20 Outubro 2007
Sob o ponto de vista do teólogo suíço Denis Müller, “a Ética Mundial não pode limitar-se a um único modelo. Ela deve tornar-se mais dialógica, menos monológica, menos idealista”. Questionado sobre quais seriam os progressos que as religiões poderiam obter a partir de uma visão pluralista desse tipo, enfatizou: “O maior progresso que cada religião poderia fazer é o de amar o humano do homem no próprio coração de Deus, e não fora dele. Isto significa também repensar o mistério de Deus, captar melhor e viver o elo entre Deus e o amor. É deixar de fazer de Deus um supersujeito, um mega-ator da história e da política, e compreendê-lo como ausência de violência e reconciliação no coração das nossas violências, da violência do mundo, da dureza do nosso coração”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, com exclusividade.
Müller é licenciado em Teologia pela Universidade de Neuchâtel, com estudos avançados em Basiléia, Munique e Tübingen. Doutorou-se em Teologia também pela Universidade de Neuchâtel, com a tese Palavra e história. Diálogo com W. Pannenberg (Genebra: Labor e Fides, 1983). Leciona ética teológica na Faculdade de Teologia e Ciência das Religiões da Universidade de Lausanne desde 1988. É diretor do curso de formação contínua em ética do trabalho social (IES-EESP-UNIL), bem como membro da Societas Ethica (Sociedade Européia de Ética) e da Academia Internacional das Ciências Religiosas de Bruxelas. Atua, também, como membro do Comitê do Departamento Interfaculdades de Ética da Universidade de Lausanne.Publicou dezenas de artigos em revistas especializadas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que modo um projeto, nos moldes da Ética Mundial proposta pelo teólogo alemão Hans Küng, o qual preconiza uma ética minimalista, pode encorajar o diálogo inter-religioso e a tolerância entre os povos?
Denis Müller - A ética planetária é justamente um projeto, somente um projeto. É pondo-nos a caminho, projetando-nos no futuro, aceitando a discussão e o debate críticos que nós descobriremos as chances de uma ética realmente universal, compartilhável por todos, reconhecendo a humanidade de todos e de cada um.
IHU On-Line - Quais são os progressos que as religiões poderiam obter a partir de uma visão pluralista desse tipo?
Denis Müller - O maior progresso que cada religião poderia fazer é o de amar o humano do homem no próprio coração de Deus, e não fora dele. Isto significa também repensar o mistério de Deus, captar melhor e viver o elo entre Deus e o amor. É deixar de fazer de Deus um supersujeito, um mega-ator da história e da política, e compreendê-lo como ausência de violência e reconciliação no coração das nossas violências, da violência do mundo, da dureza do nosso coração.
IHU On-Line - Considerando o Projeto de Ética Mundial e sua ética minimalista, poderíamos entrever uma solução para o relativismo ético e o fundamentalismo da sociedade pós-moderna?
Denis Müller - Eu não penso que o Projeto de uma Ética Mundial seja em favor de uma ética minimalista, mas que ele visa antes uma ética otimizada em sua intensidade, em sua exigência e em seu rigor (isso vem de Kant , sem dúvida nenhuma). O que deve ser mínimo é a concentração formal em imperativos comuns e reconhecidos, mas este ideal só pode ser atingido ao preço de um esforço pessoal constante, através de um comportamento, um ethos livre e engajado, jamais ao preço de uma simples formulação mágica e “passe-partout”. Parece-me, pelo menos, que é preciso resistir a essa interpretação demasiado escolar e demasiado tentadora de uma ética planetária reduzindo-se a uma aparência de aflição ou a um modo de emprego. Eu constato que, com freqüência, é a isso que se corre o risco de conduzir a ética planetária. Só se pode evitar esse risco na condição de aprofundar, ampliar e humanizar ainda mais o projeto, dando lugar, neste processo pedagógico e político em curso, a um debate de idéias mais exigente e mais aberto. A ética planetária não pode limitar-se a um único modelo. Ela deve tornar-se mais dialógica, menos monológica, menos idealista.
IHU On-Line - Qual é o lugar da religião numa sociedade deste tipo?
Denis Müller - As religiões existem na pluralidade e no diálogo, e somente uma sociedade democrática secular, ciosa de pluralismo e de reciprocidade, pode dar lugar ao fato religioso em sua complexidade. Deste ponto de vista, penso que é preciso resistir aos reflexos nostálgicos daqueles que querem retornar a uma religião originária, a um cristianismo do primeiro milênio, a uma Igreja primitiva idealizada, a uma re-teologização massiva e reacionária do mundo secular e da modernidade que são nossos.
IHU On-Line - E que ética é possível e desejável neste contexto?
Denis Müller - A ética mais desejável é sempre aquela que dá sua chance a cada ser humano em sua singularidade: homem, mulher, criança, branco, preto, moreno, rico, pobre, frágil, religioso, ateu: uma fisionomia e um destino únicos. Esta ética não existe em parte alguma sob forma acabada. Ela nos espera a cada manhã, como desafio infinito, como apelo terrível, mas também como chance magnífica. A ética é algo a ser sempre recomeçado, reinventado, concretizado. Ela é a ética do outro homem e da outra mulher, de meu próximo mais próximo e do desconhecido que me espera numa encruzilhada inesperada de minha vida ou do planeta.
IHU On-Line - Alguns teóricos apontam um problema fundamental na ética de Hans Küng, como o de estar assentada no conceito de religião e de Deus, racionalmente indemonstráveis. Assim, a ética seria apenas fruto de uma pura crença. Então, como podemos fundar uma ética em face do aumento da secularização a que assistimos?
Denis Müller - É incontestável que, na forma que lhe deu Hans Küng, o modelo da ética planetária permanece fortemente marcado por uma forma católica (e católica romana) de pensar a unidade do mundo e da realidade. É, aliás, inteiramente em honra do grande teólogo católico que ela permanece, a favor e contra tudo. Mas, a meu ver, isso em si não constitui uma objeção contra a visão de uma ética realmente universal, no sentido que se pode dar a esta expressão na linha de autores como Emmanuel Kant e Jürgen Habermas . Com Kant, é preciso sublinhar que uma ética universal tem o estatuto de um ideal normativo, de um reino dos fins, de certo modo, e que só se pode cumprir no mundo e no planeta terra ao preço de uma constante reafirmação de sua verdade. Ora, a verdade ética última da humanidade é, por definição, uma verdade contrafactual e, portanto, simultaneamente teleológica e escatológica. A cota programática e declarativa do modelo küngiano da ética planetária só tem sentido na condição de compreendê-lo como caminho de pertença, de fidelidade a si mesmo, de coerência, como a movimentação de um comportamento prático orientado para os outros, ao todo do mundo, e tudo junto de si. Trata-se realmente de um comportamento (ethos), ressoando no mundo e por todo o mundo. Ela não é uma “ética planetária” (a tradução francesa de “Weltethos” é inadequada, sob este ponto de vista), no sentido de uma doutrina ética que todo o mundo deveria aceitar e que repousaria no Deus da verdadeira religião (e então também da religião cristã em sua essência). O comportamento mundano (weltliches Ethos) é o fato de homens e de mulheres singulares, de indivíduos responsáveis, de cidadãos minúsculos, de testemunhas singulares que não saberiam fundir-se na massa anônima de uma mundialização abstrata e desumana.
Mas justamente porque esta ética aplicada, esta metanóia concreta, permanece pessoal e singular, ela não se confunde jamais com um sistema, com uma teoria, com uma formulação fechada da verdade. Então, sempre haverá lugar, neste planeta homicida e ferido que é o nosso, para a partilha, para a descoberta, para a contradição, para uma ética da discussão (no sentido de Jürgen Habermas e de Jean-Marc Ferry ), com ou sem Deus, segundo a vocação e a disponibilidade de cada um e de cada uma, mas sempre num respeito infinito do outro. O mistério da pessoa e de sua comunicação com as outras pessoas, por toda a parte sobre o planeta, é a verdade última do Weltethos. Não se trata de um fechamento dogmático e casuístico num minimalismo moral, mas de uma dinâmica de partilha e de debate, no respeito do pensamento e dos sentimentos do outro. Trata-se de uma não-violência prática, de uma tolerância otimizada, de uma aceitação do pluralismo e do relacionamento mútuo de tudo o que constitui a universalidade do nosso estar juntos. Não há, pois, verdadeira secularidade nem verdadeira laicidade, nem universalidade concreta, a não ser na aceitação da pluralidade das religiões e das convicções humanas, incluindo os agnosticismos e os ateísmos. A concepção atual da ética planetária sofre, sem dúvida, sob este ponto de vista, por não ter mensurado a importância de fazer a paz com o ateísmo no próprio coração das religiões, mas numa livre discussão com todas as formas deste ateísmo. Pois o ateísmo também se torna, por vezes, intolerante e absoluto, dogmático e redutor. Pode-se vê-lo, na França, na postura intransigente de certos gurus da teologia e do laicismo revanchista.
IHU On-Line - Küng afirma que não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Quais são os progressos neste sentido que o senhor percebe atualmente?
Denis Müller - Eu gostaria de precisar, de minha parte, que a paz entre as religiões não significaria o desaparecimento dos conflitos hermenêuticos legítimos entre as religiões e no seio das religiões. Por exemplo, sobretudo a paz confessional entre o catolicismo e o protestantismo cresceu, nestes últimos cinqüenta anos, pelo fato de cada vez mais leigos católicos e, com freqüência, também teólogos, terem a coragem de se opor ao autoritarismo e à capa de chumbo que o magistério e a cúria tendem a impor. A coragem é sinal de esperança, enquanto o silêncio, a covardia, a hipocrisia entretêm a desconfiança e suscitam a violência, até mesmo verbal ou psicologicamente. Do lado protestante, ao contrário, como constato com freqüência, há uma falta de autocrítica, uma satisfação bem-aventurada de si, um anticatolicismo primário, ligados muitas vezes a uma ignorância crassa das realidades vividas pelos fiéis católicos. Quando protestantes ousam recolocar em questão suas próprias tradições e sair de sua boa consciência, eles se tornam criativos, imaginativos, livres e felizes.
IHU On-Line - De que modo a Filosofia e a Teologia dialogaram para procurar esta paz e o consenso entre os povos?
Denis Müller - O diálogo da Filosofia e da Teologia é, em primeiro lugar, um diálogo dos homens e das mulheres de carne e sangue. Até agora, os filósofos e os teólogos fizeram, com demasiada freqüência, parecer que eram os portadores de sistemas doutrinais e éticos estanques. A paz nasce antes do engajamento autêntico e honesto dos pesquisadores, seja qual for sua tradição, os quais se expõem a uma discussão aberta e que aceitam ser testemunhas de uma verdade que, ao mesmo tempo os ultrapassa e os anima. A Filosofia e a Teologia deveriam tornar-se mais pessoais, mais responsáveis, mais existenciais. As universidades ainda têm que fazer grandes progressos, a fim de que a subjetividade, entendida no sentido mais belo e mais autêntico, seja, de certa maneira, a verdade, como o havia esboçado Soeren Kierkegaard em sua época.
IHU On-Line - Pode o choque de civilizações, do qual fala Samuel Huntington , ser evitado ou mitigado por uma ética que se baseie em premissas mínimas para o agir?
Denis Müller - Eu não creio no choque das civilizações de que fala Huntington de maneira demasiado esquemática e ideológica. Antes de construir tal ficção, é preciso encarar com lucidez as contradições internas das civilizações, seu pluralismo bem-vindo, bem como a confrontação legítima das doutrinas, das crenças e das éticas no seio da realidade. O ideal de uma Ética Mundial só tem sentido, a meu ver, se ele resultar de uma dialética e de uma dinâmica que vá no sentido de um aprofundamento do diálogo entre as pessoas, os grupos sociais e culturais e as nações, em suas diferenças positivas e não somente naquilo que elas têm em comum. Neste sentido, é preciso ultrapassar as oposições ideológicas estéreis entre um universalismo abstrato e um comunitarismo belicoso. Só pode haver uma comunidade mundial e uma paz universal na condição de um diálogo das tradições, das comunidades e dos estilos de vida. Nossas sociedades ocidentais são elas próprias mestiçadas e cruzadas, e não param de construir uma democracia viva, difícil, mas necessária.
IHU On-Line - As três grandes religiões monoteístas têm consciência do impasse no qual se encontra a paz no mundo?
Denis Müller - A paz é um processo permanente e um estado de equilíbrio instável. Ela deve ser o objeto incessante de nossos engajamentos e de nossas preocupações. Além disso, ela não se limita a uma trégua das armas ou a uma pura negação da violência. Para atingir a expressão de sua verdade última, ela também deve ser paz dos corações e das vontades, apaziguamento das consciências, reconciliação interior. Então, no fim de contas, a paz, o shalom bíblico, é uma promessa, um ideal escatológico, inacessível e necessário. Somente a partir de uma visão global da paz é que é possível examinar a posição real das três religiões monoteístas, através da diversidade de seus adeptos e de seus testemunhos. Conseqüentemente, eu também não creio que se possam fixar estas religiões numa espécie de imobilismo ideológico. As religiões vivem por seus adeptos e por seus testemunhos, pelo melhor e pelo pior. As religiões, como os seres humanos dos quais elas são expressão, são fundamentalmente ambivalentes.
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"A ética planetária não pode limitar-se a um único modelo". Entrevista especial com Denis Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU