09 Outubro 2007
A entrevistada do dia de hoje é Zuleica Medeiros. Ela fala de consumo consciente, comércio justo e sustentabilidade. Trata-se de uma discussão bastante atual e polêmica, que envolve desde os governantes até as empresas privadas e, claro, a população brasileira, que precisa tomar consciência sobre seu ato de consumir, já que se está passando por um momento tão delicado em relação à saúde do nosso planeta. Zuleica, além de relacionar esses três conceitos, fala também sobre o papel do consumidor consciente hoje e apresenta algumas sugestões de como podemos acertas as contas com a Terra. Para ela, “nós temos que sempre verificar o quanto de envolvimento social contempla também uma solução social, porque o maior crime ambiental é a degradação da nossa teia social”.
Zuleica Medeiros é presidente do Instituto Terra, localizado em Florianópolis, Santa Catarina, e coordena pessoalmente o projeto Cidadania em Cadeia para o Direito do Futuro, que contribui para ressocialização dos detentos do Presídio Central da capital do Estado. Esta entrevista foi concedida à IHU On-Line por telefone.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você relaciona consumo consciente, comércio justo e sustentabilidade?
Zuleica Medeiros – Eu acredito que já passamos por várias revoluções, como, por exemplo, a Revolução Industrial, bastante conhecida. Agora estamos passando por uma revolução ambiental, que indica que estamos no limite da necessidade de mudança comportamental. É justamente aí que oferecemos alternativas, como o consumo sustentável, em que a solução não se dará por atos monumentais, inclusive da área governamental, como nós esperamos, mas sim pela atitude pessoal, individual, em que, ao fazermos nossas escolhas, estaremos tomando a atitude politicamente correta para que essas mudanças possam ocorrer. Nesse momento, eu vejo isso como o ponto vital de uma mudança comportamental que exige uma consciência, uma tomada de postura, uma guinada política de todos nós.
IHU On-Line – Diz-se que a única saída para salvar a Terra é adotarmos padrões de produção e consumo sustentáveis. O que isso significa tanto para os países ricos quanto para os países pobres?
Zuleica Medeiros – Não existe mais muita diferença na postura adotada por países ricos ou por países pobres. Trata-se de uma atitude individual de sobrevivência da espécie. Eu sempre digo que nós somos a próxima espécie em extinção. Então, deve ser feito um levante, pois é uma bandeira que todos devemos carregar. No entanto, o grande problema é político: existe um jogo de interesses focados na produção. Se analisarmos o Brasil, veremos que o País é uma grande solução mundial, porque possui muita mão-de-obra. Nós precisamos de geração de trabalho e renda e precisamos ofertar ao mundo essa solução, dizer ao mundo que somos o ouro do futuro. Este não será mais o petróleo, mas serão os produtos ecologicamente corretos, que poderão criar uma solução social e ambiental. Nós estamos na linha de frente de todas essas soluções.
IHU On-Line – Qual é o papel do consumidor consciente?
Zuleica Medeiros – Eu acho que é o de um acerto de contas. Precisamos ter os pés no chão. Já gastamos mais do que nos seria permitido, ou seja, nós já estamos em débito com o futuro. Então, eu acho que quando discutimos, hoje, os problemas da sustentabilidade e da preservação ambiental, que para mim são matemáticos, temos que entender que esse acerto precisa ser feito considerando nosso débito para com a vida. Temos o exemplo do papel: um indivíduo consome duas árvores por ano. Se nós consideramos também o CO2, o indivíduo tem mais duas árvores por ano para acertar com a natureza. Então, cada indivíduo “consome” quatro árvores por ano. Na questão do papel, sabemos que 40 quilos de papel é igual a uma árvore. Nós consumimos 80 quilos de papel per capita. Considerando esse débito, é só questionarmos quantos anos cada um de nós têm e saberemos o quanto estamos devendo. Essa conta é importantíssima até para um grupo familiar.
IHU On-Line – E como devemos fazer esse pagamento, esse acerto de contas com a natureza?
Zuleica Medeiros – Podemos agir de três formas: a primeira é plantar árvores, para que a gente possa pagar. A segunda atitude é o retorno: nós devemos retornar os resíduos secos, pois nós produzimos por dia, em média, um quilo de lixo seco, sendo 30% papel. Então, devemos dar um retorno, para que aconteça uma reciclagem e possamos ter mais uma vida antes do sepultamento final. E a terceira atitude, finalmente, é comprar produtos ecologicamente e socialmente corretos. Nós temos, portanto, três escolhas. É aí que entra o consumo consciente e o comércio solidário, ou seja, todas essas atitudes que estão sendo oferecidas para esse grande acerto de contas devem ser tomadas. Mas isso deve ser feito do ponto de vista do panorama mundial.
IHU On-Line – Quando começa o consumo consciente?
Zuleica Medeiros – Começa nas nossas escolhas. Por isso, eu digo que é um ato político, não deixando de ser um processo cultural. Veja o exemplo da Alemanha. Os alemães são rigorosos, e lá o cidadão é um consumidor que tem controle sobre a oferta de produtos. Se por um acaso elevarem o preço de um produto, a população controla, passando a boicotar aquele produto. Dentre os produtos mais simples, como o papel higiênico, se existir um tipo feito com matéria virgem e outro com papel reciclado, mesmo que esse papel reciclado seja até 25% mais caro, os alemães optam pelo reciclado. É uma atitude do mercado consumidor. Acontece que no Brasil a lei é sempre do menor preço. Aqui, ou em qualquer lugar do mundo, os papéis reciclados serão mais caros. Isso porque o retorno gera emprego e precisa de muita mão-de-obra para dar retorno às indústrias. Um grande empecilho é essa onda de indústrias que querem ser ecologicamente corretas. Elas colocam produtos no mercado, mas o que as rege é o lucro. Apesar de muitas vezes investirem muito em preservação ambiental, desconsideram que o comprar é a atitude mais fortemente engajada na preservação ambiental. Assustadoramente, é no primeiro setor, na área governamental, que está o maior problema. O governo investe em todos os aspectos em preservação. Mas a compra só é feita pelo menor preço. Então, perceba a ironia vivida por todos nós: as empresas que trabalham com produtos eco-sociais não podem participar das licitações feitos pelo governo, porque só vale o menor preço. Portanto, consumo solidário ou consumo consciente não acontece na área governamental para fomentar grandes empreendimentos. O setor, aqui, é totalmente marginalizado.
IHU On-Line – O comércio justo é, então, uma forma de desenvolvimento social?
Zuleica Medeiros – Fundamental, porque hoje nós sabemos que o comércio solidário se baseia em duas grandes visões: numa visão de preservação ambiental, de produtos ecologicamente corretos, e na visão dos que estão envolvidos com ações sociais. Esse comércio solidário, hoje, une os dois males desse século, que é a degradação ambiental e a degradação social. Então, nós temos que sempre verificar o quanto de envolvimento social contempla também uma solução social, porque, para mim, o maior crime ambiental é a degradação da nossa teia social. A miséria humana é o maior crime que eu posso considerar.
IHU On-Line – Quais são os mais importantes princípios do comércio justo?
Zuleica Medeiros – Nós temos uma política internacional com reconhecimento e estamos voltados aos grupos de produção, principalmente agrária, de produtos que se associam às cooperativas. Apesar, é claro, de muitas atitudes não fazerem parte dessa teia, ou dessa rede, onde não se encaixam todos esses padrões internacionais de gerenciamento de comércio justo e solidário. Hoje, nós não podemos mais ver só um produto. Nós precisamos comprar um produto com um conceito, com atitudes e ações. Precisamos verificar depois se isso está realmente acontecendo, porque aí é que mora o problema: há muita gente vendendo produto solidário quando, na realidade, é só um modismo. Eu acho que o consumidor precisa buscar transparência de que isso faz parte da rede. É preciso buscar comprovações e se envolver com esse comportamento novo e cultural. Saliento que virou moda agora existirem ONGs, associações e vários tipos de fundações que trabalham com pessoas carentes serem subsidiadas pelo governo.
Essas coisas são vistas como um comércio justo, como um produto solidário, que está sendo colocado no mercado. No entanto, alguns costumam fazer, sem nenhuma ética, o produto dentro desses padrões porque, na maioria das vezes, ele é tão barato que chega sem um empecilho para que outros que estão dentro dessa rede possam se colocar no mercado. Certa vez, eu fiz um questionamento: “Mas por que que vocês estão vendendo tão barato o produto que não cobre nem sequer a matéria-prima?”. Foi-me respondido que eles não visavam ao lucro, pois o governo patrocinava toda a ação deles e eles queriam somente distrair o pessoal. Isso é a contramão do processo que nós estamos falando de colocação no mercado: não pode ser visto como um produto assistencialista ou distração. É uma ação que precisa ser consolidada dentro desses padrões internacionais. Mas, na maioria das vezes, o segundo setor é quem se aproveita, compra esse produto subsidiado e ainda faz um marketing de responsabilidade social e ambiental, anunciando que está trabalhando com determinada instituição, sabendo que está comprando produto subsidiado pela área governamental.
IHU On-Line – Em sua opinião, qual é a relação entre a excelência empresarial e a responsabilidade socioambiental?
Zuleica Medeiros – Eu acho que é a de um comprometimento tão ajustado que eu não vejo essa excelência empresarial sem responsabilidade socioambiental. Porque responsabilidade social é a própria vida. Nós não podemos distanciar o produto e a produção e todas as relações que envolvem dentro de uma gestão empresarial sem o próprio envolvimento com a base, cuja estrutura de proposta é a preservação da vida. Nós estamos analisando, compartimentando o conhecimento, as ações e as atitudes, pois elas precisam começar a ser integradas para que tenhamos um amplo raio “x” da nossa realidade atual e possamos buscar realmente soluções que sejam eficazes e eficientes.
IHU On-Line – Como funciona o projeto Cidadania em Cadeia para o Direito do Futuro?
Zuleica Medeiros – O projeto tem dez anos e acontece no Presídio masculino de Florianópolis. Na realidade, ele tem um subtítulo também, que é “Reciclando papéis e papéis sociais”. Nós instalamos a nossa indústria de papel feito à mão no interior do próprio presídio, onde trabalhamos com a profissionalização de detentos em tempo real. Isso quer dizer que nós não estamos fazendo assistencialismo, nem fazendo filantropia, nem sequer ministrando cursos. O mercado está sendo feito aqui e agora na mão desses detentos. Por isso, eles aprendem todo o ecoempreendimento, ou seja, hoje o papel é visto como um exemplo de ação. No entanto, eles podem reciclar outras tantas matérias-primas ou até reaproveitar. Tudo isso para que o detento possa ter uma nova vida e quando solto consiga se recolocar no mercado. Eu acho muito interessante a comparação que um dos próprios detentos fez entre uma lata de lixo e um presídio: ele comparou a abertura do portão do presídio à abertura de uma lata de lixo, como se a prisão trouxesse os resíduos da sociedade. Nós podemos reciclar um papel e transformá-lo num produto novo, para que os clientes possam comprá-lo. Nessa comparação, os detentos vêem uma possibilidade de retorno à sociedade ativa. Eles estão conscientes de que não vão mais conseguir emprego formal, mas se pode, então, formar pequenas unidades de produtos ecologicamente corretos e socialmente justos. Dessa maneira, é possível se desviar desse caminho, que traz uma calamidade pública. Esse, afinal, é o nosso propósito.
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Consumo consciente, comércio justo e sustentabilidade. Entrevista especial com Zuleica Medeiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU