24 Novembro 2008
Em 2008, a religião umbandista completa, oficialmente, cem anos. Uma religião que ainda sofre com o preconceito, a perseguição e a intolerância diante do desconhecimento de suas práticas e da forma como sua fé se expressa. “Os membros da umbanda preferem se abraçar numa árvore, colocar a cabeça numa cachoeira, banhar-se nas águas do mar e do rio, preferem o contato com aquilo que é a natureza viva, porque acreditam que ela é o Deus vivo”, contou-nos Pai Guimarães, presidente da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé, em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone. Ele relata os desafios que a umbanda enfrenta hoje, reflete acerca do desenvolvimento da religião ao longo desses cem anos e fala também sobre a presença da mulher dentro da religião: “ela é a força, a estrutura, a mãe”, conclui.
Pai Guimarães tem 43 anos, é pai de sete filhos e é casado com Roseli Roman que, segundo ele, o “ajuda diariamente nas atividades e na luta dos ideais e sonhos”. Há 25 anos é sacerdote umbandista e desde 1999 dirige o Templo de Umbanda Estrela Guia. É, atualmente, presidente da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé (Abratu).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que reflexões podemos fazer pensando nos cem anos da umbanda?
Pai Guimarães – A umbanda está comemorando os seus cem anos, porém ela não tem somente um centenário de exercício e prática religiosa no Brasil. Lembramos a história de vida de Zélio de Moraes [1] por se tratar, na época, de um jovem adolescente, de uma família nobre de uma cidade do interior, que assumiu publicamente a condição da sua espiritualidade. Esse foi um momento histórico, mas que só foi reconhecido ao longo da sua vida, por todo o trabalho que ele desenvolveu, detonando toda uma nova realidade e trabalhos que começaram a construir a identidade da umbanda e, também, do início de uma construção administrativa e jurídica.
Sempre gosto de dizer que, da mesma forma que a humanidade não tem 2008 anos, guardadas as devidas proporções, a umbanda já realizava suas atividades, já tinha uma propagação e várias pessoas já praticavam a religião, mas não sabiam identificar aquela semeadura. Graças à atuação de Zélio de Moraes, a umbanda foi se propagando e as pessoas criando a sua identidade religiosa. A umbanda está cada vez mais organizada, estruturada, buscando eliminar as diferenças. As novas gerações, que estão dando sustentabilidade para a religião no Brasil, entendem e compreendem que grandes avanços aconteceram, principalmente nos últimos dez anos.
IHU On-Line – Qual é a presença da umbanda hoje no mundo?
Pai Guimarães – A umbanda está se “esparramando”. Sabemos que, atualmente, temos templos estabelecidos no Japão, em Portugal, na Holanda e nos Estados Unidos. A umbanda não tem papa, bispo, nenhuma hierarquia administrativa religiosa. Ela é uma religião horizontal, familiar, não estruturada para crescer em grandes templos. A umbanda é uma religião comunitária, atua junto à sociedade. Por isso, às vezes, num mesmo bairro, você encontra até três casas que trabalham com grupos distintos. Ainda assim, ela vem se multiplicando e crescendo de uma forma, às vezes, até um pouco preocupante.
IHU On-Line – E quais são as diferenças entre umbanda e quimbanda?
Pai Guimarães – A quimbanda é uma atuação negativa da utilização da magística, da magia e da espiritualidade. Ela trabalha com o baixo astral, com uma necessidade onde o parâmetro doutrinário e religioso não é seguido e respeitado. Podemos falar até de uma ausência de parâmetros. Se a pessoa não sabe lidar com essa banda, ela acaba se prejudicando e prejudicando os outros. Se souber usar, pode ajudar. Mas a quimbanda está praticamente em extinção no meio espiritualista.
IHU On-Line – Qual a contribuição do cristianismo para a umbanda?
Pai Guimarães – O cristianismo mais distorceu e forçou uma situação por conta da sua imposição desde a época da colonização e da escravização dos índios e dos negros. Mas tanto negros quanto índios tiveram que usar muita criatividade para poder continuar louvando e reverenciando as suas divindades ou seus deuses, como os padres gostavam de dizer naquela época. Na verdade, não são deuses, mas energias divinas que se manifestam através da natureza e que representam, na sua individualidade, uma parcela daquilo que é a força de Deus, o nosso criador. Dentro dessa criatividade, associaram as energias aos santos. De acordo com a história do santo, faziam a identificação e um sincretismo com aquilo que era da sua fé. Acredito que não existe uma contribuição, mas um sincretismo, principalmente em relação a São Jorge, que é comparado ao orixá Ogum.
IHU On-Line – Nos últimos anos, segundo o censo, o número de umbandistas foi reduzido. A que se deve isso, em sua opinião?
Pai Guimarães – Essa afirmação traz um erro muito grande, porque não analisa, na verdade, uma questão social e uma questão de intolerância. Eu coloco dois pontos importantes que fundamentam isso: há 20 anos, não tínhamos, no Brasil, as religiões eletrônicas que promovem uma grande distorção e desmerecimento das religiões de matrizes africanas, associando essas religiões – principalmente a umbanda e o candomblé – a cultos de magia negra, bruxaria e macumbaria. Há duas décadas, vivíamos um momento em que as pessoas não tinham constrangimento, não sofriam essa perseguição implacável. Então, a pessoa ia ao terreiro, conversava com o preto velho, com o caboclo, com o Exu, e, quando via alguém da casa dele ou um amigo com problemas, sentia-se à vontade para comentar a sua experiência.
Hoje, diante da intolerância dessas religiões eletrônicas e de toda uma situação criada por esse poder de mídia e de imposição social através de leis que constrangem, criadas por alguns vereadores e deputados, a umbanda sofre com o preconceito. Também contribui para esse sentimento o poder financeiro que as religiões neopentecostais conquistaram. Se o umbandista concorrer a um emprego e se apresentar crente desta religião, e o gerente da empresa for evangélico, ele corre o risco de ser mandado embora, de ser o primeiro da lista de corte. Se ele comentar sobre sua religião numa roda de amigos, acaba sendo discriminado, perseguido e excluído. Existem famílias hoje que estão se dividindo em função dos ensinamentos religiosos das igrejas neopentecostais, pois através desses ensinamentos elas promovem o rompimento familiar, ao invés de estimular o fortalecimento da família, que é o verdadeiro templo de Deus.
A família é o templo Sagrado. Deus ali semeia todo o seu amor, todo o seu carinho. Só que há hoje religiões que pregam que, se o filho freqüenta o que eles chamam de bruxaria, ele deve ser expulso do lar, pois está com o demônio. E, se o filho tem um pai e uma mãe que freqüentam a umbanda e o candomblé, ele precisa sair de casa, porque não pode conviver com essas pessoas. Isso tem levado ao rompimento de famílias, à perda de emprego, à não manifestação da sua fé. Então, hoje, 25% da população brasileira se declara umbandista, só que é uma comunidade que freqüenta os terreiros em silêncio. O máximo que eles dizem, quando se apresentam, é que são espíritas.
Hoje existe um movimento dentro da comunidade de que temos que nos apresentar como umbandistas, trajar-nos como umbandistas, porque somente dessa forma nós iremos fazer com que haja uma convivência pacífica e de aceitação. Exatamente o que o negro fez, o que o homossexual fez. A umbanda hoje luta para aparecer, porque ela não encolheu, mas cresceu e se escondeu. Essa informação de algumas pesquisas não leva em consideração a atual realidade de intolerância religiosa e de perseguição implacável que as religiões eletrônicas fazem em cima das religiões afro-brasileiras.
IHU On-Line – Por que, em sua opinião, a umbanda é tão estigmatizada por outras religiões?
Pai Guimarães – Infelizmente, o ser humano tem uma facilidade muito grande de se ater mais ao aspecto negativo do que ao aspecto positivo das situações e a dar muito mais atenção àquilo que é folclórico, escandaloso. Então, com o poder que essas religiões têm, elas apresentam um umbandista que não é o verdadeiro. Assim, eles brincam com a fé das pessoas, tentam manipular e acabam cometendo um crime, que é o estelionato da fé. Há 30 anos, tínhamos que pedir permissão para fazer nossos cultos. Essa situação fez com que as pessoas, ao longo do tempo, fossem tendo uma visão distorcida da verdadeira prática da umbanda. A religião é associada, por conta dessa propaganda enganosa, a rituais macabros, a sacrifícios de animais e de crianças. Faz um mês que um deputado evangélico afirmou que a umbanda faz sacrifício de animais. Ou seja, ele é uma pessoa que desconhece totalmente a liturgia e a ritualística umbandista para fazer uma afirmação dessas dentro de uma casa de lei.
A umbanda é uma religião que prega o amor ao próximo, o amor à família, o respeito à vida e que enxerga na natureza a força de Deus presente em nós. Gosto de dizer que respeito a fé católica e a fé evangélica, os seus instrumentos e a forma como se ligam a Deus. Se eles encontram na Bíblia o amparo necessário para poderem estar perto de Deus, nós devemos respeitar, e respeitamos. Só que os membros da umbanda preferem se abraçar numa árvore, colocar a cabeça numa cachoeira, banhar-se nas águas do mar e do rio, preferem o contato com aquilo que é a natureza viva, porque acreditam que ela é o Deus vivo, já que Deus é o criador de tudo e de todos. Nós somos uma fagulha, uma parte desse todo. Então, quanto mais em contato com esse todo nós estivermos, mais em contato com Deus estaremos.
IHU On-Line – Qual é o papel da mulher na umbanda?
Pai Guimarães – O papel da mulher na umbanda é fundamental, hoje. Mais de 80% dos participantes da religião são mulheres. Elas são muito mais dedicadas e sensíveis. Como a umbanda é uma religião muito familiar, a mulher é importante para a sua base. De cada dez templos umbandistas, cerca de sete são comandados por mulheres. A figura feminina, dentro da comunidade, é a força, é a estrutura, é a mãe.
Notas:
[1] Zélio Fernandino de Morais é considerado o anunciador da umbanda. Historicamente, Zélio foi o fundador da umbanda, porém, antes disso, existiram diversas formas de culto que se desenvolveram antes de ele fazer a anunciação, em 1908. Nascido em família tradicional, em Neves, distrito de São Gonçalo, aos 17 de idade, Zélio preparava-se para o ingresso na carreira militar, na Marinha do Brasil, quando foi acometido por uma inexplicável paralisia, que os médicos não conseguiam debelar. Certo dia, ergueu-se no leito, declarando: "Amanhã estarei curado!". No dia seguinte, de fato, levantou-se normalmente e voltou a caminhar, como se nada lhe houvesse acontecido: os médicos não souberam explicar o ocorrido. Os seus tios, padres da Igreja Católica, surpreendidos, também não souberam explicar o fenômeno. Um amigo da família, então, sugeriu uma visita à Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro (então sediada em Niterói), presidida, na ocasião, por José de Souza. Na ocasião, manifestou-se por intermédio de Zélio a entidade que se denominou Caboclo das Sete Encruzilhadas, que anunciou a fundação de uma nova religião no Brasil: a umbanda. Foi fundada, no dia seguinte, em virtude dessa manifestação, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade.
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Por detrás do mito: os cem anos da religião umbandista. Entrevista com Pai Guimarães - Instituto Humanitas Unisinos - IHU