Fusão das diferenças: novas faces da comunidade

Imagem: Reprodução | jesuitas.lat

17 Junho 2023

"O que está em jogo não é tanto a capacidade de definir um território da paróquia, mas um anúncio capaz de gerar . A prioridade não é um espaço territorial a estruturar, mas sim como motivar uma comunidade cristã para que saiba acompanhar. Crescemos em um ambiente fundamentalmente cristão, onde nosso caminho de fé aconteceu espontaneamente; não conhecemos a "gramática do assenso", onde está implícito um itinerário de decisão e escolha. Na educação à  procedemos ainda com uma certa aproximação e, muitas vezes, com muito improviso. Não se trata de ocupar espaços, mas de oferecer possibilidades. Para isso, é necessário outro modelo de presença e de anúncio", escreve Dom Nico Dal Molin, diretor da Pastoral Vocacional da Conferência Episcopal Italiana (CEI), em artigo publicado por Settimana News, 15-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A terceira monografia 2023 da revista Presbyteri é dedicada ao tema das fusões de paróquias e dioceses causadas pela diminuição dos padres, que estão "dando um novo rosto à Igreja chamada a encarnar-se nos "novos" territórios que assim são delineados. Estamos convencidos de que a atenção deve ser colocada não tanto na ocupação de espaços, talvez centralizando para otimizar os recursos, mas em iniciar processos capazes de gerar novas comunidades com o objetivo de acompanhar com estilos novos e "humanamente sensíveis" a experiência de e vida cristã". Publicamos abaixo o editorial do número.

Quando nos movemos no cume de um tema como aquele proposto nesta monografia, temos que lidar com diversos sentimentos: desde um sentimento de sofrimento, senão de impotência, ao constatar a dificuldade das comunidades cristãs em apreender e aceitar as profundas mutações socioculturais e eclesiais em curso, até uma profunda necessidade de confiança, aliás, de esperança, porque o Evangelho de Jesus e a luz de Deus conseguem sempre penetrar no coração do homem, mesmo quando isso parece impossível.

O problema que se coloca não é apenas superar a territorialidade representada pela paróquia, entendida no sentido clássico, mas questionar qual comunidade cristã seria realmente capaz de anunciar e transmitir a hoje.

Programação do Ciclo de Estudos Opção de Francisco. A Igreja e a mudança epocal

A gramática do assenso

O que está em jogo não é tanto a capacidade de definir um território, mas um anúncio capaz de gerar . A prioridade não é um espaço territorial a estruturar, mas sim como motivar uma comunidade cristã para que saiba acompanhar. Crescemos em um ambiente fundamentalmente cristão, onde nosso caminho de fé aconteceu espontaneamente; não conhecemos a "gramática do assenso", onde está implícito um itinerário de decisão e escolha[1]. Na educação à procedemos ainda com uma certa aproximação e, muitas vezes, com muito improviso. Não se trata de ocupar espaços, mas de oferecer possibilidades. Para isso, é necessário outro modelo de presença e de anúncio.

Como reconfirmar na os próximos e como alcançar os distantes que correm o risco de nunca serem alcançados?

Ao ouvir as confidências dos padres, volta frequentemente um sentimento de profunda inadequação: “Não me sinto preparado para este tipo de serviço, não sei como o fazer, que coragem ter... Fico satisfeito com o que tenho e ao mesmo tempo não sei como transformar o problema em uma oportunidade”.

Para revisar a rede paroquial, é necessário primeiro identificar os critérios do anúncio e da evangelização. Não basta fundir, é preciso integrar, diferenciar, preservar o existente mesmo construindo o novo.

Num encontro de reflexão sobre essas temáticas, um amigo padre usou esta expressão: “É preciso coragem para passar de uma irrigação geral a uma irrigação gota a gota”. É mais do que nunca necessário racionalizar as potencialidades, não só porque não temos mais forças, mas também porque desperdiçamos muita água”.

Um golpe de asa

Lembro-me do forte impacto que teve na opinião pública, crentes e não crentes, o lançamento de um livro publicado há alguns anos: Deus existe, eu encontrei-o [2]. Foi escrito por André Frossard, jornalista e ensaísta francês, membro da Académie française.

Deus existe, eu encontrei-o, de André Frossard (Foto: Divulgação)

No início do texto há uma citação que sempre me intrigou e que pode ajudar a ter total confiança nos caminhos inescrutáveis ​​pelos quais Deus alcança o homem. É uma frase de Georges Bernanos, outra grande figura da literatura francesa: "Os convertidos atrapalham".

Frossard não é crente, mas algo inesperado acontece em sua vida. Em uma noite de verão em Paris, ele espera seu amigo Willemin do lado de fora da igreja onde seu amigo entrou. E escreve: “Não sinto nenhuma curiosidade pelos assuntos da religião. São dezessete e dez. E mesmo assim... em dois minutos, serei cristão".

Willemin demora um pouco a sair e Frossard entra por sua vez na igreja para procurá-lo. Ele para diante de um ostensório, cujo significado não conhece, e enquanto observa a chama de uma vela, ocorre algo que ele mesmo não consegue expressar com palavras adequadas. Diz ouvir, quase sussurradas, duas palavras: “vida espiritual”. Logo depois sente nele uma luminosidade quase insustentável que o penetra e envolve. Ele escreve que viu de repente, como em um devaneio, outro mundo, aquele que ele acredita ser o "mundo da verdade": "Há uma ordem no universo e, no topo, há a evidência de Deus, aquele a quem os cristãos chamam de ‘pai nosso’ e cuja doçura eu sinto”. Mais tarde ele diria: "Quando se encontra Deus, a primeira descoberta é a insignificância de todas as coisas que ainda hoje os cristãos, obviamente excluindo os santos, levam tão ridiculamente a sério".

Não sei dizer por que esse flashback de repente passou pela minha memória, mas diante dos esforços reais de um anúncio da hoje, sempre há uma fresta de luz que abre um horizonte diferente e inesperado.

“Vendo que se fatigavam no mar, porque o vento lhes era contrário, perto da quarta vigília da noite aproximou-se deles, andando sobre o mar, e queria passar-lhes adiante (…) E subiu para o barco, para estar com eles, e o vento se aquietou” (Mc 6,48-51).

Para viver um anúncio diferente e credível, o Papa Francisco fala de uma condição necessária: “o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os outros (…) Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas: ‘Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o Invisível” (EG 150).

Comunidades generativas?

Somente uma fé interrogativa pode tornar-se novamente generativa. E para ser generativa a deve recuperar algumas belas palavra da vida, que lhe dão um sentido, uma perspectiva, capaz de olhar e ir "além". Existe um ministério que precisa ser encorajado a buscar algo diferente; que precisa redescobrir o gosto por uma fé "humanamente sensata", próxima dos problemas e das esperanças das pessoas.

É necessária uma pastoral da "localização": devemos primeiro dizer "onde estamos" para nos ajudar a descobrir "para onde podemos ir".

Peregrinos rumo a uma meta, cujas estradas desconhecemos, mas que continua a ser o horizonte para o qual caminhar. Acreditar em uma Igreja generativa significa voltar a percorrer juntos alguns caminhos existenciais e espirituais:

Hoje é o centenário do nascimento de Dom Lorenzo Milani (27 de maio de 1923) [3].

Em 20 de junho de 2017, durante a visita que o Papa Francisco fez em Barbiana ao túmulo de Dom Milani, dirigindo-se aos presbíteros presentes, disse: “Dom Lorenzo nos ensina a amar a Igreja, como ele a amou, com a franqueza e a verdade que também podem criar tensões, mas nunca fraturas, abandonos. Amemos a Igreja, caros coirmãos e façamo-la amar".

Vigilância 24 horas

A reflexão em curso requer uma mudança de olhar e de relação com o território. Concretamente, significa uma atenção privilegiada à virtude da "vigilância".

O cardeal Carlo Maria Martini descreve assim o sentido da vigilância: “Vigiar significa em primeiro lugar estar acordados, estar alertas (…). Vigiar significa cuidar de alguém com amor, proteger com todo o cuidado algo muito precioso, tornar-se guardião de valores importantes, delicados e frágeis. A vigia empenha, portanto, a prestar atenção, a tornar-se perspicazes, a estar despertos para compreender o que acontece, atentos para intuir o rumo dos eventos, preparados para enfrentar a emergência”.

E conclui: “Todas as formas de vigiar, que exemplificam as qualidades essenciais do vigiar, são como momentos particulares daquela grande vigia que é a existência humana diante do tempo definitivo que há de vir: o tempo da vida eterna com Deus, que é como a ‘grande festa’ da vida, à qual está destinado todo homem que vem ao mundo”[4].

Significa ter olhos e ouvidos atentos à vida que se move ao nosso redor; aos carismas e aos dons que as pessoas carregam dentro de si; às potencialidades mais que aos limites; para o presente e para o futuro mais que para o passado. Significa redescobrir uma comunidade cristã que se põe em caminho da koinonia, diakonia e martiria. Afinal, essa é a finalidade dos "canteiros de obras de Betânia" propostos para o caminho sinodal da Igreja italiana.

São Paulo nos recorda isso: “A manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil” (1Cor12, 7).

Essa experiência espiritual e pastoral fundamenta toda ação autêntica e profunda de criatividade e generatividade na comunidade cristã.

Uma conversão... três maneiras

Num momento como o atual, só nos podem fazer bem as palavras fortes e ternas do profeta Ageu: “Esforça-te, todo o povo da terra, diz o Senhor, e trabalhai; porque eu sou convosco” (Ag 2,4).

Bernard Lonergan, filósofo e teólogo jesuíta canadense, propõe três maneiras de viver uma "conversão" da mente, do coração, de envolvimento, hoje mais necessária do que nunca.

É a superação de um mito difundido e enganoso: conhecer significa apreender objetivamente a realidade na qual se está imerso, confiando nas próprias percepções. Essa crença torna-se uma verdadeira armadilha na avaliação de si mesmo, dos outros e do que nos rodeia. Pessoas, fatos, palavras são filtradas por seus esquemas, inseridas nas suas caixinhas, peneiradas por uma malha de preconceitos muitas vezes inconscientes. Nenhum de nós está imune às distorções cognitivas e, no entanto, estar cientes delas pode ajudar a buscar o diálogo que abre a perspectivas diferentes.

É um impulso firme para mudar os critérios de escolha, passando da "gratificação da necessidade" para a "prioridade do valor", como fonte fundadora das próprias escolhas.

É uma perspectiva que nos confronta com algumas questões fundamentais.

Qual é, concretamente, o quadro referencial – terminologia cara a Erich Fromm – diante das grandes ou pequenas escolhas que a vida propõe?

Nesse quadro de orientação, o que é realmente essencial e o que, mesmo sendo urgente, é apenas marginal?

Como evitar a armadilha de uma tensão de frustração que desgasta e desmotiva, e como aceitar uma inevitável tensão de renúncia que é parte integrante de toda escolha de vida?

Pode ser expressa com as palavras de São Paulo: “Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus" (Fil 3,12).

Ela se cumpre quando você se deixa envolver por aquilo que toca a essencialidade da existência, as fibras mais íntimas do seu ser. Implica a capacidade de "sujar as mãos", como afirma a tradição rabínica a propósito do Cântico dos Cânticos, que é o livro da intimidade por excelência.

“É apaixonar-se, entregar-se totalmente, sem condições, restrições e reservas”, escreve Bernard Lonergan. É deixar-se "expropriar" de si mesmo e dos próprios processos narcísicos de autorrealização, desnudando as dinâmicas profundas e verdadeiras da própria identidade, humana e cristã.

É entrar na perspectiva de ser “mais pessoa e menos personagem”, como sugere André Godin, no estudo que dedica à psicologia da vocação[5].

É a capacidade de acreditar que até o fracasso pode revelar-se um precioso momento de crescimento. É a nossa humanidade que o exige, nenhum de nós é um "robô invulnerável". É abertura ao dom da misericórdia e da reconciliação que nos foram doados, para reevangelizar a própria vivência à luz da Palavra curadora de Jesus, profundo conhecedor do coração humano.

“E disse-me: A minha graça te basta; de porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. (…) Porque, quando estou fraco, é então sou forte” (2Cor 12,9-10).

Notas

[1] J.H. Newman, Opere. Vol. 1: Grammatica dell’Assenso, a cura di B. Gallo, trad. de L. Erbifori, Jaca Book, Milano 2005.

[2] A. Frossard, Deus existe, eu encontrei-o, Esfera dos livros, Lisboa, 2010.

[3] D. Bertani, Don Lorenzo Milani. L’intervista mai avvenuta. A cento anni dalla nascita, Artestampa, Modena 2023.

[4] C.M. Martini, Sto alla porta, Centro Ambrosiano Documentazione e Studi Religiosi, Milano 1992, 18. 24-26.

[5] A. Godin, Psychologie de la vocation: un bilan, ed. Du Cerf, Paris 1975, 26-27.

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