22 Janeiro 2010
Em um breve retrospecto histórico das principais questões da Igreja – do atual papado ao Vaticano II, alcançando também as reduções jesuíticas –, John W. O'Malley, um dos historiadores da Igreja mais respeitado e reconhecido dos Estados Unidos, analisa, nesta entrevista, as posturas da Igreja diante de alguns desafios históricos das últimas décadas.
E critica, logo de início, a centralidade europeia que a Igreja ainda sustenta. Por e-mail, o jesuíta e professor da Georgetown University com doutorado em Harvard, afirma que, "se tivermos um outro Concílio em breve, ele deveria acontecer no Rio ou em Manila ou em algum outro lugar fora do `centro` em Roma". Porém, reconhece que talvez essa não seja a melhor forma de tratar dos problemas internos. Segundo ele, é importante tentar testar, pelo menos uma vez (ou mesmo pela primeira vez) algumas normas e instituições aprovadas pelo Vaticano II para uma ampla consulta a toda a Igreja.
Para O'Malley, porém, o Vaticano II não foi uma ruptura na história da Igreja, pois não houve "uma quebra radical com a Tradição". "Essa é uma acusação irresponsável lançada sobre historiadores responsáveis por pessoas que falam mais a partir da ideologia do que do exame dos escritos dos historiadores que elas atacam". Pessoas, por exemplo, como os lefebvrianos, indica o historiador.
Padre jesuíta, historiador da Igreja e professor de teologia da Georgetown University, de Washington, nos Estados Unidos, John W. O'Malley é doutor em história pela Universidade de Harvard. Também lecionou em diversas outras instituições, como na própria Harvard e na Universidade de Oxford. É membro da Fundação Guggenheim, da Academia Norte-Americana de Artes e Ciências e da Sociedade Filosófica Norte-Americana.
Seu livro mais conhecido, "The First Jesuits" [Os primeiros jesuítas], foi traduzido para mais de dez idiomas. Especialista em Concílios, com especial atenção ao Concílio de Trento e ao Concílio Vaticano II, é autor de "What Happened at Vatican II" [O que aconteceu no Vaticano II] (Ed. Harvard) e "A History of the Popes" [Uma história dos Papas] (Ed. Sheed and Ward).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir de um ponto de vista histórico, como o papado de Bento XVI está moldando a face da Igreja e da vida dos fiéis?
John W. O'Malley – Até agora, o papado de Bento XVI foi caracterizado por gestos menos dramáticos do que o de João Paulo II, o que é um reflexo de sua personalidade e profissão como acadêmico. Embora o Papa tenha viajado para fora da Europa, eu considero suas preocupações e a forma pela qual certas cerimônias são desenvolvidas no Vaticano surpreendentemente eurocêntricas. O italiano, por exemplo, está substituindo o latim como a "língua universal" da Igreja, assim como as liturgias preparadas para o Sínodo para a África pareceram indicar. Ele conquistou admiração nos Estados Unidos pela forma como se apresentou por aqui em sua visita há mais de um ano. Diferentemente de João XXIII e de João Paulo II, ele é difícil de ser lido.
IHU On-Line – Relendo o Vaticano II, como o senhor analisa as recentes negociações entre a Igreja e os lefebvrianos, anglicanos e ortodoxos? O que isso pode indicar para o futuro da Igreja no século XXI?
John W. O'Malley – Eu estou perplexo com as negociações com os lefebvrianos. Eu certamente aprecio medidas para tentar achar um caminho de reconciliação, mas não vejo como a reconciliação seja possível, já que eles mantêm sua rejeição categórica aos elementos chave do Vaticano II, um Concílio ecumênico cujos documentos foram assinados pelo papa reinante e por cerca de 2.300 bispos. Eu não tenho nenhum comentário acerca da situação anglicana, exceto que uma decisão tão importante relacionada a eles, tomada de um modo tão unilateral, me impressiona, considerando a tentativa ecumênica do Vaticano II.
IHU On-Line – Em seu livro "What Happened at Vatican II", o senhor nos apresenta um "livro básico" que oferece uma "story line essencial". Em linhas gerais, o Vaticano II signficou uma ruptura ou uma continuação com o passado da Igreja?
John W. O'Malley – Toda história é tanto contínua quanto descontínua. Eu não conheço nenhum bom historiador que diga que o Vaticano II foi uma ruptura na história da Igreja no sentido de que foi uma quebra radical com a Tradição. Essa é uma acusação irresponsável lançada sobre historiadores responsáveis por pessoas que falam mais a partir da ideologia do que do exame dos escritos dos historiadores que elas atacam. As únicas pessoas que sustentam que o Vaticano II foi uma ruptura são os lefebvrianos, mas eles parecem ser capazes de dizer isso sem provocar a crítica oficial (ou não oficial).
IHU On-Line – Qual é a atualidade do Vaticano II na Igreja de hoje? Invertendo o título do seu livro, o que está acontecendo com o Vaticano II na teologia e na liturgia da Igreja de hoje?
John W. O'Malley – Essa questão é tão global que é impossível respondê-la satisfatoriamente. Uma coisa está clara a partir da história. Nenhuma "restauração" jamais restaura o passado, pela simples razão de que a situação/contexto já mudou daquilo que era no passado. Quando os artistas do Renascimento italiano tentaram reproduzir e reavivar a arte do mundo clássico, eles, de fato, criaram algo novo. A questão muito agitada hoje sobre a liturgia é muitas vezes apresentada em termos de sabor pessoal, reduzindo-se a questões de estética. A [Constituição Conciliar] "Sacrosanctum Concilium" foi, porém, um documento eclesiológico tanto quanto litúrgico e, assim, está exatamente no centro do significado do Concílio.
IHU On-Line – Quais são os principais "sinais dos tempos" hoje que desafiam a Igreja contemporânea?
John W. O'Malley – Outra questão fácil de se pôr, impossível de se responder. Eu recém li um livro memorável do jornalista católico norte-americano John Allen, intitulado "The Future Church". Ele lista 10 tendências que irão moldar a Igreja no futuro, mas cada uma das tendências que ele qualifica chegam ao ponto que todos nós sabemos, que é que a Igreja será muito diferente mesmo daqui a 50 anos. Nesse sentido, três países africanos estarão entre os países com a maior população católica do mundo. E essa é só a ponta do iceberg!
IHU On-Line – Em sua opinião, é necessário um Vaticano III ou um novo Concílio para atualizar a Igreja diante das recentes mudanças históricas?
John W. O'Malley – Eu sou contra um Vaticano III. Se tivermos um outro Concílio em breve, ele deveria acontecer no Rio ou em Manila ou em algum outro lugar fora do "centro" em Roma. Eu não tenho certeza, de todos os modos, de que um Concílio seja a melhor forma de tratar desses problemas intratáveis. O Vaticano II tentou estabelecer normas e instituições para uma ampla consulta na Igreja em uma base contínua. Por que não testá-las por um tempo?
IHU On-Line – Em 2010, o IHU irá promover um Simpósio Internacional intitulado "A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade", para refletir sobre a experiência das reduções jesuítas em nossa região. Como podemos ler essa história de lutas de fé e sociais hoje?
John W. O'Malley – As Reduções foram uma experiência nobre para a justiça social e mesmo para a teologia "em campo". Não devemos pensá-las, claro, como completamente aproblemáticas. No entanto, em geral, os jesuítas mostraram uma sensibilidade à situação local que lhes permitiu resolver problemas difíceis de uma forma criativa e também mostraram a coragem para perseverar na tarefa, mesmo sob a pressão de autoridades mais altas na Igreja e no Estado para que desistissem.
IHU On-Line – O que os primeiros jesuítas que chegaram à América Latina trouxeram para as nossas terras em termos culturais, religiosos e sociais? Como eles ajudaram a construir a nossa história latino-americana e que legado deixaram para nós?
John W. O'Malley – Essa questão exigiria um livro para ser respondida. Com certeza, há aspectos positivos e negativos com relação aos jesuítas. A partir do que li, porém, os primeiros jesuítas no Brasil deixaram uma admirável recordação de conquistas positivas em termos de tentar tratar os povos indígenas com dignidade e proteger seus direitos, em termos de legado cultural musical, preservação das línguas indígenas e a fundação de importantes instituições educacionais. José de Anchieta é, da forma como compreendo, merecidamente um herói nacional.
(Reportagem e tradução de Moisés Sbardelotto)
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"Outro concílio? Só se for em Manila ou no Rio, não em Roma" Entrevista especial com John W. O"Malley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU