27 Junho 2009
“Não é a toa que até hoje o mundo inteiro se debate nas grandes crises de humanidade, crises política, social, econômica, religiosa e espiritual. Podemos dizer que, graças aos povos indígenas, é que o planeta e a humanidade ainda têm algo de vida, e conseguiram isso sem importantes palavras, mas com sua vida de relação terna e harmoniosa com a mãe Terra.” Essa é a opinião defendida pela teóloga Ernestina López Bac, da Guatemala. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela afirma que a força motivadora da ação dos povos indígenas latino-americanos “vêm deste mover-se em conjunto, de organizar-se para cantar ao mundo que enquanto nos crermos donos, cada vez mais iremos cavando nossa própria sepultura”. Segundo ela “é a memória de ser pessoa e povos com identidade, a razão deste novo despertar, desta ressurreição dos povos indígenas da América Latina”. Em outras palavras, “só quem sabe quem é e aonde vai, pode viver e propor o projeto de vida de seu povo aos demais povos irmãos e à humanidade”.
Ernestina López Bac pertence à cultura Maya Kakchikel. Sua localidade de origem é San Martín Jilotepeque, do departamento de Chimaltenango, Guatemala. Realizou seus estudos na capital da Guatemala, longe da família. Pela discriminação e racismo que se dava e que ainda hoje persiste na Guatemala, não lhe foi possível realizá-los em seu povoado natal, pois as escolas públicas não permitiam o acesso aos indígenas. Seguiu a carreira de professora de Pedagogia e Psicologia na Universidad Rafael Landivar, uma universidade privada da Guatemala. Para melhorar seu desempenho, obteve um diploma em Teologi¬a e ciências religiosas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como tem sido a relação da Igreja com os povos indígenas na América Latina?
Ernestina López – Historicamente, sabemos bem que a evangelização e a conquista vieram juntas em nosso continente e que os indígenas foram matéria de sujeição, colonização e doutrinação. A relação foi de exploração, de domínio, de desigualdade, de discriminação, de desumanidade. Eu diria que, desde então, se deu a exclusão, pois tal como mostra a história, os povos indígenas eram considerados não-humanos. Podemos qualificar este desencontro inicial, com toda propriedade, de um choque desigual... O assunto era “conquistar primeiro para evangelizar depois”, dizia Sepúlveda, enquanto que Bartolomé de Las Casas e Juan de Silva preconizavam uma conversão mediante a persuasão e “não pela coerção, pois dominação e evangelização são irreconciliáveis” (1). Isso está na história e na vida destes povos, ainda em nossos dias, e foi de tal maneira marcante que ainda hoje as pessoas escondem, enterram as suas formas de crer. Pois essa foi a mensagem de conversão que receberam. O importante é sobreviver.
IHU On-Line - É possível perceber a mensagem cristã na motivação da ação indígena latino-americana?
Ernestina López - Em primeiro lugar, quero dizer que é clara a presença de Deus como dom nos povos e culturas da América Latina. Pois, para estes povos Deus, é a explicação, o sentido de tudo o que têm e da vida. A natureza é manifestação de Deus. O ser humano é colaborador e trabalhador com Deus. Isso explica seu sentido de festa e celebração da vida através dos ritos. Este é o substrato, a raiz e o coração destes povos. Cristo e sua mensagem libertadora é acolhido sem dificuldade, porque sintoniza com seus projetos e com suas crenças e costumes ancestrais. Em vários dos idiomas se diz que Jesus Cristo é o retrato de Deus Mãe-Pai, que mostrou seu coração a nós. Por isso, é possível perceber, em sua atitude humana e em sua relação com Deus, que o que lhes motiva é a experiência vital de um Deus próximo, que se senta com eles, os acolhe, e lhes mostra o caminho que leva à vida.
É possível perceber Deus, senti-lo e gozá-lo em seus traços de humanidade ao entrar em contato e sintonia com seu projeto de vida e no trato cotidiano. Os povos indígenas percebem Deus no sentido sagrado de toda a criação: as pessoas, as coisas, o cuidado e a relação terna e amorosa com a mãe natureza e isso aparece através das diversas manifestações de respeito por tudo o que tem vida, ainda que seja pequeno e insignificante. Essa relação se dá também em seu testemunho de fiéis seguidores de Jesus, inclusive até a morte. Por Jesus, o Filho de Deus, e por toda pessoa, inclusive até dos próprios inimigos.
IHU On-Line - Como podemos definir a espiritualidade dos povos indígenas da América Latina?
Ernestina López - A espiritualidade na experiência de fé dos povos indígenas poderia se expressar dizendo que é a vivência de deixar que Deus atue em suas vidas. É um viver endeusado, de viver e atuar em Deus no curso do dia e da noite, na saúde, na doença, no cotidiano da vida e na integralidade. Não são pedaços de tempo para Ele. Constata-se que é preciso ter estes espaços concretos de diálogo pessoal e comunitário com Deus, que é o coração de tudo, Deus Mãe-Pai. Viver no Espírito, para os povos indígenas, é tentar todos os dias alcançar e trabalhar pela harmonia, a justiça e a unidade nos seres humanos; e pelo cuidado e equilíbrio da mãe natureza. É reconciliar as coisas, as pessoas, os acontecimentos, a história. É diálogo, luta e sacrifício. Eles põem a vida toda em Cruz, para harmonizar o caminho dos humanos com o caminho de Deus. É o sentido profundo da Cruz Cósmica, especialmente para os povos indígenas da América Central. A Cruz Cósmica representa a humanidade e o universo inteiro. Cada esquina está assinalada por um ponto cardeal e uma cor determinada, que influenciam nos aspectos que mostram a ação de Deus no mundo (2). É a sabedoria que sempre ajudou e marcou a vida dos antepassados destes povos para manter a identidade própria nesse contexto de conquista e colonização em que foram evangelizados; e é também a perspectiva religiosa que fortalece e dá sentido a todas as lutas atuais, sempre em busca desse lugar que na história e na Igreja corresponde por justiça e dignidade.
IHU On-Line - Qual a importância do movimento indígena para a questão ecológica?
Ernestina López - Sua importância está no fato de que os mesmos povos indígenas são conscientes de que foram e são portadores de vida desde que existem. Diz-se que hoje é possível que isso possa ser visto, assumido, mas os povos indígenas desde sempre têm estado no mundo fornecendo vida. Não é por acaso que hoje o mundo inteiro se debate nas grandes crises de humanidade, crises política, social, econômica, religiosa e espiritual. Podemos dizer que, graças aos povos indígenas, é que o planeta e a humanidade ainda têm algo de vida, e conseguiram isso sem importantes palavras, mas com sua vida de relação terna e harmoniosa com a mãe Terra. Seu trato com os seres criados é de muito respeito. Por isso que, em cada etapa da vida das pessoas e das plantas, eles realizam um rito especial, falando como se fosse uma pessoa, pedindo permissão, pedindo perdão e, se está morrendo, eles convidam a continuar vivendo chamando ritualmente seu espírito. Cremos que a raiz de todas estas crises é que a humanidade tem prescindido de Deus e o tem substituído, sentando-se no trono do bem-estar, do poder e do prazer. Esta é a mensagem vital que os povos indígenas oferecem em sua vontade de defender a vida humana e o planeta. E sua força vem deste mover-se em conjunto, de organizar-se para cantar ao mundo que enquanto nos crermos donos, cada vez mais iremos cavando nossa própria sepultura.
IHU On-Line - Como entender a força que o movimento indígena tem adquirido nos últimos tempos na América Latina? O que motivou esse despertar, essa “ressurreição” do índio?
Ernestina López – No meu ponto de vista, já se delineou de alguma maneira de onde brota a força dos povos indígenas. Em primeiro lugar, é a consciência gozosa de saber-se “índio”, de saborear a partir da interioridade mais profunda suas próprias raízes, sua identidade. Essa identidade que tem sua fonte, seu manancial, sua raiz em Deus Mãe-Pai, e que brota de dentro da pessoa ou do grupo. Por isso, é bom que cada pessoa ou grupo se pergunte: “Quem somos nós para nós mesmos?”. Porque “se não se leva em conta esta convicção não se faz justiça à verdade da pessoa ou grupo humano. Por isso, retomo as palavras do nosso amigo e companheiro Eleazar López Hernández “nós, os povos indígenas deste continente, temos que dizer quem somos desde nosso próprio ponto de vista, qual é a verdade de nosso ser, de nosso rosto e coração. Isso é o que deve importar na Igreja e na sociedade dominante, colocando de lado os estereótipos preconceituosos e discriminatórios do passado”.
Porque só quem sabe quem é e aonde vai pode viver e propor o projeto de vida de seu povo aos demais povos irmãos e à humanidade. É a memória de ser pessoa e povos com identidade, a razão deste novo despertar, desta ressurreição dos povos indígenas da América Latina. É o que vamos compartilhando em nossos encontros de Teologia e Pastoral Indígena a nível local, nacional, regional e continental. Devemos ser o que cada pessoa e povo quer ser. É necessário fazer uma opção de coração. Não basta saber que nascemos de uma família ou povo indígena. É preciso ser coerente com seu projeto de vida.
IHU On-Line - Acredita que um novo horizonte de vida se vislumbra por trás das montanhas e que chegou o tempo de preparar-nos e de preparar a terra para uma nova semente de vida em relação aos povos indígenas na América Latina?
Ernestina López – Acredito, sim, que estamos em um momento de graça, em um “Kairós”. É a hora de Deus, que é a origem e a razão de ser de todo ser humano. Somente quando voltamos nosso rosto e coração para nossa origem, nossa fonte de vida, quando encaminhamos nossos passos e nossos projetos no horizonte de Deus, é que poderemos nos encontrar. Cada povo e todos os povos temos uma raiz e um tronco de onde procedemos. Ao voltar a essa fonte, também encontramos nossa identidade de seres humanos. Só então saberemos nos relacionar em harmonia, respeito e cuidado com nosso contexto, com o mundo e o meio ambiente onde desenvolvemos a vida. Uma maneira de nos preparar é nos encontrar: escutar e dialogar da maneira possível, pondo na mesa comum isso que cada povo e cada pessoa é. Só contemplando com rosto e coração próprios poderemos crescer e caminhar para frente, o que não significa esquecer nossas raízes, mas perceber que estamos bem conectados com nossas raízes de origem, vivendo e transformando o presente para construir com todos os povos o projeto de vida que Deus se propôs desde a criação da mãe natureza e da humanidade. É construir um futuro mais justo, mais humano e mais solidário. Crer visceralmente que “outro mundo é possível”.
IHU On-Line - Qual a importância dos povos indígenas se darem as mãos para seguirem em frente na sua luta?
Ernestina López - Sua importância está no fato de que, no momento em que colaboram na reconstrução do ser humano e de seu contexto, também propõem valores e ideais onde a família, a sociedade, a economia, a educação, a cultura e a religião confluem em um só foco que é a espiritualidade: viver a partir de Deus. Outro aporte dos povos indígenas, ao darem suas mãos e seu coração por esta causa, é o serviço de ser espelho para o resto dos povos e da sociedade em geral, ou seja, que ao contemplar este modo de ser e viver, se é capaz de contemplar que isso também está adormecido no coração de cada pessoa e de cada povo. Dito de outro modo: eles motivam e movem a criticar, avaliar, revisar e renovar as realizações históricas das comunidades e dos povos. São sonhos e ideais que os antepassados deixaram aos povos indígenas para compartilhá-los e juntos transformar este mundo que agoniza. Por isso, temos dito em fóruns, encontros e/ou congressos, que é preciso justamente falar de alternativas indígenas frente ao projeto de morte que impera atualmente. São outras maneiras de sonhar como expressão da esperança que sustenta seu viver e como sinal da proposta de ideais que se bem foram vividos pelos antepassados, continuam sustentando a vida, as tradições e as experiências das comunidades e dos povos indígenas.
Notas:
1.- Ponto importante sublinhado na proposta de Don Víctor Corral, bispo de Riobamba Equador, no III Simpósio sobre Teologia Índia, realizado na Guatemala de 23 a 27 de outubro de 2006. (Nota da entrevistada)
2.- Victoriano Castillo González s.j. “Cholb’al Q’ij rech we junab’ 5121” Agenda 2005. Rech we Qakomon Tiox pa Tz’olojche’= Paróquia Santa María Chiquimula, Departamento de Totonicapán. Guatemala. (Nota da entrevistada)
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As alternativas indígenas frente ao projeto de morte. Entrevista especial com Ernestina López Bac - Instituto Humanitas Unisinos - IHU