31 Agosto 2016
“O conflito com os mineiros cooperativistas é uma disputa entre o povo e o capital pelo excedente. O indevidamente chamado cooperativismo quer liberdade para poder associar-se com transnacionais e explorar os recursos naturais com a finalidade de obter a máxima mais-valia possível tanto da Mãe Terra como de seus trabalhadores assalariados. Nesse sentido, o governo pode sentar-se para ouvir demandas, mas não pode violar a soberania do povo boliviano sobre os recursos naturais estabelecidos pela Constituição Política do Estado”, escreve Katu Arkonada, pesquisador e analista do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Ceadesc, em Cochabamba, na Bolívia, em artigo publicado por Telesur, 27-08-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
As cooperativas de mineiros têm como origem a crise econômica mundial provocada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Muitas empresas transnacionais entram em crise e são obrigadas a demitir trabalhadores, a quem entregam parcelas para sua exploração.
A Revolução de 1952 traz consigo a nacionalização das minas, sob o governo de Víctor Paz Estenssoro, e a criação da Corporação Mineira da Bolívia (Comibol), reforçando a mineração estatal e enfraquecendo as iniciativas de autônomos.
Mas não se pode entender a passagem das cooperativas de mineiros, com sócios trabalhadores como em qualquer parte do mundo, e sua transformação em pequenos empresários mineiros que extraem mais-valia não apenas dos recursos naturais, mas dos trabalhadores contratados, sem entender como o neoliberalismo é implantado na Bolívia.
É em 1985, novamente sob o governo de Víctor Paz Estenssoro, que se implementa o Decreto 21060 que permite a “flexibilização trabalhista” e se executam mais de 20 mil demissões no setor mineiro estatal entre 1985 e 1986, os quais passam a se articular em torno de cooperativas.
Posteriormente é Gonzalo Sánchez de Losada, empresário mineiro, que acaba de desmontar a Comibol, entregando as grandes empresas às transnacionais e fazendo concessões e/ou transferindo para sócios cooperativistas máquinas, perfuradeiras, extratoras, etc., transformando-os em pequenos empresários.
Apesar de ter sido favorecido por Gonzalo Sánchez de Losada, as cooperativas de mineiros transformaram-se na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Foram atores fundamentais nas mobilizações contra o governo de Goni, chegando a tomar a Praça São Francisco, o ato militar mais forte dos protestos anti-neoliberais. Em 2005, quando Carlos Mesa renuncia, converteram-se no principal ator que impede que os direitistas Hormando Vaca Díaz, presidente do Senado, e Mario Cossío, presidente da Câmara dos Deputados, sejam empossados como presidente, facilitando o acesso à Chefadura do Estado de Eduardo Rodríguez Veltzé, presidente da Suprema Corte, que depois convocaria as eleições vencidas por Evo Morales.
É por isso que, enquanto ator político de primeira grandeza, tanto qualitativo como quantitativo – pois das 454 cooperativas mineiras que havia em 1990, passa-se para 778 cooperativas em 2005 –, que articulam dezenas de milhares de trabalhadores.
A Constituição Política, em seu artigo 311, na Estrutura e Organização Econômica do Estado, determina que “os recursos naturais são de propriedade do povo boliviano e serão administrados pelo Estado”.
O artigo 369 indica que “o Estado será responsável pelas riquezas mineralógicas que se encontrem no solo e subsolo qualquer que seja sua origem, e sua aplicação será regulada pela lei. Reconhecem-se como atores produtivos a indústria mineira estatal, a indústria mineira privada e sociedades cooperativas”.
Também o artigo 370 afirma que “o Estado outorgará direitos mineiros em toda a cadeia produtiva, assinará contratos mineiros com pessoas individuais e coletivas prévio cumprimento das normas estabelecidas na lei. II. O Estado promoverá e fortalecerá as cooperativas mineiras para que contribuam para o desenvolvimento econômico social do país. III. O direito mineiro em toda a cadeia produtiva, assim como os contratos mineiros têm que cumprir uma função econômica e social exercida diretamente por seus titulares”. Mas, sobretudo o artigo 371 é claro: “As áreas de exploração mineira outorgadas por contrato não podem ser transferidas, abarcadas e transmitidas por sucessão hereditária”.
Na segunda semana de agosto, as cooperativas de mineiros anunciaram uma paralisação indefinida em todo o território boliviano, caso o Governo não atender a uma lista de reivindicações contendo 10 pontos, que ao longo do conflito se transforma em 24 demandas, entre as quais podemos destacar:
O governo boliviano manteve uma posição de diálogo, convocando os cooperativistas mineiros para reuniões com os ministros da Presidência, Governo e Mineração, ao mesmo tempo que se mostrava firme em sua posição de não violar a Constituição frente às demandas corporativas de um grupo de empresários que deixou de pensar no país para pensar em seu lucro privado.
Há dois fatos que deverão ser investigados nos próximos dias, mas é uma realidade que quanto mais perto as duas partes, governo boliviano e cooperativistas mineiros, estiveram de sentar-se à mesa, aconteceu algo que impossibilitou o diálogo:
Rodolfo Illanes, militante do processo de mudança e com uma longa trajetória em cargos de responsabilidade, era vice-ministro do Regime Interior e Polícia. Illanes ofereceu-se voluntariamente para ir a Panduro, local do principal bloqueio, com a finalidade de dialogar com a direção cooperativista. Em Panduro, foi sequestrado e retido durante toda a quinta-feira, 25.
Em um terceiro momento, que deve ser esclarecido, e quando o governo e a direção cooperativista já estavam de acordo para retomar o diálogo, ocorreu um enfrentamento confuso que, pelo que parece, deixa um terceiro mineiro morto, o que teria sido utilizado para provocar o linchamento do vice-ministro Illanes, que é assassinado e cujo corpo é abandonado às margens da rodovia na madrugada. Illanes morreu em decorrência de traumatismo cranianoencefálico.
Podemos distinguir duas fases na ação de uma boa parte dos meios de comunicação bolivianos no conflito com os mineiros cooperativistas.
Até a semana trágica que culmina com o assassinato de Illanes, a maioria dos meios de comunicação instala a matriz de que o conflito com a patronal mineiro-cooperativista é uma briga entre aliados políticos, rejeitando e criticando suas demandas.
Na semana que começa no dia 22 de agosto, uma boa parte dos meios instiga o conflito a partir das falsas ordens de prisão. Inclusive dando espaço e protagonismo aos dirigentes cooperativistas para desmentir o ministro de Governo que havia declarado que as ordens eram falsas. Essa notícia desencadeia as mobilizações, e a partir daí se segue alimentando o cenário de confrontação.
Na quinta-feira, 25 de agosto, e sexta-feira, já com um vice-ministro sequestrado, torturado e assassinado, além de três mineiros mortos nos enfrentamentos, os jornalistas da direita boliviana tentam instalar a matriz de que o que aconteceu é fruto da intransigência do governo e da falta de diálogo, a fim de atribuir a responsabilidade pelas mortes a ambos os lados do conflito.
O conflito com os mineiros cooperativistas é uma disputa entre o povo e o capital pelo excedente. O indevidamente chamado cooperativismo quer liberdade para poder associar-se com transnacionais e explorar os recursos naturais com a finalidade de obter a máxima mais-valia possível tanto da Mãe Terra como de seus trabalhadores assalariados. Nesse sentido, o governo pode sentar-se para ouvir demandas, mas não pode violar a soberania do povo boliviano sobre os recursos naturais estabelecidos pela Constituição Política do Estado.
Também é necessário mencionar a posição dos movimentos sociais bolivianos, sindicatos camponeses e povos indígenas, que pediram que a reversão das concessões mineiras e dos privilégios de que gozam os cooperativistas.
Nesse sentido, um possível cenário é uma reacomodação na política de alianças sociais do atual governo, onde os mineiros cooperativistas, muito desprestigiados após uma semana trágica que deixa um saldo de vários mortos nos protestos, perdem posicionamento e legitimidade política. A reacomodação também se dará no lado interno, pois parece pouco provável que a atual direção cooperativista possa continuar à frente do movimento, com o acréscimo de que alguns de seus dirigentes poderão ser incriminados como autores materiais ou intelectuais do assassinato do vice-ministro Illanes.
Em qualquer caso, é necessário determinar o grau de conspiração interna e externa, denunciada pelo presidente Evo Morales na entrevista coletiva da sexta-feira, 26, pois a conspiração será um elemento determinante no aumento da conflitividade social até 2019, ano em que se joga a continuidade do processo de mudança encabeçado pelo presidente Evo Morales.
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Bolívia. Dez perguntas e 10 respostas sobre o conflito com os “cooperativistas” mineiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU