20 Mai 2010
Criada com o intuito de sensibilizar as populações da região do Tapajós de maneira educativa, a Cartilha em Defesa do Rio Tapajós ilustra as verdades e mentiras sobre a construção de cinco hidrelétricas na Amazônia pelo governo federal. O documento está sendo distribuído para movimentos sociais e comunidades que devem ser atingidas pelas hidrelétricas, e foi alvo de uma polêmica na mídia nacional.
Acusada de incentivar a violência, elucidando possíveis brutalidades por parte dos povos indígenas da região, a cartilha foi condenada pelo jornal Folha de S. Paulo por ser negativa e incriminadora. Nesta entrevista, concedida por telefone, padre Edilberto Sena, idealizador do documento e coordenador da Rádio Rural AM de Santarém no Pará, diz que uma eventual reação violenta por parte dos Munduruku seria apenas uma resposta à maneira como o governo federal vem lidando com esta questão, sem qualquer tipo de diálogo e preocupação com o povo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi o episódio em que a Folha noticiou a Cartilha em Defesa do Rio Tapajós?
Edilberto Sena – Alguém do jornal Folha de São Paulo viu alguma informação sobre nossa cartilha e me telefonou pedindo esclarecimentos. Perguntou se eu era, de fato, um dos membros do Frente em Defesa da Amazônia, um movimento popular de nossa região, e se fazíamos parte da produção da cartilha. Expliquei que sim, que nossa cartilha tem uma função educativa para sensibilizar as populações da região, já que o governo está fazendo um trabalho sorrateiro para implantar hidrelétricas no Rio Tapajós, sem negociar e dialogar com o povo.
Desde 1996, a Eletrobrás, através da Eletronorte, vem estudando e articulando para fazer este projeto
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"O que mais foi comentado é que a cartilha é negativa e incriminadora" |
pessoa da Folha de São Paulo disse que achava a cartilha muito pesada e que estávamos incentivando o crime. Perguntei se esta pessoa aceitava que eu escrevesse uma explicação dos motivos de nossa cartilha ser inocente. Aí, fiz a carta para o jornal, dizendo que, no entendimento do coletivo da região, sentimos que quem está sendo criminoso é o governo federal, que quer implantar cinco mega-hidrelétricas na bacia do Rio Tapajós sem levar em consideração nossas culturas e vidas. Lamentavelmente, o primeiro articulista (João Carlos Magalhães) fez uma menção muito rápida sobre o que eu disse. O que mais foi comentado é que a cartilha é negativa e incriminadora. O outro articulista, Cláudio (Angelo), foi quem colocou mais informações da carta.
IHU On-Line – Na sua carta-resposta, o senhor diz que qualquer atitude de inconformismo de movimentos sociais é logo considerada insubordinação à ordem democrática. Como isso acontece em relação ao movimento contra as hidrelétricas no rio Tapajós?
Edilberto Sena – Estamos sendo agredidos, principalmente, em nossa região, no oeste do Pará. A situação é muito grave. Somos agredidos pelas madeireiras, pelos plantadores de soja que vieram do Mato Grosso do Sul, e pelas mineradoras estrangeiras, como a Alcoa, a Rio Tinto, a Mineração Rio do Norte. Essas empresas estão nos agredindo, dizendo que somos preguiçosos, que caboclo não sabe aproveitar a riqueza que tem. Por último, vem o governo federal e, subserviente a essas grandes empresas, decide implantar essas hidrelétricas na região, tanto no Rio Xingu, que é vizinho nosso, como no Rio Tapajós.
Nos sentimos agredidos. A Amazônia é tratada pelo governo central e pelas grandes empresas, tanto do
"Nos sentimos agredidos" |
sul quanto do estrangeiro, como uma colônia, do mesmo jeito que o Marquês de Pombal tratava nossa região. Eles chegam aqui, tomam conta, mudam de nome, como se fôssemos uma colônia de pessoas sem raciocínio. Sentimos, também, que o próprio governo federal, que elegemos por dizer que ia mudar o modelo de administração da nação brasileira, trata os povos da Amazônia como descartáveis.
O Presidente da República chegou a dizer que os obstáculos ao crescimento econômico do Brasil são os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, as ONGs e até o Ministério Público Federal. Comparo, em menor escala, nossa polução com o povo palestino diante de Israel, que os trata como descartáveis. Nosso governo e as grandes empresas esquecem que são 25 milhões de seres humanos que vivem na Amazônia. Eles querem que fiquemos calados, de braços cruzados e democraticamente subservientes.
IHU On-Line – O governo federal não fez nenhum contato com os povos da região?
Edilberto Sena – Pela lei brasileira, um parque nacional é uma área sagrada e intocável, só se pode entrar lá para fazer turismo guiado e pesquisa orientada. O conselho nos convidou para uma conversa junto à Eletronorte em Itaituba. Vieram três engenheiros da Eletronorte, dois de Brasília e um de Manaus, e dialogamos na mesa redonda. Eles nos mostraram seu lado, e mostrei nossa preocupação e os dados, que também estão em nossa cartilha. Os engenheiros se calaram e não toparam o desafio de dialogar. Eles nos mostraram um documentário chamado “Complexo Tapajós”, que, para nós, é uma indignação. É tecnicamente bem feito para iludir os desavisados. Fui mostrando como tudo aquilo é mentira, essa história de escadinha para peixes, de plataforma, de impactos mínimos e de recuperação da floresta. Eles querem que engulamos isso.
Depois o conselho pediu que nos afastássemos. Ele se reuniu e decidiu que irá defender o parque nacional de acordo com a Constituição brasileira, não de acordo com os truques do Ministério de Minas e Energia. Posteriormente, eles foram à Câmara de Vereadores de Itaituba com a Eletronorte. A Eletronorte pega esse vereadores, que já têm um passado triste porque venderam o direito de isenção à fábrica de cimento Caima, coloca-os em um avião, leva-os para Itaituba, mostram a eles as belezas da cidade. Os vereadores de Itaituba, que terão de assinar uma licença de trabalho, estão aplaudindo. Após isso, a Câmara de Vereadores de Santarém, vendo que a coisa estava sendo discutida, convocou a Eletronorte e a nós para um debate na câmara. A Eletronorte não compareceu, fiquei falando sozinho, mas aproveitei para falar sobre as informações que temos. É isso que o governo federal está infligindo para o norte.
Um vereador me disse que viu as difamações, ficou impressionado e estava disposto a tirar dinheiro do próprio salário para ajudar a montar uma cartilha que sensibilizasse a população sobre o que está acontecendo. Outros resolveram ajudar, como os grupos dos Franciscanos, dos Padres do Verbo Divino, nosso próprio grupo, e a ONG Fase, de Belém. Assim montamos esta cartilha que está sendo divulgada. O que sentimos hoje é que não há diálogo por parte do governo. Apenas alguns sites na Internet têm mostrado quais são os planos que o governo tem para nossa região.
IHU On-Line – A Cartilha em defesa do rio Tapajós sugere alguma reação às hidrelétricas?
Edilberto Sena – Não vamos organizar um exército ou uma guerrilha porque nosso povo é muito pacato. O que queremos com nossa cartilha é que as populações, primeiramente, se deem conta do que estão
Praia em Santarém, no Pará |
armando para nós. Depois de construir uma barragem – só a primeira tem 36 metros de altura –, o Rio Tapajós será estancado, e isso irá atingir até as belas praias de Santarém. Tem uma foto na cartilha mostrando a cidade de Santarém no verão passado, quando o Rio Amazonas domina o Rio Tapajós e invade a frente da cidade com água barrenta. Imagine se fizerem de fato uma barragem fechando o Rio Tapajós e deixando escorrer a água só pelo buraco de cima da turbina. Deste modo, irá atingir todas as praias até Santarém. Estamos tentando ilustrar, também, para as pessoas mais simples e de periferias.
A pedido do SESC, fiz uma exposição para pessoas que estavam participando de uma reunião da associação. Eram pessoas humildes e simples. Levei o documentário bandido do governo e a cartilha. Pedi para um leigo ler a carta dos índios Munduruku. Na medida em que as pessoas leem isso, vão vendo a seriedade da informação e confiando na nossa reputação de informantes. E esse é só o primeiro ponto de nossa cartilha.
IHU On-Line – E qual é o segundo?
Edilberto Sena – O segundo é que, despertando a consciência, a cartilha amplia a Aliança Tapajós Vivo. As pessoas que tomam consciência se unem nessa luta para que tentemos empatar esse desastre econômico, social e ecológico em nossa região. Teremos que fazer alguma forma de empate, seja fechando o rio, bloqueando as rodovias, contanto que a sociedade brasileira, que fala da preservação da Amazônia, compreenda o que acontece conosco assim como a situação de Belo Monte. Estou maravilhado com o pessoal do sul, do nordeste e até do estrangeiro, que se dá conta da situação de Belo Monte. O que me deixa triste é o presidente, que já andou na Amazônia enquanto era candidato, que já foi um flagelado do nordeste, simplesmente nos considerar descartáveis.
Nossa energia hoje vem de Tucuruí. Para nossa surpresa veio um alemão querendo fazer um documentário sobre Tapajós. Quando ele chegou à comunidade de São Luiz, viu os postes de rua e perguntou o que eram. Era a energia de Tucuruí, que já chega no alto do Tapajós. Aí perguntam por que vão fazer outras hidrelétricas se já temos energia abundante. É isso que queremos com nossa cartilha, conscientizar.
IHU On-Line – Em que fase está o projeto de construção das hidrelétricas no rio Tapajós?
Edilberto Sena – O que sabemos é o que anuncia Tomas Kim, da Eletrobras, que, ainda no ano de 2010, eles irão fazer a abertura do leilão das hidrelétricas do Tapajós. Eles já fizeram os cálculos de quanta energia será gerada em São Luiz, em Jatobá, em Caí e em Ilha dos Patos. Eles analisam tudo pelo lado técnico e econômico. As hidrelétricas do Tapajós, juntas, gerarão 95% daquilo que eles anunciam que gerará Belo Monte, com a vantagem de que, no Tapajós, a diminuição da força da água é menor do que no Xingu. Tanto que os críticos estão dizendo que Xingu gerará 11 mil megawatts no inverno, mas vai gerar 1.500 no verão. No Tapajós, até agora, não disseram quanto será produzido no verão, mas certamente será mais do que Belo Monte.
IHU On-Line – Que tipo de informações estão chegando para os povos da região que serão atingidos pelas obras das hidrelétricas do rio Tapajós?
Edilberto Sena – O povo Munduruku é composto por cerca de 15 mil pessoas, em 105 aldeias. Eles tiveram uma assembleia de caciques há um mês, em frente à cidade de Jacareacanga. O pessoal da Frente em Defesa da Amazônia esteve lá, a convite deles, para levar cartilhas. Os Munduruku terão suas terras tomadas, por isso, os índios mandaram uma carta ao presidente Lula. Os índios mandaram dizer ao presidente que precisam do rio e da floresta, que não vai admitir que o governo venha tomar aquilo que é deles e que estão dispostos a enfrentar o governo. Nesta carta, havia um desenho de dois índios. Um deles estava com um tacape e uma flecha na mão e o outro com a cabeça sangrando. Os jovens quiseram dizer que nossos antepassados, quando iam para a guerra, cortavam a cabeça do inimigo, cozinhavam-na e comiam-na. Isso simboliza a cultura do povo Munduruku, um povo guerreiro. Publicamos esse desenho na carta, e a Folha de São Paulo e outros jornais de direita disseram que estamos estimulando o crime e a violência. O povo que escreve isso não raciocina, ou não quer raciocinar, que a violência está vindo de Brasília para cá. A violência é invadir sem dialogar.
Recentemente, o sítio Globo.org entrou em contato comigo, pediu-me uma cópia da cartilha para publicar. A entidade já sabia que nossa cartilha tem, em cada página, para facilitar a compreensão do povo, quadrinhos com historinhas. Um artista popular fez os quadrinhos muito bem e reproduziu a cultura Munduruku. Um deles traz uma freira perguntando para uma índia o que está para acontecer, e a índia com facão na mão dizendo que ia defender sua terra custe o que custar. O Globo.org queria publicar justamente este desenho, e não permiti. Ele me acusou de tirar seus direitos de expressão, mas disse que foi ele quem tirou meus direitos para utilizar o desenho de uma maneira desonesta e descontextualizada. Querendo dizer: Veja como o pessoal está revoltado e querendo fazer guerrilha. Fiquei chateado, mas mandei a cartilha para ser divulgada e proibi a divulgação daquela foto..
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As usinas do Rio Tapajós em debate na Cartilha. Entrevista especial com Edilberto Sena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU