28 Abril 2019
O cardeal Gianfranco Ravasi, ministro da Cultura do Vaticano, diz: “Os escombros do nosso tempo são a estupidez e a vulgaridade”. Ele também mostra como Jesus utilizava os tuítes (“Dai a César..., 52 caracteres”) e quais são as principais armas do Papa Francisco. E indica os exames de consciência que a Igreja deve fazer.
A reportagem é de Edoardo Vigna, publicada por Corriere della Sera, 26-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Odi et amo”, um dos versos mais belos do poeta latino Catulo, resume os dois polos extremos do espírito do tempo. Nesses últimos anos, as injeções de negatividade intoxicaram a convivência, não só na sociedade italiana, e muitas vezes envenenaram os poços, impedindo que aqueles que tentassem, pudessem inverter a tendência e espalhar a positividade.
O cardeal Gianfranco Ravasi, desde 2007, é presidente do Pontifício Conselho para a Cultura: é o ministro da Cultura do Vaticano. Ele me recebe nos escritórios da Via della Conciliazione, em Roma, enquanto o sol que começa a se pôr envolve em uma luz quase mítica a cúpula de São Pedro.
Eminência, o que o senhor acha: a agulha que nos últimos anos no barômetro dos sentimentos da convivência civil apontava decisivamente para o ódio mudou de direção, como anunciamos na capa do dia 7 de abril?
O amigo Mario Luzi, o famoso poeta florentino, falava em um de seus poemas do sobre o “bulbo da esperança” escondido debaixo do acúmulo de escombros do tempo sombrio que estamos atravessando. E ele dizia isso anos atrás. A tarefa da poesia, das religiões e da cultura é justamente ir encontrar os bulbos escondidos embaixo. Ainda restam muitos escombros, devemos estar cientes disso. Pense na atmosfera tão poluída também do ponto de vista físico... e acima de tudo do ponto de vista social, espiritual e cultural.
E há também aqueles que acrescentam escombros aos escombros...
É o caminho mais fácil. A destruição dos mitos, a destruição da boa educação, a destruição das elites – isto é, da nobreza espiritual e do pensamento –, a destruição das relações que se tornaram artificiais é uma tentação quase compreensível. A nossa tarefa, em vez disso, é a mais fatigante: começar a escavar, como bombeiros, para rastrear os gérmens vitais.
Então, como o senhor vê os escombros do nosso tempo?
Não são aqueles no meio dos quais eu nasci, em 1942, com uma Guerra Mundial, com rios de sangue e dois loucos lúcidos que dominavam a Europa, Hitler e Stalin. Havia o Holocausto, havia as destruições dos bombardeios. Agora não. Sempre há guerras, mas não com aquela epifania do mal. Há como que uma poeira difusa: é a superficialidade, a banalidade, a vulgaridade, a estupidez. Há muitos anos, em Milão, eu conheci o escritor Riccardo Bacchelli. Assim que fui encontrá-lo, depois de falar longamente sobre a crise da época, acompanhando-me até o elevador, ele me surpreendeu dizendo: “Reverendo, lembre-se de uma coisa: os estúpidos só impressionam pelo número”. Pois bem, eles não deveriam, mas impressionam pelo número.
Como se combate essa estupidez?
Os problemas mais graves de todos os tempos são evidenciados até hoje pelos profetas. Até mesmo na Bíblia havia até profetas leigos, como Amós, um camponês. Vimos figuras proféticas também na política, figuras extraordinárias, no imediato pós-guerra. Eles apontam para o cérebro e para o coração. Em primeiro lugar, fazem ver a realidade, na sua autenticidade – portanto, o cérebro – para nos fazer descobrir os valores autênticos; depois vão ao coração, porque comprometem na paixão. Hoje, em vez disso, muitos falam para a barriga.
Uma vez, o sociólogo canadense Charles Taylor, autor de “Uma era secular” [São Leopoldo: Unisinos, 2010], me disse: “Se Cristo chegasse hoje à praça e começasse a anunciar a sua Palavra – que era fogo de verdade –, o que aconteceria? No máximo, lhe pediriam os documentos”. Acho muito bonita a imagem do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein no “Tractatus Logico-Philosophicus” quando, a propósito da pessoa humana, diz: “O que eu queria identificar eram os contornos de uma ilha”, isto é, o ser humano, como criatura finita. E continuava: “O que eu descobri no fim foram as fronteiras do oceano”. A superficialidade é olhar apenas para o contorno da ilha, isto é, para a barriga, para a pele, para a exterioridade, para o interesse imediato.
Para continuar com a metáfora dos bulbos de esperança, o senhor acha que, em algum momento, haverá uma maioria silenciosa que reagirá e começará a extraí-los?
Estou convencido de que a maioria da sociedade não se preocupa em extrair bulbos de valor dos escombros. Esta, então, deveria ser a tarefa das religiões autênticas e da cultura: ser minoria que estimula. Uma minoria “ofensiva”. E, como uma minoria nunca pode sê-lo com as armas, porque sempre seria perdedora, ela deve se tornar uma espécie de espinho no flanco.
O senso de responsabilidade é uma tarefa de minoria.
Sim, é preciso criar consciência. Eu também digo isso em relação à Igreja hoje na Itália. Eu venho de Brianza: muitas pessoas confluíam à igreja para a missa no domingo de manhã. Agora, quando eu volto para casa, não encontro ninguém na igreja que não tenha cabelos grisalhos! No entanto, essa minoria pode se tornar mais eficaz do que a grande e imponente maioria.
Ajude-me a entender melhor o que o senhor quer dizer.
Tomemos a figura – aliás, também contestada – do Papa Francisco. Ele diz coisas que, muitas vezes, são evidentemente de minoria. E se veem as reações que provoca. Mas o espinho no flanco, quando é autêntico, não é necessariamente perdedor, como ocorre na atenção que desperta.
Quais são as palavras-chave do papa para combater os escombros?
Francisco tem acima de todos três elementos que eu destacaria. Primeiro, ele entendeu que, para a sociedade contemporânea, a linguagem é fundamental. Se eu falo uma linguagem obsoleta, a surdez é óbvia – de “surdo” deriva “absurdo”. Hoje, é considerado absurdo o que as pessoas não conseguem aceitar dentro da concha do próprio ouvido, isto é, adaptar ao seu interesse.
E a linguagem do papa, como é?
Ele entendeu que agora é necessária a frase essencial sem muitas subordinadas. Sabemos que hoje domina o slogan. Alguns políticos vencem porque sempre têm o slogan pronto e têm às suas costas equipes que trabalham para encontrar o slogan mais adequado. É indispensável adotar, também nos valores, o recurso à essencialidade para uma maior incisividade.
A simplificação muitas vezes desencadeia a contraposição, atiça o ódio. Eu penso nos tuítes incendiários de Trump.
Sem dúvida. No entanto, essa modalidade também pode ser usada para servir ao bem. Eu também me curvei ao tuíte. Não nos esqueçamos de que Cristo falou tendencialmente em parábolas e usou os tuítes.
Em que sentido?
“Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus”: em grego, com os espaços, são 52 caracteres, poucos em comparação com os 280 possíveis hoje! E pensemos quanto se discutiu sobre a relação entre fé e política durante séculos.
O senhor falava de três chaves para entender o papa entre os escombros de hoje.
O pontífice também entendeu que a cultura contemporânea está tendencialmente ligada às imagens. E ele as usa: as “periferias”, o “cheiro das ovelhas”, a “Igreja hospital de campanha”, o “caixão não tem bolsos”... Por fim, há o terceiro elemento: o modo como ele usa o corpo, a corporeidade. Nas Audiências gerais, ele fala durante cerca de 20 minutos, depois fica uma hora com as pessoas, que, assim, se encontram com uma pessoa concreta, não envolta em uma aura de luz e de separação.
Voltando aos bulbos de esperança. Quais são as palavras que mais bem os representam: diálogo, amor, solidariedade?
Eu começaria da primeira: diálogo. No sentido etimológico, é o cruzamento de dois logoi, dois discursos. O discurso não deve ser entendido apenas como um raciocínio, mas como uma experiência fundada, uma visão que dá um sentido. O debate com o outro pode ajudar a descobrir melhor o sentido último do ser e do existir. Na palavra “diálogo”, depois, “dià”, em grego, significa também em profundidade, “diábase” significa descer. E se você quiser puxar o bulbo que está debaixo do diálogo, precisa levar a sério, se esforçar. Todos fazem o elogio da lentidão. Eu gostaria de fazer o elogio do esforço. A segunda palavra é o “amor” autêntico, não o da pele, mas aquele profundo, capaz de unir sexo, eros e amor. Se você está realmente apaixonado, começa a entender genuinamente o que significa doar-se ao outro. É isso que devemos ensinar aos jovens, que reduzem a experiência ao sexo, enquanto ele também é ternura, beleza, paixão, sentimento. Como você expressa ternura com mensagens de texto?
O senhor queria fazer o elogio do esforço.
Os jovens estão convencidos de que ela é brutalidade, suor. E é verdade, não se aprende por osmose. Mas a verdade é que, se você multiplicar o exercício do empenho, o esforço, no fim, se torna uma realidade espontânea e criativa. Pense em um atleta ou em uma bailarina clássica e nas suas infinitas horas de exercício. No Lago dos Cisnes, quando uma étoile gira sobre o seu dedão, desafiando as leis da física, ela não pensa mais naquilo que deve fazer, na sequência dos movimentos. Tudo vem espontaneamente. É criatividade pura, é liberdade pura.
Hoje, a política, em todo o mundo, espalha o pó do egoísmo, acende a raiva.
É o paradoxo. A política, como diz a raiz “polis”, cidade, é estar juntos, e a sociedade é ser sócios, companheiros de vida. Em vez disso, agora, ela faz de tudo para criar formas de “autismo” espiritual, como o medo do outro. Quando você está fechado na sua fortaleza soberana, você se reduz ao egoísmo, que certamente não é a beleza da vida, que, ao contrário, é se arriscar. Nisso, a função da arte é uma espécie de antídoto, precisamente como a verdadeira religião.
O senhor se lembra de protagonistas positivos na política?
De Gasperi, Adenauer, Schumann, Spinelli... e outros.
O europeísmo fundador, verdadeiro e sadio.
Sim, mas às vezes eles vinham da província. Pensemos em De Gasperi. Outra figura que poucos conhecem é Dag Hammarskjöld, o secretário-geral da ONU que morreu nas operações de paz na África, onde foi abatido com o seu avião. Ele havia se dedicado a estabelecer pontes dentro dos conflitos. Mas também penso nos prefeitos de municípios de antigamente: eles conheciam todos os habitantes, compartilhavam os seus problemas e, no fim, eram eleitos. Agora, os políticos vivem quase que exclusivamente para serem reeleitos, muitas vezes com o recurso à demagogia.
Os populismos, hoje uma das alavancas fundamentais da política, não só na Itália, não correm o risco de ser um instrumento para aprendizes de feiticeiros? Existe o perigo de que isso saia do controle por parte daqueles que os manejam, como já aconteceu.
O populismo vem de “povo”, parte de um núcleo positivo. Reencontrar a identidade de um povo é uma coisa bonita, pensemos na glória da Itália do ponto de vista artístico, cultural, filosófico. A identidade que se faz cristalização e rejeita o outro, em vez disso, se torna uma fortaleza. No fim, em seu interior, ela tem um povo escravo, incapaz de se interrogar. Em italiano, temos uma palavra bonita: “incontro” [encontro]. Ela é constituída por dois elementos, “in”, que é ir rumo a, e “contro”, porque o outro é, sim, idêntico a você, mas também é diferente de você. O populismo pressupõe apenas o “nós”, a “identidade nossa” salvífica. Poderíamos construir, em vez do “duelo” que o populismo cria, um “dueto”. O dueto pode ser entre um baixo e uma soprano... O que há de mais diferente? E não é que o baixo deva fazer um falsete, e a soprano, descer uma oitava: a harmonia é criada por cada um com a própria voz. A diversidade na identidade.
Falemos das mídias sociais. Elas ainda me parecem ser um faroeste. No ano passado, o senhor também se encontrou diante da reação da rede depois de ter publicado uma frase do Evangelho no Twitter. Até Salvini interveio...
A rede é isso, mas é preciso estar nela. Não podemos ser nem apocalípticos nem integrados, como dizia Eco. McLuhan defendia que esses meios de comunicação são “a extensão do homem” e dos seus órgãos: tele-fone, tele-visão, tele-scópio... Mas a verdadeira revolução é que se criou um novo ambiente, a infosfera, um novo mundo do qual não podemos nos subtrair. De novo de acordo com o princípio do espinho no flanco, devemos fazer com que não nos adequemos aos desvios e não nos deixemos condicionar: pensemos em que os grandes gestores das redes de informáticas conseguem fazer em relação aos usuários.
O que está alimentando o ódio agora também são as manipulações das “fake news”.
A “pós-verdade”, uma falsidade reiterada que se torna verdade sucessiva, é um paradoxo incrível. Uma falsidade nunca pode se tornar verdade! É por isso que é preciso “estar dentro” da rede com paixão, porque existem maravilhas, mas também é necessário introduzir sempre a semente da busca da autêntica verdade.
Outro “bulbo” poderia ser precisamente o da busca, em todos os sentidos, também científica. Nunca ficar contentes com o que nos é dado. Platão coloca na boca de Sócrates, na “Apologia de Sócrates”, uma espécie de testamento final: “Uma vida sem busca não merece ser vivida”. Essa busca é a inquietação interior, e os jovens a têm. A inquietação também tem um rosto negativo, mas pode se tornar o impulso ao interrogar-se, é o “Inquietum est cor nostrum” de que falava Agostinho. O escritor francês Julien Green dizia: “Enquanto estivermos inquietos, podemos ficar tranquilos”.
Entre as muitas coisas negativas do nosso tempo, está também o escândalo da pedofilia na Igreja. O papa assumiu uma posição muito forte. Quanto tempo levará para a Igreja prestar as contas disso plenamente?
Esse pode ser um exemplo do “autoespinho” que Francisco quis introduzir na Igreja e, antes dele, Bento XVI. O fiel também deve ser autoconsciente e autocrítico, caso contrário é apenas um espelho da sociedade. Martin Luther King defendia que “o cristão no mundo não deve ser um termômetro, mas sim um termostato”. Não deve registrar a temperatura do ambiente, mas sim aquecê-lo. É claro que, para o fenômeno da pedofilia, apontou-se o dedo violentamente apenas contra a Igreja, mas sabemos que, na realidade, o nível mais alto está na família e depois no esporte... Mas a atitude autodefensiva e apologética não seria a certa. Esse problema, então, levanta uma série de corolários: a formação nos seminários, a reflexão sobre a educação ao celibato, embora se saiba que o problema existe de maneira idêntica em outras denominações religiosas que, por sua vez, têm o matrimônio dos seus eclesiásticos. E depois a seleção dos sacerdotes. Toda uma série de exames de consciências e de verificações que devem ser feitas dentro da Igreja. E também, acrescentando o fato de que o pecado também faz parte de uma dimensão da Igreja, que é uma realidade encarnada e não etérea. Pensemos na corrupção do papado em certos períodos da Idade Média. Santo Agostinho também tem uma bela imagem: “A Igreja é como a Arca de Noé, dentro da qual havia a pomba e havia os corvos”. A religião judaico-cristã, particularmente a cristã, é uma religião histórica e, portanto, carnal.
“O Verbo se fez carne”...
O escândalo faz parte, de algum modo, da estrutura da Igreja, divina mas também humana. Não é angelical, não decola da realidade rumo aos céus míticos e místicos, está implantada no terreno da história. Se a pedofilia deve ser eliminada, também deve ser eliminado o apego ao poder e ao dinheiro. Mas devemos lembrar que, para o fiel, existe também a presença do divino, da força do Espírito que é purificação e catarse. O apelo que o Papa Francisco faz frequentemente, porém, é duplo: condenação e severidade, mas sem esquecer também a misericórdia.
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''Até Jesus usava os tuítes (para o bem).'' Entrevista com Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU