09 Agosto 2018
“Hoje, as populações nacionais tremem pelos imperativos funcionais politicamente incontroláveis de um capitalismo movido pelas marchas financeiras que escapam de toda regulação. A boa resposta não pode consistir em um recolhimento alarmado atrás das fronteiras nacionais”, avalia o filósofo alemão Jürgen Habermas.
O texto abaixo é parte de um discurso que o filósofo alemão pronunciou no dia 4 de julho, durante a entrega do grande Prêmio Franco-Alemão dos Meios de Comunicação 2018, em Berlim, publicada em sua versão espanhola por Letras Libres, 08-08-2018. A tradução é do Cepat.
No marco das negociações mantidas acerca das propostas de reforma apresentadas por Emmanuel Macron, a Alemanha – com o reboque dos chamados países doadores – se mostra reticente em transformar uma união monetária que funciona, no momento, em condições subótimas, em uma união política da zona euro.
Com a finalidade de alcançar esse objetivo, uma zona euro democrática não deveria ser concebida apenas para resistir a todas as tempestades especulativas, com uma união bancária controvertida e seu procedimento de liquidação de responsabilidade, com uma garantia comum de depósitos que protegem os ativos dos poupadores e um fundo de dinheiro controlado em nível europeu. Uma zona euro democrática deveria, sobretudo, ser dotada de competências e de meios orçamentários necessários para que deixem de se ampliar as diferenças econômicas e sociais entre os Estados membros.
Não se trata apenas de estabilização em matéria fiscal, também de convergência. Ou seja, que os Estados membros mais poderosos nos planos econômico e político tenham que se mostrar decididos a cumprir, por fim, o que se comprometeram a fazer: colocar em marcha uma moeda única que conduza à convergência das situações econômicas respectivas dos Estados membros.
O populismo de direitas pode praticar a sobrepuja se apoiando em preconceitos contra os migrantes e avivando os medos das classes médias, desconcertadas como estão frente a determinados fenômenos da modernidade, mas os sintomas não são a enfermidade. A causa da regressão política, mais profunda, reside em uma decepção cruel: não é somente que a União Europeia atual não dispõe da capacidade de ação política que seria necessária para lutar contra as desigualdades endêmicas presentes no seio dos Estados membros e também entre eles; é também e sobretudo que a União Europeia atual não parece ter intenção de se tornar capaz de uma ação política, e que esta ausência de vontade política não escapa a ninguém, sobretudo não aos que mais sofrem as desigualdades. O populismo de direitas não é mais que o fruto venenoso desta ausência de vontade política na União Europeia.
Uma União Europeia capaz de atuar politicamente faria do coração da Europa – agora em plena desagregação – a única força susceptível de lutar contra a destruição de um modelo social tão virtuoso. Na Constituição atual, a União Europeia não pode mais que acelerar esse perigoso processo de desestabilização. Se a Europa se desintegra – respondendo assim ao desejo de Trump -, é porque os povos europeus são perfeitamente conscientes, de uma maneira cada vez mais viva e realista, de que falta uma firme vontade política para frear essa lógica nociva.
Bastante distante dessa vontade, as elites políticas soçobram em um tímido oportunismo: veletas que seguem servilmente as sondagens com a esperança de se manter no poder, prisioneiras como são do curto prazo.
Um enfoque político corajoso supõe agrupar maiorias ao preço de uma polarização. A ausência geral de coragem é ironicamente esmagadora, já que as maiorias dispostas a se mostrar solidárias com um avanço assim estão aí, em estado latente, há muito tempo.
As elites políticas, e em primeiro lugar os partidos socialdemocratas, muito tímidos, não exigem o bastante de seus eleitores quanto a valores. Não se trata aqui de uma projeção pura de ideais filosóficos decepcionados. O trabalho de Jürgen Gerhards e seu grupo de pesquisa confirma a existência, no seio dos Estados membros, não só de uma consciência europeia solidária, bastante distinta da consciência nacional, como também uma boa disposição geral – que se constata em proporções destacadamente elevadas – em sustentar políticas europeias que sejam autênticas políticas de redistribuição transnacional.
A crise italiana é talvez a última oportunidade para refletir sobre esta situação obscena, onde se impôs a união monetária, que só beneficia a seus membros economicamente mais fortes, um sistema de regras rígidas que exclui qualquer margem de manobra e qualquer competência suscetível de autorizar uma ação conjunta, cuja flexibilidade viria a compensar essas regras. Por isso, o primeiro e modesto passo em direção a um orçamento da zona euro, que Macron arrancou de Merkel, é de uma grande importância simbólica. Surpreende que um governo encurralado assim aceite vender a conta-gotas sua feroz resistência a qualquer progresso para uma maior integração.
Coisa inexplicável, o governo alemão parece seguro de poder convencer a seus sócios de construir causa comum em política migratória, política exterior e comércio exterior, enquanto bloqueia esta questão central, literalmente vital, que é o desenvolvimento político da zona euro.
Enquanto o governo alemão pratica a política de avestruz, o presidente francês afirma sua vontade de fazer da Europa um ator presente no cenário internacional, um ator decidido a brigar por uma ordem mundial liberal e mais justa.
A imprensa alemã apresentou o compromisso de Meseberg de maneira mentirosa. Fez acreditar que a luz verde de Angela Merkel a um orçamento da zona euro representava para Emmanuel Macron um êxito que carecia com urgência, e que teria obtido em troca de um apoio à política da chanceler em matéria de asilo.
Esta maneira de apresentar as coisas reduz uma diferença crucial: Macron, ao menos, conseguiu assentar as bases de um projeto ambicioso, que excede de longe os interesses de um único país, ao passo que Merkel só luta por sua própria sobrevivência política.
O presidente Macron é criticado, não sem razão, pelas reformas sociais desiguais que coloca em marcha na França, mas se mostra muito superior ao restante dos dirigentes europeus pela altura de sua visão em cada problema atual: é essa altura de visão o que lhe permite atuar não apenas a partir de uma postura reativa.
Se Macron se distingue do restante dos dirigentes é por sua coragem: atreve-se com uma política criativa, cujos êxitos rejeitam o clichê sociológico de que a complexidade de nossas sociedades modernas só permite uma postura reativa, preocupada em se esquivar do conflito.
A situação atual é historicamente inédita, e a ideia correta que vem da Antiguidade, segundo a qual o declive sucederia inevitavelmente ao apogeu dos impérios, não nos é aqui de nenhuma ajuda. A sociedade mundial, cada vez mais integrada no plano funcional, está fragmentada no plano político.
Esta neutralização da política só pode nos incitar a superar o limite que tanto intimida e inclusive assusta nossos contemporâneos: penso, é claro, na transição a essas formas supranacionais de integração política, que exigem de todo cidadão de um Estado membro, antes de depositar uma cédula na urna, que se coloque no lugar de um cidadão de outro, através das fronteiras nacionais.
Muito monopolizados por seus sarcasmos, os apóstolos do realismo político fizeram esquecer rápido até que ponto sua visão do mundo responde ao esquema de uma guerra fria entre atores nacionais. Onde está a racionalidade de atuar na arena contemporânea?
De um ponto de vista histórico, a transição para uma União Europeia capaz de ação política se inscreve na continuidade de um processo de aprendizagem que se desencadeou com o surgimento da consciência nacional no século XIX. Esta consciência nacional, esse sentimento de pertencer a uma comunidade nacional que transcenda as do povo, da cidade à região, não é um processo de geração espontânea. Sempre foi o fruto de um trabalho, o das elites influentes susceptíveis em adaptar as relações funcionais que já existiam entre nossos Estados e suas respectivas modernas economias nacionais.
Hoje, as populações nacionais tremem pelos imperativos funcionais politicamente incontroláveis de um capitalismo movido pelas marchas financeiras que escapam de toda regulação. A boa resposta não pode consistir em um recolhimento alarmado atrás das fronteiras nacionais.
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“Populismos de direita surgem da ausência de vontade política na Europa”, afirma Jürgen Habermas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU