Fazer ciência é habitar a terra sem deixá-la aos lobos. Entrevista especial com Christian Dunker

Christian Dunker, professor e pesquisador da USP, discute os atuais debates que refutam a psicanálise como ciência e reflete sobre o papel do campo como crítico a uma ideia tecnocientífica de ciência

Foto: Jose Luis Cernadas Iglesias/PX Here CC

Por: IHU e Baleia Comunicação | 14 Março 2024

Em linhas muito gerais podemos pensar e, de certo modo, definir a ciência como uma forma de inscrição da razão como experiência coletiva. Por dedução lógica pode-se inferir que os modos de fazer ciência são tão variados quanto o são os coletivos humanos. Hoje essa inscrição ocorre em escala global e, praticamente, em tempo real, o que traz uma armadilha: a confusão entre tecnologia e ciência.

“Quando mobilizamos tecnologias que vão trair, apagar a sua natureza mesma de meras tecnologias, elas vão se impor como valores, como conceitos, como deliberações propriamente científicas”, afirma Christian Dunker em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “A ciência não pode aparecer como monológica, com uma voz só, e é como a gente em geral se pronuncia. Inclusive os pontos críticos exigem uma força a mais de consenso para podermos mudar a realidade em curso, como, por exemplo, o colapso ambiental”, complementa.

O professor e psicanalista assumiu a linha de frente da defesa da cientificidade da psicanálise com seu novo livro Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência (São Paulo: UBU, 2023), escrito com Gilson Iannini. Mas ele não descarta completamente as críticas à psicanálise, embora refute uma certa generalização vulgarizante do campo.

“O fundo da crítica vale a pena, porque muitos psicanalistas viraram as costas para a ciência, viraram as costas para o mundo e estão interessados em seus condomínios. Está errado isso. Aí a ciência ajuda, aí a universidade ajuda, aí precisamos ouvir críticas sim. As críticas passam dos limites, são mal-informadas, sim, mas em parte porque não informamos, porque estávamos caçando a lua enquanto os lobos continuavam pela terra mesmo”, pontua.

Christian Dunker (Foto: Divulgação | Vermelho.org)

Christian Dunker é professor Catedrático da Universidade de São Paulo (USP), psicanalista e um dos principais nomes associados ao campo no Brasil. Em 2012, foi agraciado com o Prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise com a obra Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Annablume, 2010). Em 2016, na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento ficou com o segundo lugar com o livro Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo editorial, 2015). Empenhado com a divulgação científica, atua como colunista na Revista Mente & Cérebro, na Revista Cult, na Revista Brasileiros, no blog da Boitempo Editorial e, principalmente, com seu canal no YouTube Falando Nisso.

Confira a entrevista. 

IHU – Para começar vamos tratar de um termo ou conceito importante que dá título ao seu livro “Ciência”. O que significa hoje, no século XXI, falar em ciência?

Christian Dunker – Essa é uma pergunta que remete à série de definições históricas sobre ciência. Deveríamos pressupor que vai existir um amanhã, que se redefine como um processo duplo. Um dos processos é de autocrítica – em que se percebe os limites das produções e do saber que a própria ciência produz –, buscando refinar e reduzir as condições desvio dos métodos presentes em suas técnicas. É um trabalho de crítica, mas, também, a ciência se redefine a cada momento por novos pontos de vista que criam novos objetos. Podemos, então, dizer que a ciência é uma das formas mais importantes de inscrição da razão como experiência coletiva, que podemos chamar assim, “experiência coletiva global”, o que é um fato relativamente recente, pois a ciência pode alcançar todos seus atores primários, os pesquisadores, quase em tempo real. Há uma espécie de rede de colaboração para a solução de problemas, na medida em que falamos da articulação da ciência com as tecnologias e suas aplicações.

O outro ponto é que a ciência é, hoje, uma experiência inédita de pareamento, comparação, disputa, dissenso e consenso entre os diferentes saberes e as diferentes formas que conseguimos produzir e reunir nessa nova linguagem, que é a linguagem digital.

Reprodução da capa do novo livro de Christian Dunker e Gilson Iannini (Foto: Divulgação | UBU)

IHU – Outro termo interessante do título da obra é a expressão “bobagem”. Em psicanálise não é incomum que as pessoas se refiram a aspectos de suas experiências como “bobagens”. Por que a psicanálise, volta e meia, é classificada nestes termos como uma “bobagem”? O que isso indica, para usar um termo freudiano, como sintoma de nossas sociedades?

Christian Dunker – Esta é uma indicação que aponta para restos, resíduos, experiências negadas em nosso próprio processo de constituição histórica da ciência como exercício da razão. Se pensamos que o nosso modelo de conhecimento, para o que chamamos de ciência, emerge no século XVII com Descartes [1], Hume [2] e, depois, por Kant [3] perceberemos que há algumas cláusulas de restrição. A ciência não pode ser aplicada a determinados objetos, os pseudo-objetos, os falsos objetos, objetos estéticos, certos objetos de natureza ética. Na origem da ciência há duas exclusões interessantes, expressas textualmente, na obra de Descartes. Uma delas é a exclusão do sonho, ou seja, se eu estiver sonhando, o “penso logo existo” não funciona, não deve ser percebido como uma verdade, não é uma evidência. A loucura é a outra exclusão. Se eu estiver louco, o “penso logo existo” também não funciona.

As exclusões deste tipo vão se acumulando, no Hume, no Kant, na tradição neopositivista e essas exclusões, vejam só, são necessárias. Não há método sem restrição de objeto, sem meio que possamos eliminar certos elementos para iluminar outros. Isto é, se não replicamos a realidade de forma mais ou menos controlada. O que estamos dizendo é que a psicanálise tem um pé nesta forma de pensar o método, mas ela tenta trazer para a inteireza da ciência aquilo que ela recusou ao longo do tempo: o sujeito, o sonho, a loucura, os afetos, etc. Não é que esses objetos não pudessem ser pensados de acordo com o que chamaria de método indutivo tradicional, mas as perdas são muito grandes porque aquilo que era realmente intencionado acaba destruído e o nome que damos à exclusão é “bobagem”, “tolice”, “isso não é cognoscível”, “isso não é ciência”.

Trata-se de uma exclusão indevida, porque por uma série de outros motivos estamos chegando em um momento do processo em que nos sentimos pertencendo a esta tradição (de ciência), a esta visão de mundo, a este caminho de uso da razão no espaço público.

IHU – Retomando um ponto que o senhor mencionou na primeira resposta, qual o desafio de se pensar uma ciência, hoje, que considere essa diversidade de saberes?

Christian Dunker – Um desafio que já tem um certo tempo e que começa a ficar palatável a partir do século XIX, é quando começamos a fazer uma separação entre as ciências exatas e as ciências humanas. Uma ciência que participa de uma certa convergência metodológica passa a ser chamada de “ciências duras”, ciências exatas; e há outra, as “ciências soft”, ciências leves, que, em geral, vão estar ligadas a uma espécie de esquema básico, a linguagem. São aquelas classicamente chamadas de literatura, ciências da linguagem, etc. Com o passar do tempo, fomos encontrando um ponto em comum entre os dois campos, digamos assim, que é a linguagem informática, e, hoje, a linguagem digital promove uma aproximação entre esses dois lados. Por isso, por muito tempo ouvimos falar em interdisciplinaridade, colaboração entre ciências, complementação entre métodos. Isso foi um grande discurso nos anos 1980, 1990. O que aconteceu? Isso não se traduziu, de fato, em um investimento e uma reorganização sistêmica e disciplinar que favorecesse esta colaboração. Permaneceu como um ideal não realizado.

Bem, a Fapesp vai dar dinheiro para um e para outro, só que esta área que está se tentando montar é muito nova (da inter-relação entre as exatas e as humanas). Quem vai fazer o peer-review? Quantas são as revistas? Qual o fator de impacto? Essas são questões que aparecem.

Quem começou a trabalhar nestas áreas interdisciplinares e transdisciplinares sofreu decepções muito sérias. Esse ideal de colaboração efetivo, intenso, só se realizou em instituições muito de ponta que parecem poder se “dar ao luxo” de suspender as regras mais simples, mais elementares, pelas quais a ciência passou a ser um empreendimento normativo. Isso tudo associado a um sistema de controle, um sistema de qualificação, um ranqueamento. A ciência passou a ser uma espécie de consenso entre universidades.

IHU – Como a tecnociência se transformou em um empreendimento normativo?

Christian Dunker – Isso foi objeto de uma necessidade prática, não é que nunca tinha sido pensada, mas é que precisamos, para fazer essa conversa global da ciência, de parâmetros, critérios, normas. Com isso os cientistas começaram a resolver essas questões aos seus modos. Aí eu pergunto: nós estamos ainda na ciência quando se fala em avaliação da ciência? Isso é tarefa só da ciência ou da filosofia também? Temos que fazer análise do conceito e não só o conceito normativo convencional? Temos que fazer análise de método não só porque ele é perfeitamente replicado? Problemas que são próprios desse nosso momento de ciência.

Quando mobilizamos tecnologias que vão trair, apagar a sua natureza mesma de meras tecnologias, elas vão se impor como valores, como conceitos, como deliberações propriamente científicas.

IHU – As sociedades tecnocientíficas contemporâneas transformaram a tecnologia em uma espécie de imperativo categórico que, ao menos discursivamente, coloca certos conhecimentos acima de outros. Por que isso ocorre?

Christian Dunker – Vamos intuindo isso a partir de um grupo de sintomas, de problemas que vão se acumulando e, de repente, percebemos que há um processo convergente de várias coisas. Na minha carreira como pesquisador, com bolsas Fapesp, CNPq, Capes, em um programa de excelência, um primeiro sintoma da minha experiência que me atravessou nestes últimos 30 anos é como o “publish or perish” me afetou. Ou seja, a ideia de que um pesquisador só consegue se manter como tal se mantiver uma série muito regular de publicações que estejam subsidiando os recursos para continuar a sua linha de pesquisa, para continuar seu projeto epistêmico.

Essa ideia, no fundo, acabou invertendo prioridades. É mais importante publicar e alcançar boas taxas de qualidade editorial, que, propriamente, dar uma contribuição específica para o campo “A”. Claro que contrastado com o estado anterior, em que aquele sujeito onde se podia deixar o sujeito com doutorado ficar sem publicar pelo resto da vida, o publish or perish é muito interessante, pois ele precisa prestar contas do que está fazendo, como qualquer um neste novo modo de produção social. Produzir mais e “quanto mais melhor” gerou um acúmulo intratável de Papers que ninguém lê, de revistas subqualificadas, uma estratificação de como são feitas as revistas, isto é, reproduzimos uma pirâmide em que quem tem mais dinheiro para a pesquisa acaba definindo quem é que faz “pesquisa de verdade”.

A entrada do financiamento e do financiamento correlato da produção, obviamente, é um problema para a ciência. Veja, sem desmerecer que alguma correlação entre investimento é baseada, na maior parte dos países, em recursos públicos e portanto temos que prestar satisfação do uso desses fundos públicos. Mas no caso da ciência geramos todo um sistema que, somente neste caso, vou dizer: é pseudotecnologia. O conjunto desse sistema, os seus efeitos sintomáticos, produz a exclusão de comunidades de pesquisadores, exclusão de saberes que não têm a forma de saberes hegemônicos – de comunidades originárias, povos indígenas, de comunidades subfinanciadas no que diz respeito à pesquisa e ciência. É como se tivéssemos produzido uma associação indevida na qual quem não tem dinheiro para jogar na “primeira divisão”, comprar uniformes, ter estádio, etc., não joga futebol. Não devemos enfatizar esses procedimentos, que são processos de exclusão, porque eles geraram uma representação social da ciência com um conjunto de elite se segregando.

Isso faz surgir um movimento de consciência refratária ao que a ciência diz, reforçam-se as pseudociências, saberes paralelos e uma série de coisas que vêm de interesses políticos obscuros, mas que se aproveita de uma certa representação social que nós produzimos. Aqui nós temos uma pseudotecnologia tão difícil de manegar e tão convencionalista que as pessoas comuns, agora com acesso à ciência no sentido de que foi globalizada, vão dizer “isso não condiz com a realidade que estou vendo”. A força que existe no transporte da ciência para a tecnologia (da associação direta entre ciência e tecnologia, como uma espécie de sinônimo) é, muitas vezes, exagerada.

Na ciência existe dissenso, há controvérsia, isso não significa, porém, que você pode colocar o criacionismo de novo na mesa. A ciência não pode aparecer como monológica, com uma voz só, e é como a gente em geral se pronuncia. Inclusive os pontos críticos exigem uma força a mais de consenso para podermos mudar a realidade em curso, como, por exemplo, o colapso ambiental.

IHU – Vou refazer ao senhor a pergunta de Sven Ove Hansson [4] publicada em um artigo: por que tanta pseudociência e tão pouca pseudotecnologia?

Christian Dunker – Isso reflete um certo atraso na percepção popular, comum, sobre o que é ciência. Um atraso que tem a ver com como nós temos investido, financiado, estressado a divulgação científica. Eu faço divulgação científica, tenho um canal no YouTube e fui, senão desestimulado, pois não conta ponto na avaliação da Capes, fui punido em algumas situações. Antigamente havia nas avaliações de área o valor médio da produção geral. Se a produção geral implica em baixíssima qualidade, como de resto são as revistas de divulgação (pois não serão A1, serão C, revistas de banca de jornal, etc.) com critérios mais lassos para chegar às pessoas. Aí meu programa foi punido porque minha produção era muito grande e de baixa qualidade, porque apesar de ter artigos em revistas internacionais, a extensão devora a intensão.

Isso é um problema que diz sobre como estamos lidando com ciência. Daí a prontidão que tivemos, Gilson Iannini e eu, para responder à questão posta no livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, mas mais além da querela entre pseudociência e pseudotecnologia, é preciso colocar em pauta que o Brasil precisa de mais e melhor divulgação científica. Esta divulgação científica está presa à ideia de que a ciência é um tipo de conhecimento, com estrato, com propriedades intrínsecas, derivacionismo, refutacionismo, proposições funcionais argumentativas. Ou seja, é um tipo de conhecimento. Não se leva em conta o enraizamento social da ciência. Ela está universidade? Há quem diga que sim, mas ressalta que eles (os acadêmicos) são espúrios, que a ciência está onde não devia estar, porque não fazem verdadeira ciência. Isso vai tornando a pseudociência um assunto muito mais querido das pessoas, muito mais conhecido pelas pessoas, que vão identificar a ciência com um tipo de conhecimento abstrato e só. Do outro lado vai se escondendo que tem muita tecnologia que existe para mantermos essa versão de ciência que é hoje corrente.

Respondendo ao Sven Hansson, que levantou essa pergunta, porque ele é um renovador da noção de pseudociência e um renovador muito interessante porque ele trabalha no governo sueco com ciência aplicada. Então os problemas que ele lida são assim: “devemos ou não usar agrotóxico?”; “devemos ou não usar esse produto químico?”; “qual o impacto de favorecer o uso desta tecnologia em detrimento de outra?” Ele está justamente apontando para o fato que há maquiagens tecnológicas que justificam os dois, três, cinco, dez lados de cada questão. Enquanto estamos falando de pseudociência, a pseudotecnologia está comandando o debate. Com a Inteligência Artificial há um redobramento disso. Então temos que pensar sobre qual tecnologia estamos falando, tecnologia que é propriedade de quem, tecnologia em que termos, etc. Isso porque o senso comum, que a gente desinformou por muitas razões, entre elas porque é caro fazer ciência e ninguém quer pagar por isso, formou esta imagem de que a ciência é um tipo abstrato de conhecimento e que a ciência “é tecnologia”.

Este outro lado – que compreende a ciência como sinônimo de tecnologia – não é falso, mas também não é verdadeiro. Ciência é uma coisa e tecnologia é outra. Ainda que dentro da ciência a tecnologia tenha sempre informado sua evolução do método, com o microscópio, o telescópio, lunetas, não existe ciência, sob um certo sentido, sem as condições melhoradas de amplificação de nossos sentidos e de produção de fenômenos a partir de aparatos tecnológicos. Por isso, eu me alinho com a posição de Ian Hacking [5], que é um estudioso da história das tecnologias dentro da ciência, mas é também um estudioso da história da matemática, onde teremos as tecnologias compreendidas de uma maneira completamente diferente. É alguém que vai, justamente, falar sobre estilos cognitivos, defender que intervir e representar nem sempre precisam estar tão distantes, sublinhar que a história da tecnologia importa e que fará estudos brilhantes sobre transtornos mentais. Ele pontua uma coisa importante para nós, que é o fato de que descrições também são feitas com tecnologia, principalmente as de transtornos contemporâneos. Além disso, são as descrições que criam tipos, ou seja, existem tipos não naturais. Para advogarmos isso às ciências não humanas é um trabalho incrível, porque aí começa-se a pensar em tipos não naturais, anjos, monstros, figuras que são metafísicas, ideológicas, teológicas, etc.

IHU – Gostaria de retomar uma questão que, ao que parece, orienta de certo modo o trabalho de Ciência pouca é bobagem. Qual a relação da psicanálise com as ciências, relação esta que é tão antiga quanto a própria psicanálise?

Christian Dunker – O Freud [6] queria que a psicanálise fosse uma ciência, uma neuen wissenschaft, um novo saber, um novo conhecimento, um novo método de tratamento, podemos dizer assim “um novo tipo de tecnologia”. Ele não usa essa expressão e alguém pode dizer “uma tecnologia artesanal, que usa palavras e pensa as relações entre as pessoas”, mas é, sim, um tipo de tecnologia. O repente é um tipo de técnica de produção de literatura.

Esse é um tratamento que teve que se basear, digamos assim, na ciência. O método de investigação psicanalítica, que vem questionando, tentando se justificar, apresenta inúmeros caminhos onde dizemos: existem provas extraclínicas na psicanálise. A psicanálise é usada para pensar o mundo social, os processos culturais e para pensar coisas fora do contexto específico da clínica. Esses elementos se conjugam com o que chamamos de ciência, mas também se separam do que a gente chama de ciência. Um médico quando está atendendo um paciente não está fazendo ciência, está baseado em ciência; um psicanalista quanto está com seu paciente ele não está fazendo ciência, está baseado em ciência.

Como podemos ver, a psicanálise tem uma relação ambígua com a ciência. Isso, em geral, é recebido com suspeita. É ambígua pelo seguinte: uma parte dela vai estar baseada na linguística, na antropologia, nas ciências da linguagem, nas psicologias do desenvolvimento, não pode contrariar achados neurocientíficos. Ou seja, joga o jogo normal; outra parte da psicanálise vai afirmar sua origem na crítica ao método, aos resíduos do sujeito que foi sendo purificado para que chegássemos a esse método, nós fazemos parte da razão, mas também do outro lado, da crítica da razão. Isso cria, então, essa indagação: mas afinal, é ciência ou não é? Eu vou responder que são várias psicanálises, em parte sim, em parte não, em parte os compromissos da psicanálise são mais com a filosofia que com a metodologia científica. Mas tem que contraponha que esta não é uma resposta justa, porque a resposta seria sim ou não. Mas veja, estamos desativando esta ideia de que todos os saberes ou estão dentro deste crivo normativo, consensual, ou estão fora e são inimigos.

Há uma expressão que o próprio Freud usou, mas que é um pouco narcísica, então evitamos, a psicanálise seria uma ciência especial. Seria uma ciência que se ocupa, também, dos fracassos da ciência, como temos visto mais contemporaneamente. Traduzindo, ciência é o mesmo que psiquiatria e a psicanálise uma ciência humana. Ok, e o que fazemos com os fracassos da nova psiquiatria que tem 40 anos de medicalização com resultados, digamos assim, bastante parciais? Que tal se fizéssemos uma crítica a isso? Quem fará uma crítica a isso? Bem, a psicanálise está aí. Isso não significa que a psicanálise é a nova forma rediviva da psiquiatria, mas, justamente, qualificar o debate, mediar o debate.

IHU – Por fim, em que sentido defender a cientificidade da psicanálise é também defender a própria ciência de seu maior inimigo, no caso ela mesma?

Christian Dunker – Concordo com a premissa e acrescento que age contra si mesma e para produzir inimigos gratuitos. Diria que há uma divisão importante que está lá no Kant, e que precisaríamos voltar, em que uma coisa é a razão a outra o entendimento. A psicanálise se inscreve, sob todos os aspectos, no âmbito da razão. Mas e o entendimento? Sob alguns aspectos se inscrevem também como uma prática de entendimento. Jamais, em tempo algum, o argumento de que a psicanálise se baseia no irracional, na visão de entidades que não sejam fenomenologicamente verificáveis, inexistentes ou numa espécie de ontologia metafísica. Ao contrário, a psicanálise será um discurso que fará uma crítica da ideologia, da metafísica, da pseudociência (ou dos excessos da ciência). Podemos falar também de pseudotecnologia, como estamos colocando nesta rodada da conversa.

Wittgenstein [7] propôs uma forma de filosofia em que afirma que a filosofia doravante seria uma espécie de psicoterapêutica da ciência. Estamos nesse processo, não como juízes, mas para recolher os excessos intrusivos, as intrusões de valores, a soberania de métodos, que fazem com que a própria ciência se enfraqueça. Nós precisamos ajudar, precisamos de mais ciência, não de menos ciência. Precisamos de mais qualificação científica, o que implica mais divulgação científica pertinente, coerente, mais crítica à ciência sem que isso implique a um retorno à Idade Média. Precisamos de mais ciência com a participação das pessoas, de modo que a Ciência é um ator no debate público. É por isso que ela é financiada pelo dinheiro público. E se fôssemos mais transparentes aqui? Que tal se mostrássemos onde existem os pontos de convencionalidade em instituições de financiamento e ranqueamento e onde estão os pontos de convencionalidade ou operacionalidade dentro do método. Isso é muito difícil, muito difícil para o cientista de bancada que precisa fazer mais isso, além de resolver todos os problemas que ele tem, talvez seja impraticável. Deixe, então, que outros se ocupem disso, façam isso, podemos colaborar, finalmente a palavra que retorna. Vamos pôr em prática, um pouquinho que seja, essa história de transdisciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar, trabalhar juntos. Nós não estamos na paralela, estamos todos sofrendo com cortes de bolsas, sofrendo com ministérios erráticos, a ciência brasileira precisa de mais insumos e investimentos.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Christian Dunker – Precisaria acrescentar que, ao fim e ao cabo, tem uma contribuição importante de Orsi e Pasternak, que é de apresentar e repetir a autocrítica da psicanálise. Porque o primeiro dever daquele que se propõe a fazer uma crítica é fazer uma crítica de si. Em vários pontos é preciso deixar mais claro quais foram os equívocos que a própria psicanálise cometeu, associações espúrias, compromissos com psicopatologias que hoje consideramos completamente equivocadas, prestação de contas dos seus conceitos de forma mais acirrada junto a teoria da ciência, epistemologia, sociologia do conhecimento. O fundo da crítica vale a pena, porque muitos psicanalistas viraram as costas para a ciência, viraram as costas para o mundo e estão interessados em seus condomínios. Está errado isso. Aí a ciência ajuda, aí a universidade ajuda, aí precisamos ouvir críticas sim. As críticas passam dos limites, são mal-informadas, sim, mas em parte porque não informamos, porque estávamos caçando a lua enquanto os lobos continuavam pela terra mesmo.

Notas

[1] René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno. A sua contribuição à epistemologia é essencial, assim como às ciências naturais por ter estabelecido um método que ajudou no seu desenvolvimento. É dele a famosa frase: penso logo existo (Cogito ergo sum, em latim). Suas duas principais obras são Discurso sobre o método e Meditações. (Nota do IHU).

[2] David Hume (1711-1776): filósofo, historiador e ensaísta britânico nascido na Escócia, que se tornou célebre pelo seu empirismo radical e ceticismo filosófico. Ao lado de John Locke e George Berkeley, David Hume compõe a famosa tríade do empirismo britânico, um dos mais importantes pensadores do chamado “iluminismo escocês” e da própria história da filosofia. Hume elaborou um pensamento crítico ao cartesianismo e às filosofias que consideravam o espírito humano desde um ponto de vista teológico-metafísico. Teve profunda influência sobre Kant. Sua principal obra é Tratado da natureza humana. (Nota do IHU).

[3] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão (nativo do Reino da Prússia) e um dos principais pensadores do Iluminismo. Seus abrangentes e sistemáticos trabalhos em epistemologia, metafísica, ética e estética fizeram dele uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna. Em uma tentativa de contrariar o ceticismo, ele escreveu a Crítica da razão pura (1781/1787), sua obra mais conhecida. Kant acreditava que a razão também é a fonte da moralidade e que a estética surge de uma faculdade de julgamento desinteressado. (Nota do IHU)

[4] Sven Ove Hansson (1951): filósofo sueco, professor de filosofia e presidente do Departamento de Filosofia e História da Tecnologia do Royal Institute of Technology (KTH) em Estocolmo, na Suécia. Sua produção e pesquisa é orientada ao ceticismo científico, com interesse especial em avaliação de riscos ambientais, teoria da decisão e revisão de crenças. (Nota do IHU)

[5] Ian Hacking (1936-2023): filósofo canadense especializado em filosofia da ciência. Influenciado por debates envolvendo Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend, entre outros, foi conhecido por adotar uma abordagem histórica da filosofia da ciência. Após 1990 direcionou seu foco das ciências naturais para as ciências humanas, em parte sob a influência de Michel Foucault, sua influência desde 1975, quando Hacking escreveu Por que a linguagem importa para a filosofia? Seu livro Ontologia histórica (2009) foi publicado no Brasil pela Editora Unisinos. (Nota do IHU)

[6] Sigmund Freud (1856-1939): médico neurologista e importante psicanalista austríaco, criador da psicanálise e a personalidade mais influente da história no campo da psicologia. A influência freudiana pode ser observada ainda em diversos outros campos do conhecimento e até mesmo na cultura popular no uso cotidiano de palavras que se tornaram recorrentes, mas que surgiram a partir de suas teorias. Expressões como "neurose", "repressões", "projeções" popularizaram-se a partir de seus escritos. Freud sofreu críticas de diversas naturezas, dentre elas contestações de diversas vertentes religiosas e confrontações de cunho científico-epistemológico. Contudo, a psicanálise de Freud segue se desenvolvendo através de estudos e práticas clínicas na área, com a contribuição de teóricos e clínicos que o sucederam. (Nota do IHU)

[7] Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951): filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos principais autores da virada linguística na filosofia do século XX. Suas principais contribuições foram feitas nos campos da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da matemática, e filosofia da mente. Seu mais popular livro, Tractatus logico-philosophicus (1921), exerceu profunda influência no desenvolvimento do positivismo lógico. A partir de 1930, as ideias por ele formuladas, e difundidas em Cambridge e Oxford, impulsionaram um outro movimento filosófico chamado de "filosofia da linguagem comum". (Nota do IHU)

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