18 Março 2012
Há uma abertura por parte do governo Dilma para as vozes vindas de baixo, mas “isso não quer dizer que as reivindicações tenham sido aceitas”, pondera o sociólogo, visto que “a reforma agrária continua parecendo um sonho distante, muito distante”
No que se refere à questão ambiental, o sociólogo e professor na UFRJ Ivo Lesbaupin considera que o governo Dilma não pode ser bem avaliado. “Estão projetadas 29 usinas hidrelétricas nos rios da Amazônia nos próximos dez anos. Um governo que se comporta dessa maneira não pode pretender ser defensor do meio ambiente”. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line ele afirma que “se é verdade que o governo tem maioria no Congresso, o novo Código Florestal é um acinte, no ano em que o governo brasileiro vai sediar a Rio+20 – Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Dizer que o texto da lei ficou assim por causa da bancada ruralista é desconhecer a força que o governo tem quando quer”.
Lesbaupin acrescenta que o orçamento brasileiro mostra que 45% do dinheiro vai para o pagamento dos juros da dívida pública (externa e interna), sua amortização e a rolagem. “Menos de 5% vai para a saúde, menos de 3% para a educação, menos de 1% para o saneamento básico. Traduzindo em reais: 708 bilhões de reais para a dívida, 64 bilhões para a saúde, 47 bilhões para a educação, menos de 1 bilhão para o saneamento. O que significa que, para o governo brasileiro, em primeiro lugar vêm os credores da dívida: países ricos, bancos internacionais e, dentro do Brasil, bancos nacionais e investidores financeiros”.
Ivo Lesbaupin é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Graduado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, é mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, da França. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais Igreja: comunidade e massa (São Paulo: Paulinas, 1996); e O desmonte da nação: balanço do governo FHC (Petrópolis: Vozes, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Passado o primeiro ano, qual sua avaliação do governo Dilma de forma geral e, especificamente, em relação à política ambiental?
Ivo Lesbaupin – De modo geral, pode-se dizer que o governo Dilma dá continuidade ao governo Lula: refiro-me à política econômica – ajuste fiscal, prioridade ao controle da inflação, pagamento da dívida pública e de seus juros. Também percebemos a continuidade no lugar dado ao combate à pobreza, à miséria. No que se refere à corrupção, houve novidade na atitude: o afastamento de vários ministros acusados. E há um ponto particularmente positivo, a aprovação da Comissão da Verdade, mesmo considerando as restrições de sua atuação.
No que se refere à questão ambiental, o governo Dilma não pode ser bem avaliado. A construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, projeto contestado desde a ditadura militar, interrompido nos anos 1980, ressuscitado pelo governo Lula, é a “joia” do PAC para o atual governo. Não importam os protestos dos povos indígenas e dos ribeirinhos, não importam as críticas de movimentos sociais, a oposição de técnicos, de especialistas. Técnicos do Ibama foram pressionados e tiveram de se afastar para que o projeto fosse aprovado. Sequer importa saber que existem outras fontes de energia que não destroem o habitat de populações nem as florestas.
Estão projetadas 29 usinas hidrelétricas nos rios da Amazônia nos próximos dez anos. Um governo que se comporta dessa maneira não pode pretender ser defensor do meio ambiente. Para confirmar tal afirmação, basta citar a reforma do Código Florestal. Se é verdade que o governo tem maioria no Congresso, o novo Código Florestal é um acinte, no ano em que o governo brasileiro vai sediar a Rio+20 – Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Dizer que o texto da lei ficou assim por causa da bancada ruralista é desconhecer a força que o governo tem quando quer. Por exemplo, o aumento do salário-mínimo no primeiro ano de governo foi aquele que ele queria, sob protestos das centrais sindicais, dos movimentos sociais, de setores da chamada “base” do governo.
IHU On-Line – Como seriam uma “outra economia” ou um “outro desenvolvimento” ideais para o Brasil? Dilma está caminhando em busca de soluções alternativas nesse sentido? A partir das megaobras encabeçadas pelo governo Dilma (e herdadas do governo Lula), qual a possibilidade de vislumbrarmos uma guinada no modelo de desenvolvimento centrado na produção e no consumo?
Ivo Lesbaupin – A grave crise ecológica que estamos vivendo é caracterizada pelo aquecimento global, produzido principalmente pela utilização de combustíveis fósseis, pelo desmatamento e pelas queimadas. O modelo econômico dominante precisa produzir sempre mais, fazer consumir sempre mais, para obter cada vez mais lucro. Por esta razão, avança sobre as florestas, explora os bens naturais até seu esgotamento, utiliza os bens renováveis para além de sua capacidade de reposição. A água doce é um desses bens: alguns rios importantes do mundo não chegam mais até o mar em algumas épocas do ano e, no Brasil, inúmeros pequenos riachos desapareceram. Ora, o programa principal deste governo é o PAC, Programa de Aceleração do Crescimento econômico. Crescimento significa exatamente isso, produtivismo e consumismo. No entanto, a Terra é finita: não é possível garantir a reprodução e o equilíbrio da natureza mantendo o modelo econômico atual. É absolutamente fundamental mudar de modelo. Nós precisamos produzir aquilo de que temos necessidade, cuidando para não depredar os bens naturais, para não utilizar os bens renováveis além de sua capacidade de regeneração. Precisamos urgentemente mudar de matriz energética, passando da energia proveniente dos combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão) para aquela proveniente de fontes renováveis: energia eólica, solar, geotérmica, etc. Não precisamos mais de grandes usinas hidrelétricas: a simples repotencialização das usinas existentes produziria muito mais do que Belo Monte. Os ventos que nós temos são suficientes para produzir a energia de 10 Itaipus. Os raios solares que o Brasil recebe durante o ano poderiam gerar uma energia que, associada à eólica, seria mais do que suficiente para aquilo de que necessitamos. Não precisamos barrar o rio Xingu, nem o Tapajós, tampouco o Madeira.
Energia solar
Um exemplo. Por que o governo não convoca todas as empresas fabricantes de chuveiros elétricos e as convida a se converterem em fabricantes de aquecedores solares, oferecendo empréstimos do BNDES e crédito facilitado para os consumidores? Haveria uma redução do gasto de energia elétrica impressionante. Um aquecedor solar é caro? E se se produzissem um milhão de aquecedores solares? E se se utilizassem aquecedores mais baratos (dos quais já existem projetos no Brasil)? A energia solar ainda é cara? Por que o governo não oferece recursos, via CNPq, Finep, para se multiplicarem os núcleos de pesquisa nas universidades federais visando desenvolver a tecnologia da energia solar? Afinal, o governo concede tantos recursos para grandes empresas, não poderia ajudar a ciência e a tecnologia? O Brasil teria condições de ser o primeiro em energia solar no mundo. E o sol é uma fonte permanente e gratuita.
Transportes
Um setor em que a população trabalhadora sofre muito é o dos transportes. O governo poderia investir pesadamente nos transportes coletivos, especialmente sobre trilhos (trens, metrô e outros), para que o deslocamento fosse fácil, barato e agradável. Se houvesse transportes coletivos suficientes e de qualidade para todas as áreas às quais as pessoas se deslocam, os proprietários de automóveis não teriam necessidade de usá-los para ir ao trabalho. E seria possível promover a redução de sua utilização nas áreas centrais. Isso ajudaria os moradores e trabalhadores, reduziria a emissão de dióxido de carbono, diminuiria a poluição e as doenças respiratórias, contribuiria para a redução do aquecimento global. Nós precisamos passar da civilização centrada no automóvel, no transporte rodoviário e no lucro para uma civilização centrada no ser humano, no seu bem-estar, na vida.
Isso é utópico? Há cidades em que todo o deslocamento pode ser feito por metrô, trem, bonde (tramway) e ônibus. Torna o carro desnecessário – pelo menos nos dias úteis. As pessoas podem também se deslocar frequentemente de bicicleta, sem risco de atropelamento. Há países em que o deslocamento interurbano e o transporte de cargas são feitos fundamentalmente por trem. Não polui, é mais seguro, oferece mais capacidade de transporte. O Brasil não tem recursos para isso? Ou não quer?
IHU On-Line – Observando o primeiro ano do governo Dilma, quem é o foco de suas políticas? Os cidadãos brasileiros?
Ivo Lesbaupin – Há um autor que afirma que, se você quer saber para quem um governo está trabalhando, examine o orçamento, veja onde ele aplicou o dinheiro público. Pois bem, o nosso orçamento (orçamento realizado, não o projetado) mostra que 45% vai para o pagamento dos juros da dívida pública (externa e interna), sua amortização e a rolagem. Menos de 5% vai para a saúde, menos de 3% para a educação, menos de 1% para o saneamento básico. Traduzindo em reais: 708 bilhões de reais para a dívida, 64 bilhões para a saúde, 47 bilhões para a educação, menos de 1 bilhão para o saneamento. O que significa que, para o governo brasileiro, em primeiro lugar vêm os credores da dívida: países ricos, bancos internacionais e, dentro do Brasil, bancos nacionais e investidores financeiros. O conjunto dos que recebem os juros da dívida aqui dentro não chega a 5% da população, constitui o grupo dos mais ricos.
Saúde x pagamento da dívida
Se observarmos a linha dos gastos com saúde nos últimos dez anos, veremos que ela sobe um pouquinho todo ano, lentamente, mas sem ultrapassar estes 5%. Em compensação, a do pagamento da dívida sobe muito, todos os anos. A dívida externa chegou, em dezembro de 2011, a 402 bilhões de dólares. E a dívida interna, a 2 trilhões e 500 bilhões de reais. Ela nunca cessou de crescer e nunca deixou de ser religiosamente paga. Se for preciso, o governo corta gastos sociais, para pagar os juros da dívida (que beneficia os ricos, repito), como fez recentemente.
Haveria possibilidade de ser de outro jeito? Sem dúvida: seria preciso fazer o que a Constituição manda, desde 1988: uma auditoria da dívida. A única auditoria que fizemos no Brasil, em 1931, descobriu que 60% da dívida não tinha documentos que a comprovassem, ou seja, que era falsa. A partir daí, o governo daquela época reduziu o pagamento da dívida. A auditoria da dívida que o Equador fez, em 2009, mostrou que boa parte dela era irregular. E conseguiu reduzir em 70% a dívida externa em títulos. A economia fabulosa que conseguiu foi usada na saúde e na educação.
A pequena ONG na qual trabalho tem um orçamento pequeno e nós somos obrigados a fazer todo ano uma auditoria externa de nossas contas (e nós somos a favor desse controle). Por que o governo não faz a auditoria que a Constituição exige?
Essa análise não quer dizer que o governo não faz nada pelos mais pobres: temos aí o Bolsa Família que atinge quase 50 milhões de pessoas, temos o aumento real do salário-mínimo, temos a melhoria do emprego, o crescimento do emprego formal, o “Luz para Todos” e várias outras coisas. E a população reconhece essas melhorias. Mas o governo faz mais pelos mais ricos, muito mais. É só examinar o aumento dos lucros dos bancos nos últimos dez anos. É mais do que eles recebiam no tempo de FHC.
IHU On-Line – Como avalia que tem sido a postura da presidente em relação às ONGs e demais instituições organizadas da sociedade civil? Como Dilma lida com a participação social na política?
Ivo Lesbaupin – Eis aí um campo onde indubitavelmente há avanços no governo Dilma, comparado ao governo Lula. Em apenas um ano, houve enorme progresso na discussão do marco regulatório para as organizações da sociedade civil, desde reuniões com a Secretaria Geral da Presidência até um seminário reunindo ministros de Estado e representantes da sociedade civil. Constituiu-se uma comissão nacional para elaborar o conteúdo deste marco regulatório. A presidente Dilma recebeu representantes da sociedade civil por ocasião do Fórum Social Temático em Porto Alegre, em janeiro. Ouviu as reivindicações e os reclamos desses representantes. Há, pois, uma abertura por parte do governo para as vozes vindas de baixo. Isso não quer dizer que as reivindicações tenham sido aceitas; a reforma agrária continua parecendo um sonho distante, muito distante. Entre a pressão dos setores empresariais por privatização e as pressões dos movimentos sociais contra, a primeira tem levado a melhor.
Se, até 2010, a principal diferença nas campanhas eleitorais, entre o PT e o PSDB, era o tema da privatização, parece que essa etapa foi superada. Eu diria que a privatização não foi totalmente interrompida, na passagem do governo FHC ao governo Lula. Um exemplo: depois de quebrar o monopólio da Petrobras, FHC introduziu os leilões das áreas de exploração do petróleo. Isso ocorre todo ano, desde 1997: áreas onde pode haver petróleo são leiloadas, empresas privadas podem comprar estas áreas e, se acharem petróleo, podem explorar à vontade, em seu próprio benefício particular. Em outras palavras, o petróleo que era nosso (patrimônio do povo brasileiro) passa a ser delas (privado). Algumas dessas empresas se tornaram bilionárias depois de achar nosso petróleo. Os movimentos de trabalhadores lutam todos os anos para interromper leilões desse tipo. Mas o governo Lula os manteve e o governo Dilma não fez menção de suspendê-los. Isso significa que a privatização do nosso petróleo continua. Bem antes da privatização dos mais rentáveis aeroportos do país.
IHU On-Line – Em uma entrevista concedida à nossa publicação antes das eleições, o senhor ponderou que a eleição de Dilma (em lugar da eleiçao de Serra) seria melhor para a sociedade. Como avalia esta perspectiva hoje?
Ivo Lesbaupin – Continuo fazendo esta avaliação hoje: o governo Lula manteve a política econômica de FHC – que privilegia os bancos, o capital financeiro –, mas não fez apenas isso: introduziu também uma série de políticas que melhoraram a sorte do povo brasileiro, especialmente dos mais pobres. Minha avaliação era de que o governo Dilma continuaria, no essencial, a política de Lula. Todas as críticas que faço ao governo Lula e, agora, ao governo Dilma, não significam que eu prefiro o governo anterior, de FHC. Aquele era um governo neoliberal “puro”, digamos assim; este é um governo neoliberal também, porém contém também algumas políticas voltadas para os trabalhadores e os mais pobres. Há diferenças, portanto. Mas nem o governo Lula nem o governo Dilma mudaram as estruturas geradoras da desigualdade. Dizem que a desigualdade social vem diminuindo. Essa não é a verdade inteira. O índice de Gini – que se utiliza geralmente para medir o grau de desigualdade em cada país – vem melhorando. Tal índice se baseia nos dados da PNAD, que capta os rendimentos das famílias (salários, aposentadorias, pensões). Ele não leva em conta toda a renda interna do país. O que os mais ricos ganham com juros, lucros, etc., não é captado pela PNAD (ver a análise feita pelo economista Guilherme Delgado). A camada mais rica do país, o 1% mais rico, por exemplo, ficou muito mais rico nesses últimos anos (graças, em boa parte, aos juros reais mais altos do mundo). Os mais pobres melhoraram, mas os mais ricos melhoraram muito mais: a desigualdade social aumentou. Para citar um dado de fácil verificação, que os jornais gostam de noticiar: os lucros dos bancos aumentam a cada ano, muito acima da inflação. Ora, os salários são aumentados em torno do índice da inflação. Nos últimos oito anos, os ganhos das cinco maiores instituições financeiras do Brasil aumentaram mais de 300%, enquanto a inflação ficou em 55%. Isso comprova que a distância entre os mais ricos e os mais pobres está aumentando.
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"Não há mudanças nas estruturas geradoras da desigualdade". Entrevista especial com Ivo Lesbaupin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU