O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja. Ciclo de estudos no IHU. Artigo de Gabriel Vilardi

Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU

13 Mai 2024

Para aprofundar a discussão e trazer sua contribuição ao inadiável debate, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o Ciclo de Estudos “O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja”. Entre as convidadas e o convidado confirmados, até o momento, estão a colombiana Isabel Corpas de Posada, as brasileiras Ivone Gebara e Maria Clara Luchetti Bingemer e os italianos Lúcia Vantini e Andrea Grillo

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“As velhas roupas religiosas e políticas do passado que nos foram impostas não abrigam mais os nossos corpos e nossos anseios”, vaticina com sabedoria e dando voz a muitas mulheres silenciadas a filósofa Ivone Gebara (2023, p. 132). O século XX foi um período em que, entre muitos outros avanços, a luta das mulheres caminhou a passos largos. O direito ao voto, os contraceptivos e a revolução sexual, a emancipação do jugo masculino. Todavia, na Igreja as coisas não foram assim. E toda essa frustração chega até o presente, com muitas interrogações: será o Sínodo sobre Sinodalidade uma oportunidade para alterar séculos de marginalização e misoginia?

Chega a ser impressionante, com um misto de choque e escândalo, perceber como o machismo foi se entranhando e se solidificando na estrutura eclesial ao longo dos séculos. Apesar de serem maioria desde o princípio do cristianismo, as discípulas de Jesus foram tolhidas na sua dignidade batismal e relegadas à tutela de clérigos, religiosos e bispos. Resta saber: está condenada a Igreja a reproduzir institucionalmente a discriminação contra as mulheres por “todos os séculos dos séculos”?

Como alerta a teóloga ecofeminista Gebara a questão parece ser anterior, qual seja, a forma como a Tradição foi concebendo a própria imagem de Deus e toda a linguagem teológica desenvolvida, sob uma perspectiva excludente:  

“Entretanto, e aqui se situa parte do problema, esta figura poderosa é expressa numa linguagem gramatical e numa figura histórico-simbólica masculina, prescindindo, nesse nível, do feminino. Por isso se costuma dizer que as sociedades monoteístas patriarcais repousam sobre um monoteísmo masculino que torna difícil a introdução de elementos simbólicos mais inclusivos que façam justiça ao feminino e à diversidade de expressões da vida. O monoteísmo masculino é, na realidade, a expressão de culturas de dominação pública masculina. O poder político e social está em mãos masculinas. O poder de interpretar o mundo segundo uma ordem religiosa masculina e determinar as inclusões e exclusões dessa ordem está em suas mãos”. [1]

Com o advento do Concílio Vaticano II, mudanças importantes deram impulso a uma nova fase do catolicismo, com o despertar de uma vitalidade há muito desaparecida. Em razão da solicitação do Sínodo dos Bispos de 1971, o Papa Paulo VI instituiu, em 1973, uma comissão de estudos sobre as mulheres na sociedade e na Igreja. Contudo, a reação dos setores conservadores não tardou e, com os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, só houve retrocessos nessa matéria.

Chegou o papa do fim do mundo e muitas chacoalhadas foram dadas para tirar a Igreja da letargia que se encontrava. Duas comissões sobre o diaconato feminino foram criadas por Francisco, uma em 2016 e outra em 2020. Mulheres foram colocadas em postos de relevância na Cúria e várias declarações provocantes foram feitas pelo pontífice. A última foi o contundente chamado para desmasculinizar a Igreja! Ainda assim, além dos discursos e algumas nomeações, poucas reformas efetivas aconteceram nessa dimensão. E isso não pode ser negado, mesmo pelos mais ardorosos defensores do atual pontificado. Por que é tão difícil romper a crosta patriarcal que encharca tão pesadamente o tecido eclesial?

A perseguição e a opressão às discípulas de Jesus, apesar de estrutural e vinda de todos os níveis da hierarquia, não foi suficiente para amordaçar definitivamente as mulheres. Os exemplos de resistência são inúmeros, mesmo que nem sempre devidamente registrados pela história. Canonizadas ou não, foram mulheres a frente de seu tempo marcando fortemente a vida do cristianismo, tais como a desafiadora Hildegarda de Bingen (1098-1179), as vanguardistas beguinas e a reformadora Teresa de Ávila (1515-1582). Mais recentemente as “rebeldes” religiosas estadunidenses, acossadas por anos pela Cúria Romana, e as teólogas feministas com seu pensamento crítico, que colocam em xeque os velhos modelos. Os exemplos são abundantes!

À sua maneira essas cristãs conhecidas ou anônimas viveram a fidelidade ao Projeto de Jesus de um modo radical, dando testemunho desconcertante e imprescindível do Reino de Deus:  

“A fidelidade que propomos não é a um passado considerado perfeito ou a uma revelação divina do passado considerada definitiva, mas algo de nosso presente, oriundo de nossas vidas e da dignidade que buscamos viver nos limites de nossa história. Não se trata apenas de questões pessoais pois, se assim fosse, bastaria que nos afastássemos das instituições religiosas. Trata-se de uma opção coletiva pela justiça e pela liberdade em nossas relações, sem as quais a humanidade perderia valores de sua existência. Trata-se de perceber e denunciar, de forma crítica, a cumplicidade maior ou menor das instituições religiosas em manter privilégios e diferentes formas de exploração e violência”. [2]

Há muito tempo já passou da hora de romper com toda forma de patriarcalismo calcado no perigoso clericalismo que impregnou o ser cristão no segundo milênio. E não venham os ditos defensores da tradição com ameaças de fogueiras e excomunhões. Afinal, como tem insistido o Papa Francisco, em discurso proferido em Nápoles, no ano de 2019, “é necessária a liberdade teológica”. Ademais, “sem a possibilidade de experimentar estradas novas, não se cria nada de novo, e não se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado”.

Portanto, cabe aos espaços de reflexão e aos pensadores apresentarem análises lúcidas, ousadas e corajosas que saiam dos lugares-comuns e mostrem novos caminhos. O tempo dos silenciamentos e das punições aos teólogos e às teólogas terminou. O medo e a autocensura devem ser suplantados por utopias e sonhos de possibilidades outras para um cristianismo mais inclusivo e fraterno.

Para aprofundar essa discussão e trazer sua contribuição ao inadiável debate, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o Ciclo de Estudos “O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja”. Dentre as convidadas e o convidado confirmados, até o momento, estão a colombiana Isabel Corpas de Posada, as brasileiras Ivone Gebara e Maria Clara Luchetti Bingemer e os italianos Lúcia Vantini e Andrea Grillo.

Como lembra Gebara, ir além do dado e dos antigos chavões é imperioso se se quiser discernir um cristianismo mais autêntico e fiel às suas origens:

“A partir dessa posição, nós teólogas tentamos romper com o dogmatismo da tradição religiosa patriarcal e tentamos de certa forma, resgatar outra tradição a partir de outros pressupostos e outras epistemologias. Estas nos permitem vasculhar na tradição passada as marcas de nossa exclusão e os sinais de nossa resistência à opressão. Dão-nos igualmente suporte para construções provisórias alternativas de sentido. E, não fazemos isso pedindo autorização a nenhum Magistério eclesiástico masculino, nem a uma figura divina patriarcal desenhada no passado. Fazemos isso por amor a nós mesmas e ao mundo que nos acolhe, tentando igualmente superar divisões e conflitos entre as igrejas, impostas pela história passada e reforçadas no presente. Fazemos isso também por amor aos homens que são cativos de uma falsa superioridade que os mantêm reféns de fantasias e alienações de poder”. [3]

A Igreja vive um longo processo sinodal que terá o seu cume em novembro deste ano. Com algumas novidades, entre elas a participação, ainda que minoritária, de madres sinodais com o direito a voto, o Sínodo deve tomar grande parte das atenções no segundo semestre. As expectativas para as alterações estruturais, inclusive por meio de mudanças substanciais no Código de Direito Canônico, são grandes. Por outro lado, se sabe que os grupos contrários são bem financiados e influentes, com articulação suficiente para promover desinformação e confusão entre o Povo de Deus.

Ainda assim, “estamos tecendo coletivamente outras roupas que parecem se ajustar mais as intempéries desses tempos”, reafirma a sempre inquieta Ivone Gebara. “É essa situação frágil, vulnerável e mutante que nos dá força e autoridade para seguir adiante em pleno século XXI, e a cultivar a esperança contra as desesperanças” (GEBARA, 2023, p. 132), continua a religiosa. Como Igreja estamos realmente dispostos a escutar as mulheres e a transformar em profundidade os nossos velhos odres? Ou vamos desperdiçar mais uma oportunidade de conversão e ao invés de desmasculinizar vamos desfeminilizar de vez a Igreja, com uma evasão daquelas que resistem? Que falem as mulheres e as teólogas!

Notas

[1] GEBARA, Ivone. Caminhos para compreender a teologia feminista. São Paulo: Ed. Recriar, 2023. p. 80

[2] GEBARA, Ivone. Caminhos para compreender a teologia feminista. São Paulo: Ed. Recriar, 2023. p. 115.

[3] GEBARA, Ivone. Caminhos para compreender a teologia feminista. São Paulo: Ed. Recriar, 2023. p. 115.

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