21 Outubro 2015
“A primeira coisa que precisa acontecer para resolver a crise hídrica é um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos, assumir a responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas”, diz o membro da Executiva Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela Água.
Foto: EcoDebate |
De acordo com Poço, do ponto de vista do planejamento, observou-se que o governo paulista “ignorou diversos materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos e da sociedade civil, que há mais de 10 anos estão alertando para a possibilidade de essa crise acontecer. São documentos desde a outorga do Sistema Cantareira, que já previam a diminuição da dependência do sistema, documentos sobre a questão hidrológica e climática, que poderia ter essa alteração”. Ele informa ainda que o “relatório mostra que os problemas gerados pela gestão de abastecimento vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil apontar o momento em que isso virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que a combinação de uma gestão equivocada, de uma falta de planejamento que considerasse inclusive os relatórios técnicos e as alterações climáticas, culminou na crise que existe hoje”.
Rafael Poço é membro da Executiva Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela Água, uma coalizão da sociedade civil para contribuir com a construção de segurança hídrica em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os dados do Relatório de Violação de direitos humanos na gestão hídrica do estado de São Paulo, feito pela Aliança Pela Água, que apontam indícios de violação de direitos humanos na gestão hídrica do estado? Como vocês realizaram esse relatório?
Foto: outraspalavras.net
Rafael Poço – A produção do relatório é fruto de um compromisso assumido entre a Aliança pela Água e o Coletivo de Luta pela Água com o relator da ONU [Organização das Nações Unidas] sobre Água e Saneamento, Léo Heller. No mês de abril deste ano fizemos uma reunião com ele e nos comprometemos a elaborar um relatório que organizasse ou sistematizasse algumas das possíveis violações a direitos humanos que estão acontecendo no estado de São Paulo neste período de enfrentamento da crise hídrica. A crise não acabou e as violações seguem acontecendo, portanto o relatório será permanentemente atualizado para acompanhar o que vem acontecendo aqui.
O relatório foi dividido de modo a apontar as violações relacionadas à falta de planejamento que levou a crise a ter a proporção que teve; as violações relacionadas a medidas de enfrentamento da crise, ou seja, medidas que foram adotadas no sentido de tentar dar respostas à crise; e as violações dos impactos das obras e outras ações adotadas pelo governo estadual para tentar resolver a crise.
IHU On-Line - Quais foram os principais direitos violados?
Rafael Poço – A relatoria da ONU estabelece alguns princípios, e a água e o saneamento são compreendidos como direitos, ou seja, as pessoas têm direitos à disponibilidade e acessibilidade à água. Então, do ponto de vista de planejamento, observamos que o governo do estado de São Paulo ignorou diversos materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos e da sociedade civil, que há mais de 10 anos estão alertando para a possibilidade de essa crise acontecer. São documentos desde a outorga do Sistema Cantareira, que já previam a diminuição da dependência do sistema, documentos sobre a questão hidrológica e climática, de que poderia haver essa alteração.
Com relação às medidas adotadas durante a crise, observaram-se os cortes de água não informados e negados, inclusive, pelo governo, que afetaram diretamente a dignidade da pessoa humana, fazendo com que as pessoas não tivessem nenhuma previsibilidade que permitisse que elas se organizassem e se preparassem para enfrentar a crise, para garantir higiene pessoal e necessidades básicas. Estamos pautando essa questão como uma violação do próprio acesso à água e ao saneamento, uma vez que as pessoas ficaram sem acesso à água.
Além disso, denunciamos as formas como novos contratos de venda de água foram feitos, com o governo de um lado negando a criticidade da situação, negando a própria crise e, de outro lado, fazendo contratações e fechando contratos emergenciais com base no argumento da urgência; portanto, flexibilizando a legislação para contratações, flexibilizando legislação de licitações, que trouxeram prejuízos para a população em geral.
Na última semana fomos informados de que havia uma ação do Ministério Público contra a obra de transposição da Bile, no sistema Alto Tietê, porque durante o teste da obra aconteceu o que avisávamos que aconteceria: houve um assoreamento do rio.
“A crise não acabou e as violações seguem acontecendo” |
IHU On-Line – Então o relatório aponta a negligência do governo em relação à crise?
Rafael Poço - O relatório mostra que os problemas gerados pela gestão de abastecimento vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil apontar o momento em que isso virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que a combinação de uma gestão equivocada, de uma falta de planejamento que considerasse inclusive os relatórios técnicos e as alterações climáticas, culminou na crise que existe hoje. A partir de 2013 a crise começou a ter uma proporção muito maior e com efeitos mais agudos na vida da população. Nesse momento, inclusive, começaram os cortes sistemáticos de uma forma mais generalizada, digamos assim. Primeiro foram feitos cortes nas regiões mais vulneráveis e mais pobres, na periferia em geral e, depois, foram feitos cortes e redução de pressão da água em toda a cidade de São Paulo.
Seria equivocado apontarmos o momento do início da crise, mas ela de fato se inicia quando já não são adotadas as medidas que a previnem, mas podemos dizer que a partir de 2013 ela entrou nessa gravidade inédita na história e aí o governo se viu nessa situação de negação da crise. Foi isso o que nos colocou à beira de um colapso, do qual ainda não saímos. Entendemos que a negação da crise, ou seja, negar a gravidade de um problema, leva em primeiro lugar a uma inação, uma imobilização no enfrentamento e na busca por alternativas, e é isso que o governo segue fazendo. Isso torna tanto a população quanto os órgãos governamentais muito amarrados para conseguir buscar soluções maduras e coletivas para enfrentar a crise.
IHU On-Line - Quais são motivos que levaram o governo a negar e depois tratar essa crise sem dar a devida gravidade?
Rafael Poço - Há uma combinação de dois fatores. Um deles é uma gestão equivocada, que é o principal fator, ou seja, há uma visão em relação aos recursos hídricos que é ultrapassada e equivocada, que lida apenas com a gestão da oferta. Ou seja, pensa-se em aumentar a oferta, sempre buscando água em locais mais distantes, com um custo maior, com maiores danos ambientais, com maior prejuízo a outras regiões. Acredito que esse é o aspecto mais chocante, ou seja, o governo segue um modelo de gestão segundo o qual os recursos naturais são vistos como algo quase sem fim. Trata-se de um modelo de gestão que não consegue se preparar para imprevistos porque tem uma visão ingênua em relação aos recursos, como se eles fossem algo infinito. Essa visão leva a uma gestão que não se prepara para o que está cada vez mais recorrente no mundo inteiro, que são as mudanças climáticas, as alterações de ciclo hidrológico e o aumento de consumo de água natural devido ao aumento populacional.
Então, tentando resumir, esses dois fatores ocorrem um em decorrência do outro. Trata-se de um modelo que lida com os recursos naturais de forma insustentável e, a partir dele, se constitui uma gestão que é baseada nessa visão que não busca alternativas.
IHU On-Line - Qual foi a recepção do relatório?
Rafael Poço – Do ponto de vista da sociedade foi visto como algo muito relevante e fundamental para o processo que estamos vivendo, porque acionar o mecanismo internacional, ou seja, a relatoria da ONU, é uma alternativa para conseguirmos, ao menos, ter mais transparência para dar visibilidade para o que vem acontecendo em São Paulo. Não recebemos reações do governo do estado em relação ao documento que foi endereçado à relatoria da ONU. Esse documento tem o caráter de organizar as informações que já estão disponíveis, que já estão presentes em outros documentos, e direcioná-las para a relatoria da ONU com a finalidade de buscar mecanismos da ONU para dar abrangência internacional e nacional para a crise hídrica que ocorre no estado de São Paulo. O mecanismo da ONU permite que o relator, após receber essas denúncias, envie o documento intitulado “carta de alegações” para o governo, requerendo informações sobre o que vem acontecendo e questionando quais medidas estão sendo adotadas com relação a essas violações. Esperamos que com isso consigamos mais uma força para, primeiro, dar visibilidade à crise hídrica e, segundo, para que possamos superar essa questão e, por fim, responsabilizar quem precisa ser responsabilizado pela situação.
IHU On-Line - Qual é a expectativa de a ONU confirmar as violações de direitos humanos na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo? Como se dará esse processo?
Rafael Poço – O próximo passo agora, segundo o relator Léo Heller - que participou do evento que fizemos de lançamento do relatório –, é elaborar uma carta de adequações que tem a finalidade de colher o máximo possível de informações. Depois há outros mecanismos, como de tentar constranger o país ou o estado a tomar providências e até ser responsabilizado.
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“O governo segue um modelo de gestão segundo o qual os recursos naturais são vistos como algo quase sem fim” |
IHU On-Line - Há uma solução para a crise hídrica hoje? Quais são as medidas que devem ser adotadas para resolver essa crise e evitar futuras crises de abastecimento?
Rafael Poço – O primeiro aspecto é que qualquer crise precisa ser tratada com transparência, de maneira responsável e madura. Antes do aspecto técnico, de como se resolve isso tecnicamente, se se trata de trazer mais água de outros mananciais ou fazer novas obras para dar conta do abastecimento, a questão central é trabalhar com transparência, com maturidade e responsabilidade, ou seja, primeiro vamos encarar o problema. Portanto, a primeira coisa que precisa acontecer é um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos, assumir a responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas. Isso passa, primeiro, por dar mais informações para a sociedade; segundo, pela redução do consumo; terceiro, fazer exigências à Sabesp, que é a principal empresa do estado responsável pelo abastecimento de centenas de cidades, e à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – Arsesp, que é agência reguladora, para que elas assumam uma postura que cumpra as suas finalidades.
Depois disso, é preciso visualizar as condições para a adoção de um novo modelo e, a partir daí, poderemos discutir qual é o melhor modelo de abastecimento a adotar, como lidaremos com o número crescente da população e, portanto, do consumo, que relação queremos ter com os mananciais, ou seja, todas essas questões precisam estar envolvidas. Não é uma solução simples, de engenharia ou tecnológica apenas, é uma combinação de fatores: precisamos recuperar as áreas de manancial, respeitar as políticas que já existem e não são cumpridas, recuperar e preservar os mananciais, reduzir o consumo, estimular a redução de perdas de água na transmissão – em São Paulo a perda é de aproximadamente 30%.
A Aliança pela Água tem proposto que precisamos de uma nova cultura de cuidado com a água, com os recursos hídricos, que irá passar por diversas questões: a maneira como se cuida e se preserva, a maneira como se obtém a água.
Por Patricia Fachin
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Crise hídrica e uma nova cultura de cuidado com a água. Um novo modelo é preciso. Entrevista com Rafael Poço - Instituto Humanitas Unisinos - IHU