13 Fevereiro 2014
“Infelizmente até agora não temos visto nenhum comportamento de civilidade da polícia. (...) Tudo indica que em certo sentido a polícia está procurando criar e provocar violência”, avalia o jornalista.
Foto: InfoMoney |
As críticas à atuação policial nas sucessivas manifestações que ocorrem em várias cidades brasileiras desde os protestos massivos de junho passado reiteram, na avaliação de Antonio Martins, a existência de uma “violência endêmica do Estado contra a sociedade”. Assim, “a violência principal parte do Estado, parte da polícia e é incomparavelmente mais brutal do que as ações que os black blocs têm realizado”, pontua, em entrevista à IHU On-Line.
Crítico também das ações dos black blocs, Martins é enfático: “Já se tornou claro que essa tática de promover a violência estética contra símbolos do capitalismo desencadeia e legitima uma violência muito mais potente e muito mais brutal no Estado e, mesmo de elementos da sociedade que são despolitizados, uma onda geral de violência. Então, se não nos distanciamos disso, acabamos, para o conjunto da população, transmitindo a imagem de que a violência é natural, porque a polícia bate, mas os black blocs também batem. Qual o percentual da sociedade que compreende esse sentido estético da violência contra o capitalismo? 1%, 2%? Para a maioria da população isso é parte da ‘geleia geral’ da violência”. E dispara: “Na ausência de um projeto, às vezes no desespero, a única forma que o sujeito enxerga de enfrentar o capitalismo é destruindo vidraças de banco, ou às vezes jogando ‘rojão’ contra a polícia”.
Para o jornalista, as transformações sociais passam necessariamente por uma mudança de comportamento em relação à violência, a qual deve ser tratada como um “tabu”. Em conversa com a IHU On-Line, por telefone, ele chama a atenção para atitudes violentas que permeiam a sociedade brasileira, como o caso de “pessoas que provavelmente não eram da polícia” e “que acorrentaram um garoto negro a um poste no Rio de Janeiro. Ou a outro caso, que também foi revelado nesta semana, de um assassinato, com tiro a queima roupa, também por populares, de um garoto que foi apontado como ladrão na periferia do Rio de Janeiro”.
Antonio Martins é jornalista e editor do sítio Outras Palavras. Participou da construção do Fórum Social Mundial e integra seu Conselho Internacional.
Confira a entrevista.
Foto: Outras Palavras |
IHU On-Line - Como avalia a atuação da polícia nas diversas manifestações que estão ocorrendo em todo o país? A atuação policial foi abusiva? Quais são as causas?
Antonio Martins – Ela tem sido violenta, abusiva e estranha. Há registros de episódios de uma violência indiscriminada e aparentemente sem objetivo concreto nem de proteger pessoas — que supostamente seria o papel da polícia —, e muito menos de proteger o patrimônio. São episódios como, por exemplo, os do dia 13 ou 14 de junho em São Paulo, em que a polícia encurralou os manifestantes e atirou balas de borracha sem nenhum objetivo do ponto de vista da função policial.
Em outubro ocorreram outros episódios, como o quase incêndio da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ou também aquele episódio estranhíssimo em que um coronel teria sido agredido por manifestantes. Esses episódios foram marcados pelos seguintes paradoxos: havia manifestantes promovendo depredações em São Paulo, no Terminal de Ônibus do Parque Dom Pedro, e no Rio de Janeiro, na Câmara Municipal, e existem registros de repórteres de que a polícia assistiu a esses casos e não agiu em relação a esses manifestantes. Ela deveria ter agido, não com violência, mas para proteger o patrimônio. Não tem sentido depredar um terminal de ônibus. Nesses mesmos dias, a polícia dispersou com selvageria manifestantes que estavam cantando na Praça da Sé.
Infelizmente até agora não temos visto nenhum comportamento de civilidade por parte da polícia. As manifestações de junho foram quase sempre pacíficas. As manifestações mais recentes, inclusive as de 2014, têm registrado alguns episódios de violência, porém ocorrem em manifestações pequenas, e não em manifestações incontroláveis em que a polícia não pode atuar de maneira civilizada.
Então, o que me chama mais a atenção, além da brutalidade, é esse comportamento muito errático. Para complementar, episódios que ocorreram no Rio de Janeiro demonstraram que pessoas da polícia agiam exatamente como os black blocs, ou seja, atirando rojões. Tudo indica que, em certo sentido, a polícia está procurando criar, provocar violência.
IHU On-Line - A polícia recebe muitas críticas por não estar preparada para lidar com os manifestantes. É possível evitar um conflito? Em que consistiria uma polícia preparada para lidar com essas manifestações?
Antonio Martins – Não sou especialista em táticas de ação policial, porém nós verificamos, inclusive com base em experiências internacionais, que mesmo nas manifestações em que há pessoas dispostas a praticar atos de violência, a polícia não pode ter o papel de reagir com mais violência. Primeiro porque ela fere e atinge pessoas que são pacíficas; segundo porque ela representa o Estado, portanto não pode se colocar na posição de vingadora. Se existe algum manifestante que está atirando “rojão” contra outro manifestante ou contra os policiais, se está depredando banco, latas de lixo ou terminais de ônibus, a polícia tem meios, tem efetivo e tem de ter treinamento para controlar essas pessoas ou para detê-las, se for o caso. Tem uma reportagem muito boa da Tânia Caliari, na Retrato do Brasil, sobre como a atuação policial, ao tratar todos os manifestantes de modo igual e ao responder a todos com violência, parece provocar mais violência.
O black bloc é um fenômeno estrangeiro e surgiu no Brasil a partir do momento em que houve, em São Paulo e no Rio de Janeiro, ações muito violentas, muito indiscriminadas, inclusive da polícia. Então, será que não há, em certo sentido, interesse de criar a sensação de que os manifestantes são violentos também, e que, portanto, a violência é naturalizada, e assim a violência policial é muito maior?
IHU On-Line – Mas por outro lado, o senhor faz amplas críticas aos black blocs. Como interpreta, nesse sentido, o discurso deles de que se trata de uma estética da violência, de uma violência justificada e, ao mesmo tempo, como vê as ações de depredação do patrimônio público e privado nas manifestações? São ações justificáveis?
“Devemos tratar esse tipo de violência como um tabu, como algo que deve ser proibido, como algo que não é aceitável, como argumento daqueles que não têm argumento”
Antonio Martins – A violência principal parte do Estado, parte da polícia e é incomparavelmente mais brutal do que as ações que os black blocs têm realizado. Eles se dizem partidários de uma violência estética contra os símbolos do capitalismo, e a maior parte das ações deles foi mesmo nesse sentido, embora tenha havido mais recentemente outras que se transformaram em ações contra pessoas também.
Agora, as últimas semanas têm demonstrado que a violência na sociedade brasileira é endêmica e é praticada principal e esmagadoramente por aqueles que apoiam e querem manter o capital, ou até mesmo por ações de elementos da sociedade que não são muitas vezes da polícia, mas que expressam uma brutalidade conservadora. Estou me referindo, por exemplo, às pessoas que provavelmente não eram da polícia, que acorrentaram um garoto negro a um poste no Rio de Janeiro. Ou a outro caso, que também foi revelado nesta semana, de um assassinato, com tiro a queima roupa, também por populares, de um garoto que foi apontado como ladrão na periferia do Rio de Janeiro.
Então, nós que somos anticapitalistas e que queremos superar o capitalismo, deveríamos assumir claramente uma distância em relação a esse tipo de violência gratuita. Não estou debatendo as formas revolucionárias em determinados momentos muito específicos da história da sociedade em que é necessário reagir, romper. As sociedades estão preparadas para fazer grandes transformações, e há uma resistência. Muitas vezes você precisa agir com certa dose de violência para superar essa resistência, mas não é nada disso que está acontecendo no Brasil. Aqui nós temos uma violência endêmica do Estado contra a sociedade, e devemos nos distanciar completamente disso. Devemos tratar esse tipo de violência como um tabu, como algo que deve ser proibido, como algo que não é aceitável, como argumento daqueles que não têm argumento. Nós devemos mostrar que a força bruta é a ação de quem não tem argumentos.
Já se tornou claro que essa tática de promover a violência estética contra símbolos do capitalismo desencadeia e legitima uma violência muito mais potente e muito mais brutal no Estado, e mesmo de elementos da sociedade que são despolitizados, uma onda geral de violência. Então, se não nos distanciamos disso, acabamos, para o conjunto da população, transmitindo a imagem de que a violência é natural, porque a polícia bate, mas os black blocs também batem. Qual o percentual da sociedade que compreende esse sentido estético da violência contra o capitalismo? 1%, 2%? Para a maioria da população isso é parte da ‘geleia geral’ da violência.
Não se trata de uma condenação dos meninos por princípio, mas taticamente isso está se revelando um tiro no pé. Por trás disso precisamos entender um problema maior: estamos em uma situação no Brasil em que se perdeu aquilo que chamo de horizonte utópico; é uma situação diferente e grave em relação a tudo que vivemos nos últimos 30, 40 anos, porque a maior parte da esquerda entrou no Estado. Depois de um primeiro ciclo de algumas mudanças sociais importantes, o Estado está paralisado e gere uma sociedade extremamente desigual. Em contrapartida, não tem surgido, entre aqueles que são das esquerdas tradicionais, um projeto de transformação social. Então, as pessoas ficam perdidas em meio a uma sociedade muito desigual. Nesse sentido, os black blocs são, em geral, pessoas muito jovens, sinceramente anticapitalistas, mas que estão sem um projeto. Então, na ausência de um projeto, às vezes no desespero, a única forma que o sujeito enxerga de enfrentar o capitalismo é destruindo vidraças de banco, ou às vezes jogando “rojão” contra a polícia. Não podemos isolar as ações dos black blocs de um problema maior, que é a falta de um projeto utópico e a necessidade de reconstruir esse projeto utópico. Então, não tentaria resolver o problema dos black blocs simplesmente criticando-os, mas sim frisando a necessidade de reconstituir um horizonte utópico.
IHU On-Line - É possível esperar a resposta deste “projeto utópico” das esquerdas?
“Em que país nós temos hoje um projeto concreto de transformação social que não seja mais do que slogan?”
Antonio Martins – Não sei quem será essa esquerda. Não sei se serão os ativistas ou os militantes que estão nos governos. Mas para mim isso não é um problema brasileiro, é um problema mundial. Em que país nós temos hoje um projeto concreto de transformação social que não seja mais do que slogan? Nós passamos por muitas mudanças políticas nos últimos anos, teve o período do neoliberalismo, depois teve o período de reemergência da sociedade civil a partir dos Fóruns Sociais. Mas a partir de 2009 surge outro fenômeno, que é o contra-ataque dos capitalistas. No mundo todo há um processo de destruição dos sistemas de solidariedade, dos sistemas de previdência social, dos serviços sociais — a Europa é um caso típico —, e ainda não encontramos respostas para isso. Na Espanha, centenas de milhares de manifestantes do 15-M estão há dois anos organizando manifestações e a cada vez o governo aprofunda as medidas de destruição do estado de bem-estar social.
O Egito teve uma revolução e depois uma contrarrevolução. Você vê o que está acontecendo na Ucrânia, onde quem está liderando as manifestações sociais são os neonazistas. É uma situação difícil, porque ao contrário do que se via, por exemplo, a partir de 1999 — naquela época havia o esboço de criação de uma alternativa com os Fóruns Sociais Mundiais —, a crise aprofundou o ataque aos sistemas sociais. Nós ainda não encontramos uma resposta à altura. Essa resposta exige recompor o horizonte histórico, exige pensar para o capitalismo do século XXI quais seriam os pontos de um programa de transformação: é a renda cidadã para todos? É a redução da jornada de trabalho? É o apoio às redes de economia solidária? Nós precisamos mudar isso, mas não sei se essa mudança irá partir do que nós chamamos de esquerda; dificilmente. Mas tem de partir de algum sujeito social que se proponha a superar o capitalismo. Esse para mim é um dos grandes desafios.
IHU On-Line - Como interpreta a suposta criação de uma tropa de choque de dez mil homens para atuar durante a Copa do Mundo? Como entender a reação do Estado e o modo como tem lidado com as manifestações?
“Nós precisamos mudar isso, mas não sei se essa mudança irá partir do que nós chamamos de esquerda; dificilmente”
Antonio Martins – É uma atitude péssima, porque esperávamos do governo federal e de pessoas como o ministro José Eduardo Cardozo, que tem um passado democrático, que servissem de contraponto a essa violência que tem sido patrocinada pelas polícias estaduais e por alguns governos estaduais claramente ligados a projetos antipopulares e neoliberais. Ao invés disso, o governo federal, que teria poderes de em certo sentido enquadrar esse comportamento das polícias estaduais, tem reforçado e procurado fazer uma suposta articulação das medidas de segurança em relação à Copa sem criticar essas atitudes que só provocam a população.
Então, essa história da Força Nacional é exagerada, porque ela não tem efetivo; esses 10 mil policiais são os mesmos que participam das tropas de choque estaduais, os quais serão treinados e colocados em determinado momento sob responsabilidade e comando da Força Nacional.
IHU On-Line - Em que consiste o manual produzido pelo Estado Maior das Forças Armadas? Qual a orientação do manual para os militares?
Antonio Martins – Essa é mais uma das coisas estranhas. Infelizmente o ministro Celso Amorim tem razão em certa medida quando diz que não está criando a possibilidade da intervenção das Forças Armadas nas manifestações populares, porque já existe base legal para isso. Ele argumenta que está criando um protocolo para que essa ação não seja realizada sem parâmetros, porém, do nosso ponto de vista — e do dele, que se diz de esquerda, crítico às desigualdades da sociedade —, deveria se limitar ao máximo àquilo que a lei permite. E o manual, ao contrário, é baseado em termos muito parecidos com a doutrina de segurança nacional do início ao fim, só não fala claramente em inimigo interno, mas é aquela lógica e linguajar de repressão ao movimento social. Então, felizmente, o Ministro disse que vai passar um “pente-fino”, que vai rever completamente esse manual.
Em primeiro lugar, as Forças Armadas não deveriam jamais atuar na defesa da ordem pública. As Forças Armadas são — e isto é uma bandeira histórica da esquerda — para a defesa da soberania nacional, a defesa do território. Nós precisamos ter polícias preparadas para a defesa da ordem pública. Em segundo lugar, a existência de manuais de ação, seja de qual corpo de segurança for, é uma coisa positiva. Nós não temos manuais de atuação, e o ministro José Eduardo Cardozo falou várias vezes sobre isso, mas até agora, nada. Qual vai ser o protocolo de atuação das polícias durante os protestos que irão ocorrer na Copa do Mundo? Não sabemos, mas é fundamental saber.
Elas vão atuar da forma brutal como têm atuado as polícias estaduais? Então, em certo sentido a existência de um protocolo é bom, mas esse protocolo, da forma que foi redigido pelo Estado Maior das Forças Armadas, é um retrocesso ao tempo da ditadura.
(Por Patricia Fachin)
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“A força bruta é a ação de quem não tem argumentos”. Entrevista especial com Antonio Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU