Ratzinger. Pode-se classificar o papa Bento XVI como “teologicamente conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do ministério papal – na tradição e no Vaticano II. Suas concepções conservadoras são coerentes com a renúncia, já que o papa Bento XVI provavelmente sabia que o ministério papal tinha se tornado algo diferente do que ele achava que devia ser: exposição excessiva à mídia, excesso de responsabilidades para com o mundo e a política, excesso de tarefas administrativas. Ser papa no catolicismo global se tornou uma tarefa muito moderna e desafiante, e é provável que um teólogo conservador a sinta como um fardo insuportável (além das razões relacionadas à sua saúde).
IHU On-Line – Como explicar que um papa, reconhecidamente conservador, tenha tomado uma atitude tão moderna?
Massimo Faggioli – A tentativa de Bento XVI não foi exatamente restaurar o poder da Igreja na sociedade moderna, e sim restaurar o ensinamento coerente (segundo sua concepção) da Igreja sobre questões centrais. Nesse aspecto, Joseph Ratzinger nunca foi ingênuo a ponto de acreditar que pudesse recristianizar um mundo secular. João Paulo II era mais confiante nesse sentido; o papa Bento sempre foi menos “romântico” e mais realista.
IHU On-Line – O senhor considera que o desafio para o novo pontífice é, de alguma forma, restaurar a autoridade da Igreja em um mundo contemporâneo? Como fazer isso em uma sociedade pós-moderna e, em grande parte, secularizada?
Massimo Faggioli – Para essas questões a Igreja necessita de um momento de debate conciliar – um concílio ou sínodo que tenha real liberdade para falar. Esse é um dos pontos da pauta do conclave de 2013. Quanto a essas questões, há um aspecto de conteúdo do ensino da Igreja, e há um aspecto de estilo do ensino. Ambos são muito urgentes. Os primeiros assuntos que são teologicamente menos desafiadores do que outros são a ordenação de viri probati e o diaconato para mulheres.
IHU On-Line – A igreja tem ouvido aos sinais dos tempos? Como essa instituição pode dialogar sobre temáticas como casamento homoafetivo, métodos contraceptivos, fim do celibato, aborto e ordenação de mulheres, por exemplo?
Massimo Faggioli – Em muitos aspectos, o Vaticano II ainda não foi implementado, por exemplo no que diz respeito à colegialidade na Igreja. No tocante a outras questões, o Vaticano II veio cedo demais, de modo que temos de explorar soluções para novas questões sobre as quais o Vaticano II silencia, tais como o papel das mulheres na Igreja, sacerdotes casados. Uma abordagem hermenêutica correta do Vaticano II consiste em fazer a ele perguntas que o Concílio de 1962-1965 pode responder, e não perguntas que o Vaticano II não pode responder.
IHU On-Line – Qual é a atualidade do Concílio Vaticano II na Igreja Católica frente aos problemas contemporâneos?
Massimo Faggioli – Na alocução de 22 de dezembro de 2005, o papa fez uma distinção entre “hermenêutica da continuidade e reforma” e “hermenêutica da descontinuidade e ruptura”. Essa alocução foi também uma reação às novas contribuições para o debate teológico acadêmico, particularmente uma reação à historicização do Concílio empreendida pela obra em cinco volumes intitulada História do Vaticano II, editada por Alberigo e pela “Escola de Bolonha” (concluída em 2001 e publicada em sete línguas), e ao Comentário teológico do Vaticano II, em cinco volumes, que teve origem em Tübingen e foi editado por Peter Hünermann (que tinha presenteado ao papa exemplares dele poucas semanas antes da alocução à Cúria Romana). A reputação do Vaticano II foi profundamente afetada pelo papa Bento e pela alocução de 2005, em especial pelas interpretações simplistas e ideológicas do Concílio. Um primeiro elemento visível é a mudança da linguagem usada para falar do Vaticano II nos últimos oito anos. A partir de fins de 2005, um papa, Bento VI, sentiu-se no direito de questionar o que tinha sido alcançado pelos estudos históricos e teológicos sobre o Vaticano II publicados pela comunidade científica internacional desde a década de 1980, ao menos. Por um lado, Bento XVI pôs fim ao “nominalismo do Vaticano II” típico de João Paulo II – o Vaticano II usado como cobertura ou manto para dar legitimidade a muitas coisas que não provinham dele. Por outro lado, Bento XVI também começou a remover programaticamente da mensagem proveniente do Vaticano aquelas “improvisações” feitas por João Paulo II (judaísmo, islã, inculturação) que tinham permitido aos teólogos católicos não falar de um repúdio completo do Vaticano II por parte dos papas pós-conciliares. Por fim, é difícil negar que o movimento contra a reforma litúrgica do concílio é produto do pontificado de Bento XVI (veja o motu proprio intitulado Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007 e a nova tradução do missal para o inglês): a “reforma da reforma litúrgica” nunca foi um problema sob Paulo VI e João Paulo II, mas se tornou um problema sob Bento XVI.
IHU On-Line – Como analisa os discursos de Bento XVI quando assumiu, em 2005, e quando anunciou sua renúncia? Tomando em consideração o Concílio Vaticano II, que leituras podem ser feitas dessas duas falas?
Massimo Faggioli – O pontificado foi muito influenciado por esse legado. O papa Bento é um teólogo neoagostiniano, com uma profunda percepção da diferença entre a Igreja e o “mundo” numa compreensão metafísica. Ele não acredita que a Igreja possa e deva ser um agente de transformação social, e essa ideia é típica de suas concepções sobre a relação entre a Igreja e a política e a Igreja e a cultura. Nesse aspecto, temos uma diferença profunda entre ele e seus predecessores Paulo VI e João Paulo II.
IHU On-Line – Como a formação agostiniana do papa se revelou à frente de seu pontificado?
Massimo Faggioli – Essa análise é típica de um teólogo neoagostiniano, especialmente de um teólogo neoagostiniano que se criou na Alemanha nazista e viu o lado muito perigoso da modernidade. Dito isso, Joseph Ratzinger tem uma compreensão profunda das contradições da modernidade, especialmente entre a ideia de modernidade e o acesso à verdade. Só há liberdade na verdade, e, para o papa Bento, o que é típico da modernidade é a tentativa de “decidir” o que é a verdade. Na concepção dele, a verdade é revelada por Deus, e você tem de entendê-la e aceitá-la, e não decidir a respeito dela. Isso é típico de suas concepções de modernidade, democracia e mudanças sociais.
Por Márcia Junges
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"Este é um momento muito delicado para a Igreja". Entrevista especial com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU