31 Janeiro 2019
A religião dá força. Mas por quê? Psicólogos e neurocientistas decifram a alma humana. O texto abaixo se baseia em uma conversa moderada pela jornalista Britta Baas entre o neurologista e psiquiatra Boris Cyrulnik e o psicólogo das religiões Henning Freund, ocorrida no início de outubro de 2018, na Haus am Dom, em Frankfurt, Alemanha.
A reportagem foi publicada em Publik-Forum, 23-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ismael é uma criança-soldado, em algum lugar na África. “Eu não tenho escolha, tenho que fazer o que os soldados me pedem. Meus pais e meus irmãos não estão mais vivos. Não tenho ninguém a quem acorrer. Os soldados nos dão fuzis e nos obrigam a matar os prisioneiros. Eles nos enchem de drogas. Eu mato para poder sobreviver. A arma me defende, me mantém vivo. Quando eu mato, não sinto nada. Se eu não mato, sinto como eu estou só e abandonado. Somente na mesquita é que eu me sinto bem, porque lá posso encontrar a Deus.”
Anna é uma mulher na faixa dos 30 anos, em algum lugar na Alemanha. Ele mora sozinha, mas não porque escolheu. Ela queria ter um relacionamento com um homem. Um homem bem específico. Mas ele não a quer. Quando ele disse isso a ela, ela se sentiu muito mal. Nos primeiros dias, ela chorou muito, custou a se concentrar no trabalho. As semanas passaram. Um dia, durante as compras de Natal, Anna entrou em uma igreja. Sentou-se em silêncio em um banco e olhou para o altar, os vitrais das janelas, as velas acesas. De repente, sentiu dentro de si um sentimento forte, uma nova segurança. Pensou: “Deus, tu me amas. Eu estou em ti, e tu, em mim. Eu não preciso daquele homem”.
Elie Wiesel, escritor, falecido em 2016, sobrevivera ao Holocausto. Após a sua libertação do campo de concentração, escreveu, a pedido dos Aliados, sobre aquilo que viveu lá dentro. A recordação do horror culminou no relato da morte por enforcamento de um menino. “Ele ficou pendurado por mais de meia hora e lutou entre a vida e a morte diante dos nossos olhos a sua batalha contra a morte. E tínhamos que olhá-lo no rosto. Ele ainda estava vivo quando passei perto dele. A sua língua ainda estava vermelha, os seus olhos, ainda não apagados. Atrás de mim, ouvi um homem perguntar: ‘Onde está Deus?’. E ouvi uma voz dentro de mim responder: ‘Ali – está pendurado ali, na forca’.”
Por que Ismael, Anna e Elie sentem que recebem força de Deus? Não seria óbvio, em todos os três casos, deprimir-se? “Agradecendo” por renunciar a um Deus que não liberta? Não liberta nem do status de criança-soldado, nem da falta de perspectivas de amor não correspondido, nem dos torturadores de um regime cruel?
Nenhum Deus intervém com mão poderosa para colocar o mundo de volta no lugar. Coisas assustadoras acontecem. Coisas tristes continuam existindo. A morte sobrevém. No entanto, as pessoas são testemunhas de uma força que as sustenta e que lhes sussurra: “Aconteça o que acontecer, eu estou contigo!”.
“É o amor pelo Deus terapeuta, aquele do qual especialmente os desesperados precisam tanto”, diz Boris Cyrulnik. É um Deus que cura, que aumenta a força de resistência contra as controvérsias da vida. Cyrulnik, neurologista e psiquiatra, nascido em 1937 na França, filho de imigrantes judeus que fugiam dos nazistas e que, porém, perderam a vida no campo de concentração, é considerado um dos pais da pesquisa sobre a resiliência.
Ele pergunta: o que nos torna fortes? O que nos impede de nos desesperarmos em situações sem saída alguma? É surpreendente que a sua resposta seja: acima de tudo, graças a “Deus”.
Durante décadas, tal resposta, em ambientes terapêuticos, não despertaria nenhum interesse científico, nem seria levada em consideração. O que impressiona é que ela é pronunciada por um homem que diz de si mesmo: “Eu não me definiria como uma pessoa de fé”.
“Finalmente, um grande psiquiatra se expressa sobre o tema da religião. Isso não acontecia há muito tempo”, diz o psicólogo das religiões Henning Freund, alemão. Ele dirige há muito tempo um hospital-dia para psiquiatria e psicoterapia em Frankfurt, trabalha desde 2014 no seu próprio consultório em Heidelberg.
Usar a religião e a religiosidade como recursos na terapia é uma coisa óbvia para ele. Ele sente as pesquisas de Cyrulnik como um encorajamento: a religião não deve ser “tratada”; ela tem um significado importante para a vida inteira de uma pessoa.
Sabe-se lá o que Sigmund Freud teria dito a respeito! No início do século passado, ele imprimiu um modo de ver que se impôs durante décadas como padrão: na sua concepção, Deus nada mais é do que uma figura paterna exorbitante, do qual, no próprio desenvolvimento, nos libertamos. As representações religiosas, para o famoso psicanalista, não eram consequências da experiência ou resultados do pensamento, mas apenas ilusões. Se um adulto “ainda” acreditava, isso significava que ele não tinha conseguido superar a sua infantilidade.
Por que a grande distância em relação à religião permaneceu como um fator determinante para a psicanálise na Europa – muito além de Freud? “Com a experiência do nacional-socialismo, nunca mais se queria misturar, em caso algum, psiquiatria e ideologia”, diz Henning Freund, que assim confirma indiretamente que a religião foi e é considerada por muitos como uma ideologia.
“Na Alemanha, ganharam importância as correntes de psicologia do profundo que foram influenciadas por Freud. Mais tarde, a terapia comportamental abriu caminho em muitos consultórios e em muitas clínicas. Ela ignorou a religião, porque é algo não mensurável.”
Mas, há cerca de dez anos, observa-se uma “virada espiritual” [spiritual turn] na psicoterapia. Um importante indicador dessa tendência é a onda da conscientização que deixou marcas nas ciências da saúde e na psiquiatria. “Lá, pela primeira vez, chegam à psicoterapia conceitos que são importantes nas tradições espirituais”, explica Freund. Até mesmo associações profissionais, como a Sociedade Alemã de Psiquiatria e Psicoterapia, voltam a se ocupar seriamente das questões religiosas. Algo se move.
E por que a religião dá força justamente aos desesperados? Os estudiosos do cérebro, hoje, têm noções precisas disso, que eram acessíveis apenas em grandes linhas a Sigmund Freud. “Como mostram os experimentos”, explica o neurologista Boris Cyrulnik, “em experiências de amor extáticas e na escuta de histórias de horror, são ativadas as mesmas regiões do cérebro. Do ponto de vista neuronal, o maravilhoso e o assustador não são opostos. As sensações opostas estão fisiologicamente ligadas, para que o organismo permaneça em equilíbrio.”
Segue-se daí que é salutar poder opor a experiência do assustador à experiência do êxtase. Deus é acessível justamente àqueles que são forçados a viver com grandes medos: “O estado químico de tais regiões do cérebro pode ser influenciado pela matéria que é emitida, mas também por uma forte representação interior”.
Boris Cyrulnik não vê nem a necessidade nem a vantagem de afastar Deus da terapia, se a fé em Deus tem tais influências positivas. Talvez, para muitos europeus, essa fé pareça tão “pouco adulta”, no mínimo, porque eles foram “vacinados” culturalmente pelas imagens freudianas da racionalidade como forma máxima de expressão de uma pessoa racional.
Cyrulnik refere-se à história daqueles que, nas religiões, têm medo, religiões que são capazes de formá-los de maneira determinante e, com isso, obter uma imensa influência cultural. Ele encontra exemplos famosos na Bíblia: Paulo é um deles. Toda a sua atividade missionária se baseia, no fundo, na superação do medo do estrangeiro. Assim, ele difunde o cristianismo mesmo lá onde deve continuamente fazer as contas com a morte. O seu amor por Deus supera todas as barreiras. A sua conversão, como representada pela Bíblia, é um êxtase celeste, que mostra a conversão como um evento de um instante.
Mas seria errado tirar como conclusão da relação fisiológica entre medo e êxtase que esse é o pressuposto necessário de uma relação com Deus terapeuticamente eficaz. A maioria das pessoas não “experimentam” Deus através de um evento de um instante e de uma conversão, nem através de uma perda e de uma redenção.
“As pessoas, na maioria dos casos, experimentam Deus aprendendo a falar”, diz Boris Cyrulnik, simplesmente. “Elas começam a amar a Deus, assim como amam a sua mãe.” Quando eu, quando criança, falo com os meus pais, posso também criar uma imagem de Deus? “Sim”, é a resposta do neurologista.
E ele se refere aos processos de desenvolvimento: com cerca de três anos, a criança pode expressar a proximidade em palavras; aos cinco anos, pode mostrar uma profunda empatia pelos outros; aos sete ou oito anos, pode desenvolver uma concepção de “tempo”: “Se a criança, nesse momento, sente no seu ambiente uma narrativa cultural da vida após a morte, ele está pronto para acreditar nela”.
Como é da experiência de relação da primeira infância que deriva a futura imagem de Deus, surge aqui o problema se Deus pode se tornar terapeuta ou não: “Uma criança que foi negligenciado, que não experimentou qualquer vínculo não pode amar. Nem mesmo a Deus”, diz Boris Cyrulnik. Porque a experiência do outro está inscrita neurologicamente. Se essa experiência não existe, também falta a “antena para Deus”.
Henning Freund não vê a questão de modo tão categórico: “Vemos também casos em que algumas pessoas, quando adultas, de repente, experimentam um Deus amoroso”. Ele chama esse evento de “conversão” – mas não entende, com essa palavra, uma “mudança fundamental de si”, mas sim um “tornar-se livre”, uma capacidade de relação novamente adquirida. É sempre o amor que pode provocá-la.
Mesmo pensando de maneira diferente de Cyrulnik sobre esse ponto, o fato de integrar na sua análise um “modelo de fé” que não depende de um “ou... ou...” da relação com Deus, mas que também leva em conta a fé da “criança com relações muito incertas”, é uma aquisição positiva. De uma criança assim, Cyrulnik diz que “ela ama a Deus com cautela” – mas, justamente, pode amar.
Freund entra no nível pessoal: “Eu me encontrei nisso”. Mas o fato de que a fé pode derivar de um vínculo incerto é apenas um lado da moeda. O outro é que as relações humanas são capazes de fortalecer novamente a fé em um momento sucessivo: “O amor pela minha filha realmente me tornou capaz de amar pela primeira vez”.
Deus como terapeuta é irrenunciável, então? Freund contrapõe: “Não precisamos de Deus para permanecer saudáveis ou para nos curarmos”. A religião oferece muitas estratégias de superação, mas também os ateus, sem ela, obtêm sucesso na vida. “Eles trabalham, por exemplo, como autodidatas em sentido positivo – ‘Eu consegui até agora!’ – e se comportam de acordo com as situações: ‘O pneu furou? Simplesmente tenho que trocá-lo. Rezar não ajuda’.”
No entanto, hoje, a religião é um elemento importante na vida de muitas pessoas. E encontra uma nova atenção. Cyrulnik analisa a relevância dos sistemas religiosos em culturas adultas e daí tira a convicção de que a religião dá força. No entanto, esse fortalecimento do indivíduo deve demonstrar a sua validade diante de dois desafios.
Desafio número um: especialmente na Europa Ocidental, mas não apenas lá, existem sociedades que criam novas formas sociais do religioso. As pessoas são “espiritualmente abertas”, mas não mais pertencentes como sociedade inteira a uma religião de tradição. Como essa “nova” espiritualidade das pessoas dá força? De que fontes ela se alimenta? E que consequências isso tem para o viver junto?
Desafio número dois: como o indivíduo vive no entrecruzamento de política e sociedade, é preciso se perguntar: a sua religiosidade o torna capaz de diálogo? Favorece a sua compreensão do outro na sua diferença? Torna o mundo em um lugar de mais paz?
Religião e espiritualidade só são fatores positivos quando são movidos pelo amor. Pela disponibilidade de se identificar com aquele que está na nossa frente, de olhar o mundo com os seus olhos. É impossível legitimar o ódio e a violência contra os outros a partir da fé em Deus, se a relação com Deus deriva do amor vivido e supera a concepção amigo-inimigo. Mas só se consegue fazer isso quando se pode experimentar o “Deus estrangeiro”. Aquele em quem os outros creem.
De acordo com a visão de mundo de Cyrulnik, as pessoas às quais essas experiências são acessíveis recebem um dom que dificilmente pode ser maior. Quem se abre aos mundos da fé e do pensamento estrangeiros pode chegar à convicção: “Tudo isso não é nada estranho para mim. Há aí tantas coisas semelhantes a mim e à minha fé. Como é maravilhoso! E, naquilo que me é estranho, eu ainda posso ver um dom a mais de mistério e de amor”.
Quem faz essa experiência, diz Boris Cyrulnik, poderia gritar com viva sinceridade à humanidade: “Fiéis de todo o mundo, uni-vos!”. Com isso, ele se refere ao fato de que as pessoas, por mais caracterizadas de um modo diferente em termos de família, cultura e ambiente, podem “sentir” juntas que ali há uma grande força que as “move”. Como pessoa de fé, ele também compreende os agnósticos e ateus que ouvem, falam e agem com um coração cheio de amor. Visto assim, o próprio Cyrulnik é uma pessoa de fé, embora não seja um fiel religioso.
Toda fé é um esperar se tornar e ser um com os outros – mas, ao mesmo tempo, poder permanecer como si mesmo. É um entrar em empatia com os outros, que vai muito profundamente – e que, talvez, justamente por isso, se torna um enriquecimento pessoal e potencial para uma renovação da sociedade.
Cyrulnik expressa isso assim: “Se eu quisesse fazer uma declaração de amor a alguém, eu poderia dizer: ‘Eu acredito no mesmo Deus em quem você acredita’”.
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Deus, meu terapeuta. Entrevista com Boris Cyrulnik e Henning Freund - Instituto Humanitas Unisinos - IHU