02 Setembro 2009
“Os estudos são fundamentais para que se possa solucionar, de uma vez por todas, a questão fundiária no MS. Portanto, como tal, eles são benéficos para todos os setores envolvidos, para todo o setor agrário do MS, sejam eles do agronegócio ou de qualquer outro interesse que seja estabelecido, pois a não definição das terras indígenas implica também a não definição de uma série de possibilidades de ações no campo”, diz Egon Heck, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line. Na conversa que tivemos, Heck fala sobre a atual situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, principalmente agora quando os estudos antropológicos para a identificação das terras indígenas no estado foram retomados.
Ele opina também sobre a influência da política e do agronegócio na região, ainda mais quando envolve os índios e as terras que dizem ser suas, mas que, sabidamente, boa parte delas pertence aos povos originários. “Haja um bom senso na definição das medidas a serem tomadas e que haja uma compreensão mínima daquilo que os próprios procuradores da república da região estavam propondo, no sentido do diálogo e do entendimento para achar os canais mais rápidos de definição e de retorno das terras aos povos indígenas”, comentou.
Egon Heck é coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Mato Grosso do Sul.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Foram retomados os estudos antropológicos para identificação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul. O que isso significa?
Egon Heck – Significa, por um lado, a retomada da esperança de que finalmente o Governo Federal compra a Constituição, no que diz respeito à demarcação da terra dos Kaiowá-Guarani. Com os indígenas, uma vez mais, depositamos a confiança de que a retomada do processo não mais seja interrompida pelas pressões dos interesses anti-indígenas, articulados desde o governador do estado até os vereadores e sindicatos rurais, e de que efetivamente o processo normal de regularização da terra, essa primeira etapa da identificação, seja concluído o mais breve e urgente possível. Por se entender a proximidade do ano eleitoral, de fato, isso acabe entrando num processo de maiores dificuldades para a identificação, demarcação e garantia das terras. Essa retomada significa que seja feita de uma forma, agora definitiva, com todas as condições em termos técnicos, financeiros e mesmo de estrutura e de segurança necessários. E, dentro do calendário, apesar desse ser estabelecido no termo de ajustamento de conduta que previa o fim das identificações até o dia 30 de junho, portanto, já há dois meses se passa este prazo, mas que não leve outros dois meses para se concluir, que isso possa ser feito o mais breve possível.
IHU On-Line – Quem está fazendo esse estudo?
Prof. Egon Heck – O estudo retorna com os seis grupos de trabalho, que vão pelas bacias dos rios, nos quais estão as populações indígenas Kaiowá-Guarani e nos quais estão esses tekohá, as terras tradicionais deste povo. O rio Iguatemi, que tem dois grupos de trabalho, logo em seguida o rio Amambaí, Amambaí Peguá, depois o Dourados Peguá, que pega a bacia do rio Dourados até o limite do rio Brilhante, Brilhante Peguá e no outro já é um afluente que vai pro rio Apa, Apa Peguá que já são águas que correm para o rio Paraguai. Esses seis grupos de trabalho são coordenados por seis antropólogos que têm um renomado conhecimento da questão indígena Kaiowá-Guarani e mais outros técnicos que estão integrados e ligados às áreas de história e de área ambiental. Integram esses grupos pessoas que realmente possam estar fazendo este trabalho, e que tenham consciência de que, enquanto funcionários públicos, não apenas têm uma missão a cumprir quanto um dever como funcionário, mas principalmente, um compromisso vital com povos e vidas que estão em jogo. Se este trabalho não for feito com a máxima seriedade, com o máximo de empenho e de espírito científico e técnico, poderá acarretar sérios sofrimentos e dores para estes povos.
IHU On-Line – Como o estudo pode contribuir para que os problemas dos Kaiowá-Guarani do MS diminuam?
Prof. Egon Heck – Os estudos são fundamentais para que se possa solucionar, de uma vez por todas, a questão fundiária no MS. Portanto, como tal, eles são benéficos para todos os setores envolvidos, para todo o setor agrário do MS, sejam eles do agronegócio ou de qualquer outro interesse que seja estabelecido, pois a não definição das terras indígenas implica também a não definição de uma série de possibilidades de ações no campo. A solução é, em primeiro lugar, uma questão de justiça e de perspectiva de futuro para os povos indígenas, que é fundamental a identificação. Em segundo lugar, para que os próprios conflitos, as mortes e os sofrimentos, principalmente por parte dos povos indígenas que sofrem este impacto, possam de fato serem equacionados com esta identificação e demarcação das terras Kaiowá-Guarani. E em último, seja do ponto de vista econômico e mesmo do ponto de vista ambiental, é extremamente útil para toda a região e para toda a população que se defina as terras indígenas o quanto antes.
IHU On-Line – A pressão do governador do Mato Grosso do Sul (MS) é algo que tem aumentado o problema dos povos indígenas da região. Qual o cenário político que se apresenta no MS para as eleições do próximo ano?
Prof. Egon Heck – Essa é uma questão bastante complexa, que diz respeito às perspectivas que a população do MS queira escolher enquanto o seu processo de desenvolvimento, com justiça social e com respeito aos direitos das populações. Pelo quadro posto até aqui, infelizmente é a realidade, o governo atual é totalmente contra um dos direitos constitucionais dos povos que estão nessa região, que são os povos indígenas. O que a gente entende é que, até do ponto de vista de um homem público, não poderia se dar desta forma. Infelizmente isto acontece e como tal nós esperamos que não se repitam estas questões com a reeleição do atual governador.
IHU On-Line – De que forma os fazendeiros do estado estão impedindo os pesquisadores de realizar o estudo?
Prof. Egon Heck – As formas de ação dos fazendeiros do agronegócio têm sido, infelizmente, virulentas, violentas e, inclusive, com um tom de racismo marcante, de discriminação e preconceito. Elas têm se dado desde a utilização massiva da imprensa local contra os índios com difamações, com discursos totalmente racistas contra eles, isto do ponto de vista da mídia, de jogar a população contra os índios. Em segundo lugar, na própria realidade, tem aumentado o contrato das empresas de segurança, ou seja, as próprias forças que vão se armando na região em formas de defesas particulares, de jagunços, têm aumentado. Em terceiro lugar, a própria reação contrária aos índios tem sido fomentada pelo governo estadual através da doação de recursos para que as prefeituras possam também contribuir com obstáculos ou inibições do processo de identificação. E, por último, ações de atemorização, de intimidação e de ameaças dos próprios fazendeiros, e ações concretas de prisão de antropólogos que estiveram tentando fazer trabalhos nas áreas. Nós percebemos que é uma ação ampla, articulada em todos os níveis pelos fazendeiros e pelo agronegócio, para tentar impedir a identificação das terras.
IHU On-Line – Se a própria Funai não consegue ter segurança sobre a sua ação no MS, quem deveria agir para que o processo de identificação dos territórios indígenas decorra de uma forma mais ágil e coerente com a Constituição?
Prof. Egon Heck – Aí é uma questão de chamada, de cidadania, de bom senso de toda a população regional, de todo o país e de todos os amigos e amantes da justiça no mundo inteiro, para que se faça um processo de pressão, para que se cumpram as leis do país, a lei maior, a Constituição, e as leis internacionais que garantem aos povos indígenas a sobrevivência dentro dos seus territórios, conforme as suas organizações sociais, sua cultura e sua maneira de ver o mundo. Que isto seja garantido de uma maneira ampla e de uma maneira prática e concreta, com que o próprio governo federal não apenas fique nas boas intenções de dizer que vai resolver o problema Kaiowá-Guarani, mas que tome todas as medidas necessárias do ponto de vista jurídico, da solicitação do apoio da polícia federal para que o trabalho aconteça efetivamente nas áreas das fazendas, os trabalhos necessários para a fundamentação das próprias terras indígenas. Enfim, esperamos que haja um bom senso na definição das medidas a serem tomadas, bem como uma compreensão mínima daquilo que os próprios Procuradores da República da região estavam propondo, no sentido do diálogo e do entendimento para achar os canais mais rápidos de definição e de retorno das terras aos povos indígenas. Que haja realmente este esforço amplo e de uma forma acelerada para que esse sofrimento dos Kaiowá-Guarani, resultado em centenas de mortes nos últimos anos, uma violência institucionalizada igual às regiões mais conflituosas do mundo hoje. Que isto possa, de uma vez por todas, começar a ser resolvido a partir desse processo de identificação, a partir desse mutirão de força para a resolução do problema, e de uma ampla mobilização nacional e internacional para que isso aconteça.
IHU On-Line – A cultura da cana continua crescendo no MS? A influência dessa cultura está ligada a essa pressão contra as demarcações?
Prof. Egon Heck – Infelizmente a implantação e expansão da cana-de-açúcar na região em função, principalmente, dos altos rendimentos da commodity do etanol, acaba tendo um reflexo imediato sobre a questão da identificação e reconhecimento das terras indígenas. Em primeiro lugar, pela valorização grande, do ponto de vista econômico do próprio valor das terras, que em várias regiões passaram de cinco mil reais o hectare, para 8 ou 10 mil reais o mesmo hectare. Em segundo lugar, a implantação da cana traz uma consequência muito forte sobre o meio ambiente, no sentido da destruição da fertilidade do solo, dos microorganismos, da questão ambiental onde há restos de plantação na via de floresta. Esta acaba sendo sacrificada na parte das melhores terras, que, tradicionalmente, é onde hoje se localizam os tekohá, as terras tradicionais dos Kaiowá-Guarani. A expansão da cana tem impacto direto e imediato sobre o próprio processo de postura, contrário à demarcação das terras indígenas.
Acredito que é muito importante, neste momento em que se retoma a fase final do processo de identificação das áreas, que haja realmente uma cobrança para que isso vá até o seu final e não ocorra, em nenhum dos níveis do ponto de vista jurídico e físico da repressão, qualquer tipo de ação que faça com que o processo seja novamente, como foi tantas vezes, interrompido e adiado. Que possa ir até o fim com tranquilidade e que se possa pensar em todos esses mecanismos, que são possíveis dentro de um diálogo necessário, mas também dentro de um espírito de justiça histórico urgente, e que seja feito esse mutirão para a conclusão das identificações. Estamos vindo agora de uma viagem de várias dessas áreas sob forte impacto, e é um grito que vem do fundo, não só da alma das resistências, da dor e da esperança desses povos, que de uma vez por todas se resolva este problema.
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Retomada da esperança. Entrevista especial com Egon Heck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU