Comunidade Xokleng: “As casas que já foram empurradas para os pés de morro e encostas correm um sério risco de desabamento”. Entrevista especial com Rafael Modesto

“As comportas foram fechadas para conter as cheias nas cidades baixas, mas quem ‘pagou o pato’ por causa da falta de planejamento foi a comunidade indígena”, diz o advogado do Povo Xokleng e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Foto: Jussara Djajuy | Acervo pessoal

07 Novembro 2023

O fechamento da Barragem Norte, no rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina, em 08-10-2023, por determinação do governo estadual para reduzir o impacto da inundação nos municípios de Rio do Sul e Blumenau, em função das enchentes, atingiu diretamente a comunidade indígena Xokleng, que vive dentro da Terra Indígena Ibirama/LaKlãnõ.

Desde então, “as famílias atingidas estão em situação precária dentro do território, em barracos improvisados ou foram para a casa de algum vizinho, mas sem condições sanitárias adequadas”, informa Rafael Modesto na entrevista a seguir concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Segundo ele, “a água tomou conta de várias casas, inundou áreas de plantação, as estradas, atingiu a rede elétrica e as pessoas ficaram sem acesso à internet. A situação é de calamidade em função de uma ação temerosa, praticada pelo governo catarinense, com apoio do aparato policial, que fechou as comportas e fez com que a água invadisse as residências, deixando desabrigadas várias famílias Xokleng”.

A seguir, Modesto comenta a situação das comunidades, critica a ação do governo estadual e menciona os riscos socioambientais a que as comunidades estão submetidas em função da barragem e da não demarcação das terras. “O risco de desabamento não é de hoje. As casas que já foram empurradas para os pés de morro e encostas correm um sério risco de desabamento. A situação da barragem é delicada demais e carece de um enfrentamento por parte do governo federal. Mas o que vai resolver a situação é a demarcação e regularização das terras indígenas. Ela precisa ser finalizada para os indígenas saírem dessa situação desconfortável, que é morar nas encostas e nas margens da represa, com risco de alagamento”.

Rafael Modesto (Foto: Reprodução | Cimi)

Rafael Modesto é advogado do Povo Xokleng e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Confira a entrevista.

IHU – Indígenas reclamam do abandono do governo catarinense depois de chuvas no Vale do Itajaí. Qual é a situação da comunidade neste momento?

Rafael Modesto – A situação da comunidade é bastante delicada, mas o fator central é a demora na demarcação e regularização do território do povo Xokleng. De fato, as coisas vão se resolver à medida que eles puderem tomar posse da totalidade da área e poderem se afastar da barragem, com a abertura de novas estradas. Até lá serão adotadas medidas paliativas que não resolvem a situação.

As medidas a serem adotadas são de competência do governo federal porque esta é uma terra da União e de usufruto exclusivo de ocupação tradicional indígena. Toda e qualquer intervenção, se for necessária, não é de competência da polícia militar, mas, sim, do governo federal. O que o governo catarinense fez, de forma truculenta, ferindo algumas lideranças indígenas, está completamente em desacordo com a legislação constitucional que regula a matéria. Sua ação temerosa é inconstitucional. O governo estadual deveria ter solicitado ajuda ao governo federal. Inclusive, algumas medidas e decisões tomadas pelo governo afrontam a Constituição. Ou seja, a polícia militar não pode agir naquele território.

As famílias atingidas estão em situação precária dentro do território, em barracos improvisados ou foram para a casa de algum vizinho, mas sem condições sanitárias adequadas. A água tomou conta de várias casas, inundou áreas de plantação, estradas, atingiu a rede elétrica e pessoas ficaram sem acesso à internet. A situação é de calamidade em função de uma ação temerosa, praticada pelo governo catarinense, com apoio do aparato policial, que fechou as comportas e fez com que a água invadisse as residências, deixando desabrigadas várias famílias Xokleng.

(Foto: Jussara Djajuy | Acervo pessoal)

IHU – Segundo notícias publicadas na imprensa, a barragem que fica na Terra Indígena Ibirama/LaKlãnõ foi fechada para reduzir o impacto da inundação de municípios como Rio do Sul e Blumenau, mas alagou parte do território onde vivem cerca de 4.700 pessoas em dez aldeias. Você tem informações sobre o caso?

Rafael Modesto – As comportas foram fechadas para conter as cheias nas cidades baixas, mas quem “pagou o pato” por causa da falta de planejamento foi a comunidade indígena, cuja barragem tomou suas melhores terras. Não é competência do governo estadual administrar aquela barragem. A competência é da União. Além de ter sido construída sem o consentimento da comunidade, na época da ditadura militar, na barragem não foram feitas as devidas reformas e manutenção. Quando fecharam as comportas, havia o risco de estourar a estrutura da barragem por não suportar o peso das águas e atingir as comunidades que vivem abaixo. Se a barragem tivesse estourado, a inundação teria sido maior.

É possível que haja uma irresponsabilidade dos órgãos públicos encarregados pelo fechamento da barragem, pela via da força, inclusive ferindo indígenas. Antes do fechamento das comportas, era necessário um plano, um estudo, sobre a situação da estrutura física da barragem. É uma situação de calamidade que carece de um planejamento federal para que não volte a acontecer.

IHU – Quais os riscos ambientais no entorno da terra indígena dos Xokleng em função do alagamento do território? Fala-se de fortes riscos de desbarrancamentos porque a barragem assoreou boa parte das terras. Qual é a situação?

Rafael Modesto – O risco de desabamento não é de hoje. Quando a barragem sobe, na volta o barranco desce junto. As casas que já foram empurradas para os pés de morro, e encostas correm um sério risco de desabamento. A situação da barragem é delicada demais e carece de um enfrentamento por parte do governo federal. Mas o que vai resolver a situação é a demarcação e regularização das terras indígenas. Ela precisa ser finalizada para os indígenas saírem dessa situação desconfortável, que é morar nas encostas e nas margens da represa, com risco de alagamento.

IHU – Os indígenas reclamam da falta de um plano de segurança para situações semelhantes. O que poderia ser feito neste caso?

Rafael Modesto – Os indígenas reclamam da falta de planejamento, da inexistência de um plano para lidar com a situação. O governo catarinense até teria uma responsabilidade, mas a administração tem que ficar a cargo do governo federal. O estado de Santa Catarina teria que ter uma responsabilidade subsidiária porque a terra indígena está naquele estado, mas a competência é federal.

Deveria haver uma parceria com os órgãos competentes, sob a regência do órgão federal para lidar com essa situação de alagamento, mas não existe relação entre os entes federados para lidar com a demarcação das terras dos Xokleng. É necessário e razoável que a demarcação aconteça; inclusive, existe uma decisão judicial transitada em julgado determinando que, além dos cuidados de manutenção da barragem, existam políticas públicas suficientes.

IHU – Como avalia os desdobramentos em torno da decisão do presidente Lula acerca do marco temporal? Como a decisão repercutiu entre as comunidades indígenas que você acompanha?

Rafael Modesto – O presidente Lula, como chefe do Executivo, vetou a parte do projeto de lei aprovado no Congresso Nacional que trata da tradicionalidade da ocupação da terra. O que versou sobre a demarcação e o reconhecimento de terra indígena foi vetado, que é justamente a parte do marco temporal, seguindo a orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), que o declarou inconstitucional. O Congresso ficou isolado na discussão referente à demarcação das terras indígenas. A posição do Executivo e do Judiciário é um aceno de que estes poderes abrem margem para a regularização e demarcação dos territórios, como é o caso do povo Xokleng, que aguarda há muitos anos pela devida regularização do seu território. Ainda há a possibilidade de derrubada do veto. Derrubando o veto, a lei passa a ter validade e, mais uma vez, o STF vai ter que se debruçar sobre a matéria. Esperamos que o STF declare inconstitucional mais uma vez a tese do marco temporal, se necessário.

Nas comunidades, a repercussão do afastamento do marco temporal foi de comemoração porque o grande problema para a demarcação das terras é a tese do marco temporal. Ela afastada abre mais possibilidade para as demarcações. Mas temos outro problema, que é a questão orçamentária: o governo vai precisar ter as condições orçamentárias para dar continuidade às demarcações. Não adianta terminar a demarcação se não for feita a indenização dos agricultores de boa fé. Sem a indenização, vai haver a retenção, pelo ocupante, da terra até que seja depositado o valor em controverso da área. Somente depois o agricultor vai sair da terra para os indígenas tomarem posse.

O governo está maturando essa situação que o Supremo criou e vai precisar criar as condições necessárias para indenizar as pessoas, apesar da circunstância difícil do ponto de vista das finanças. Caso isso não aconteça, vamos assistir a uma enxurrada de ações por integração de posse e disputa possessória, com riscos de conflito físico e violência. Quem corre mais perigo nessa situação toda são os indígenas.

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