18 Mai 2008
Quando é que vão prestar a atenção na questão social da região amazônica? Esta é a pergunta que ecoa diariamente, diante das inúmeras notícias sobre o descaso em relação à Amazônia. A violência cresce, aumenta o trabalho escravo em grandes latifúndios, culturas predatórias se expandem e a impunidade é contínua. Na última semana, Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, foi absolvido pelo 2º Tribunal do Júri de Belém, no Pará, do assassinato da Irmã Dorothy Stang. “Só no estado do Pará, nas últimas quatro décadas, foram mais de 800 assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças sindicais, entre eles os de diversos religiosos e ambientalistas. Desse total de assassinatos, tivemos apenas o julgamento de sete mandantes de crime. Desses sete, nenhum está preso cumprindo pena. O único que estava cumprindo pena era o Vitalmiro, que agora foi absolvido”, contou-nos José Batista Afonso, coordenador da Comissão Pastoral da Terra - CPT - de Marabá, no Pará, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Batista acredita que condenar mandantes de crimes na Amazônia seja uma tarefa extremamente difícil, por isso “a absolvição do Vitalmiro, sem dúvida alguma, representa uma dificuldade a mais nesse processo de enfrentamento à questão da impunidade”. Ele fala, ainda, da questão da falta de pulso firme em relação à governabilidade na região, uma vez que há fiscalização e policiamento, mas, ao mesmo tempo, liberação para que a pecuária e o plantio de cana e soja, além da extração de madeira e a grilagem, aumentem seu espaço e produtividade na região.
José Batista Afonso é advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra na Diocese de Marabá, no Pará. É, também, integrante da coordenação nacional do braço agrário da Igreja Católica. Ele foi um dos advogados de acusação no caso Dorothy Stang.
Confira a entrevista
IHU On-Line - O que significa a absolvição de Vitalmiro Bastos de Moura para o povo da Amazônia?
José Batista Afonso – É um retrocesso muito grande na luta de combate à impunidade que tem prevalecido, infelizmente, em relação aos crimes no campo, principalmente na Amazônia. Para você ter uma noção, só no estado do Pará, nas últimas quatro décadas, foram mais de 800 assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças sindicais, entre eles os de diversos religiosos e ambientalistas. Desse total de assassinatos, tivemos apenas o julgamento de sete mandantes de crime. Desses sete, nenhum está preso, cumprindo pena. O único que estava cumprindo pena era o Vitalmiro, que agora foi absolvido. Então, condenar mandantes de crimes na Amazônia é uma tarefa extremamente difícil. A absolvição de Vitalmiro, sem dúvida alguma, representa uma dificuldade a mais nesse processo de enfrentamento à questão da impunidade, à questão dos direitos humanos no campo, nessa região da Amazônia.
IHU On-Line - Irmã Dorothy tinha um exemplar trabalho contra a violência na Amazônia e por isso foi assassinada. Por que, em sua opinião, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura foi absolvido? Esse é o momento de órgãos internacionais intervirem na Amazônia, em razão do crescimento da problemática da violência?
José Batista Afonso – A absolvição do Vitalmiro é explicada pelo processo de investimento de altos valores financeiro que eles fizeram para comprar os depoimentos dos outros que já estavam condenados, os pistoleiros intermediários. Eles prometeram R$ 50 mil para matar a freira e gastaram muito mais para poderem fazer os outros condenados alterarem seus depoimentos, inocentando os mandantes. Isso é típico dessa nossa região, ou seja, o poder econômico fortíssimo que têm os que geralmente estão por trás dos crimes e acabam comprando, ou ameaçando de morte, as testemunhas. Esses mandantes têm ainda influência política na sociedade. Os jurados que sentem no banco do júri para julgar são pessoas da sociedade, que sofrem influência política por parte dos meios de comunicação e por parte daquelas que também exercem poder dentro do poder executivo, legislativo, judiciário, sem esquecer os meios de comunicação. Eles têm influência tanto econômica quanto política na região, razão pela qual se explica sua não condenação.
Eu não sou a favor de órgãos estrangeiros na Amazônia. Os problemas da Amazônia precisam ser assumidos e resolvidos pelos amazônicos, em primeiro lugar, e por todos nós, brasileiros. Eu acredito que esse problema da Amazônia já aconteceu em outras regiões do país. A solução é juntarmos forças e investirmos mais no processo de organização das populações da Amazônia, enfrentando o governo em relação a essas políticas contrárias ao desenvolvimento sustentável nesse local. Trata-se de um problema nosso e precisamos fazer a luta necessária para resolvê-lo. É claro que uma parceria com entidades internacionais é fundamental e nós devemos ampliá-la, mas eu diria, de modo geral, que se trata de um problema que nós, brasileiros, precisamos resolver.
IHU On-Line - Os municípios que mais desmatam na região amazônica são também os que mais registram trabalho escravo e violência no campo. De que forma a pecuária, madereiras e outras culturas exóticas para a região estão influenciando nessa problemática?
José Batista Afonso – Os maiores índices de violência estão nessa região de fronteira do desmatamento. Nessa região, existem trabalho escravo, assassinatos, criminalização nas cidades etc. A Pastoral da Terra lançou, inclusive, no mês de abril o relatório anual dos conflitos no campo, relativo a 2007. Ele apontou que, do total de conflitos no campo no Brasil, mais de 50% ocorrem na Amazônia. Dos conflitos que ocorrem na Amazônia, 58% ocorrem nessa região de expansão da fronteira.
IHU On-Line – De que fronteira estamos falando?
José Batista Afonso – É a fronteira do desmatamento, que acontece pressionada pelo avanço das monoculturas voltadas ao interesse agrocombustível, como aos produtores de soja e cana. É pressionada também pela expansão da pecuária, porque, com o aumento da arroba do boi no mercado internacional e com a liberdade de exportação do gado in natura do estado do Pará, houve um aquecimento muito grande nesse mercado. Isso tem provocado uma pressão por parte dos latifundiários para aumentar sua área de pastagem para aumentar a criação de mais gado, o que tem impactado fortemente na floresta. É preciso conter a expansão dessa frente de interesse do agronegócio, da pecuária e da madeira. Além disso, o governo precisa ter políticas claras de contenção do avanço da fronteira que interessa a esses grupos. Caso contrário, nós continuaremos convivendo com essa situação de violência extremamente forte, com várias formas de violação dos direitos humanos e com problemas gravíssimos em relação ao meio ambiente.
IHU On-Line - Como o senhor analisa a atuação do governo em relação à problemática do desmatamento e do crescimento da violência na Amazônia?
José Batista Afonso – O governo tem desenvolvido algumas ações que são importantes nessa questão, principalmente a da fiscalização. No entanto, elas não são suficientes.
IHU On-Line – Por quê?
José Batista Afonso – Se o governo não mudar o modelo de desenvolvimento pensado para a Amazônia, não teremos contenção de desmatamento. Não há demonstração de mudança dessa lógica de desenvolvimento pensada para a Amazônia, e a decisão de saída da Marina Silva é mais um exemplo claro disso, de que perdem aqueles que fazem enfretamento a esse modelo e ganham os madeireiros, os pecuaristas e grandes empresas de soja e cana. Então, se não houver mudança de modelo, nós continuaremos assistindo ao crescimento do desmatamento. Nos últimos anos, o valor da soja tem crescido muito no mercado internacional. Trata-se de um aumento vertiginoso, tanto no mercado interno quanto no mercado internacional. São as duas atividades que mais pressionam o desmatamento: a cultura da soja, no Mato Grosso, e a de pecuária, no Pará e em Rondônia. Na medida em que o governo investe cada vez mais na expansão dos agrocombustíveis, cresce a expansão da soja. Na medida em que o governo, no Programa de Aceleração do Crescimento, planeja obras gigantescas para a Amazônia, como hidrelétricas, ferrovias, hidrovias, portos, asfaltamento de estradas e rodovias, ele investe na infra-estrutura para atender os interesses do capital. Ao viabilizar esses grandes investimentos através dessas grandes obras na Amazônia, não há como frear a expansão do desmatamento. É contraditória a ação do governo, pois ele fiscaliza, coloca polícia e, ao mesmo tempo, incentiva a atividade que desmata. Por isso que, com esse modelo, não terá fim, infelizmente, o desmatamento na Amazônia.
IHU On-Line - De que forma será possível conter o desmatamento e, por conseqüência, a violência no campo? Que medidas precisam ser tomadas imediatamente?
José Batista Afonso – Uma ação que nós defendemos, e precisa ser priorizada, é essa frente de demarcação das populações tradicionais que habitam a Amazônia, que já vivem aqui há décadas, convivendo harmoniosamente com a floresta. São as populações indígenas, as populações de ribeirinhos, os posseiros, as comunidades remanescentes de quilombos e pescadores. Populações que já vivem aqui há décadas e há séculos e convivem com a floresta sem causar danos, prejuízos, a ela. É preciso demarcar os territórios dessas populações.
Em segundo lugar, é preciso ampliar ainda mais as reservas florestais, sejam elas extrativistas, sejam de proteção ambiental. Precisamos ampliar a criação dessas reservas. Isso porque é necessário assegurar um território independente de um território demarcado e que sirva de fronteira de expansão do agronegócio, da pecuária, das madeireiras etc. Se não houver barreiras para conter essa expansão, continuará acontecendo o desmatamento. Essa é uma frente que precisa de investimento.
Há, ainda, uma outra frente para combater a extração ilegal de madeira da Amazônia, assim como a grilagem da terra pública. O governo precisa investir no controle das terras da Amazônia. Hoje, qualquer um pode usar e vender terras da Amazônia, porque não há controle sobre suas terras. Por trás de tudo está, obviamente, a mudança de modelo em curso nela. De qualquer modo, essas outras medidas são essenciais para a contenção do desmatamento.
IHU On-Line - A ex-ministra Marina Silva admitiu que o governo federal terá problemas neste ano para conter o avanço do desmatamento na região amazônica. O Brasil tem condições de acabar com o que causa a violência na Amazônia?
José Batista Afonso – O problema da violência na Amazônia vem de longa data, porque está ligado ao modelo em curso no Brasil hoje. Esse modelo está voltado aos interesses do capital e das grandes corporações, que têm relação direta com os interesses capitalistas internacionais. Pensar em solução para os problemas da Amazônia sem alterar o modelo de desenvolvimento brasileiro não é possível. Agora, nós precisamos fazer o enfrentamento no sentido de que, se não tivermos condições de acabar com essas violações dos direitos humanos e do meio ambiente da Amazônia, devemos, pelo menos, estabelecer lutas que possam diminuir essas intervenções criminosas. E que, a médio e longo prazo, possamos pensar numa realidade diferente da realidade que temos hoje.
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Amazônia: violência, trabalho escravo e impunidade. Entrevista especial com José Batista Afonso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU