23 Fevereiro 2021
Inspirado pelo último livro do Papa Francisco, “Vamos Sonhar Juntos”, escrito com Austen Ivereigh, um seminário na quinta-feira considerou a proposta do pontífice para uma “Renda Básica Universal”, isso é, uma renda mínima garantida pelo governo que cada cidadão receberia incondicionalmente.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 19-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Michael Pugh, de um grupo chamado Basic Income Conversation, definiu o “conceito central” de uma Renda Básica Universal (RBU) como um pagamento regular em dinheiro para todos, para sempre, que seria individual, sem exceções, sem importar o pano de fundo pessoal.
“Embora existam diferentes propostas de quanto seria o montante e como implementá-la, todos eles implicam no mesmo: nós todos temos o direito à estabilidade financeira”, afirmou. A ideia, aponta, data de séculos atrás, mas decolou nos últimos anos, particularmente porque tem ocorrido um aumento de “instabilidade” e “insegurança”, na qual diz o especialista, “é a experiência esmagadora da idade moderna”, com trabalhos e moradias em condições instáveis, junto de um clima instável e assim por diante.
“Talvez mais importa seja o problema dos mais árduos e valiosos trabalhos na sociedade, como os de parentalidade ou de cuidado de entes queridos, que são subvalorizados e praticamente não pagos”, disse Pugh. “RBU pode nos ajudar a reimaginar o que significa o trabalho na sociedade, e nos permitir reimaginá-lo”.
Os que defendem a RBU argumentam que ela pode ser dada para um nível básico de seguridade para todos e dariam as pessoas a liberdade de escolher melhor seus trabalhos, decidir voltar à educação, gastar mais tempo com quem amamos ou com voluntariado.
“Segurança não leva à preguiça”, foi o fio condutor dos participantes do seminário de quinta-feira em defesa da RBU. Quanto dinheiro entra, argumentou Pugh, não é tão importante quanto a regularidade, saber que não importa o que aconteça, chuva, fogo ou neve, o dinheiro entrará no dia X do mês.
Embora tenha existido vários “experimentos” aqui e ali, com casos-piloto em uma variedade de países, incluindo Finlândia ou Canadá, a RBU nunca foi aplicada em escala nacional. No entanto, nas cidades ou regiões onde foi aplicada, houve uma melhoria visível na saúde das pessoas, bem como um aumento real de pessoas trabalhando.
Ivereigh, que também escreveu duas biografias do pontífice argentino, moderou o seminário. O bispo John Arnold, presidente da Cafod, a caridade católica de desenvolvimento internacional na Inglaterra e País de Gales, fez o discurso de abertura, enquanto Ruth Kelly, uma ex-banqueira britânica e ministra do Trabalho e membro do Conselho para a Economia do Papa Francisco, e a irmã Alessandra Smerilli, a economista que chefia o ramo econômico da força-tarefa da Comissão Covid do Vaticano, também falou.
Arnold citou o Papa Francisco que, em março, durante uma bênção histórica à cidade de Roma e ao mundo, na Praça São Pedro vazia, disse que há duas maneiras de sair de uma crise: “Do jeito que éramos antes, ou sairmos melhores”.
“As pessoas falam em voltar ao normal, mas o normal dos últimos anos não tem funcionado bem”, disse o bispo em uma mensagem pré-gravada.
Depois de oferecer uma breve história do ensino social católico começando com Rerum Novarum, uma encíclica de 1891 do Papa Leão XIII, Arnold disse que existem “certos princípios” que sustentam o ensino social da Igreja, acima de tudo, “a dignidade da pessoa humana”.
A RBU, disse ele, pode, em breve, se tornar uma expressão desse ensino, pois todos recebendo uma renda básica que forneça um sustento levaria as pessoas a ficarem menos desesperadas e, portanto, menos forçadas a migrar em condições terríveis, ou a aceitar um emprego com condições análogas à escravidão. Também significaria que a pobreza extrema seria erradicada, assim como a fome.
“Uma RBU não é um estado totalitário angustiante, onde todos são obrigados a ser iguais, porque isso seria uma depravação de nossa dignidade individual, mas garantiria que ninguém fosse deixado para trás e ninguém estivesse fora de alcance”, disse ele. “Seria um marco na conquista desse cuidado por nossos irmãos e irmãs”.
Smerilli acredita que a RBU colocaria a vida humana e a dignidade no centro, subsidiando todos aqueles que realizam um trabalho e prestam serviços involuntariamente não remunerados, o que a tornaria “a melhor forma de garantir a verdadeira liberdade a todos, especialmente aos vulneráveis”.
Também buscaria uma visão compartilhada de desenvolvimento humano integral, permitindo o acesso universal ao trabalho, moradia-subsistência e terra; e priorizar a importância coletiva do cuidado, implantando estruturas que possibilitem dedicar tempo ao cuidado em tempo integral, e tempo parcial para trabalhar, disse a irmã.
Smerilli observou que nem todo trabalho se traduz em empregos. O trabalho é maior do que o emprego, disse ela, e a vida é maior do que o trabalho. Cuidar dos outros é essencial para nossa existência e igualdade, é essencial para a qualidade de vida em comum, argumentou ela, e a RBU pode oferecer um caminho para salvaguardar o cuidado e a igualdade.
Nas palavras de Ivereigh, Smerilli apresentou o “grande pensamento” de Roma sobre RBU como uma ferramenta para repensar ainda mais um mundo pós-covid, “um no qual consumimos menos e regeneramos mais, o que pode exigir que as pessoas façam coisas que não têm preço no mercado, mas de grande valor para a sociedade”.
Kelly era a voz que soava o alarme, talvez não totalmente contra a RBU, mas definitivamente cética em relação a ela, particularmente em como seria financiada. Kelly começou admitindo que o trabalho faz parte da dignidade fundamental de uma pessoa e que é necessário combater a pobreza e atribuir valor e reconhecimento ao “cuidado”, ou seja, pais que ficam em casa e cuidam de seus filhos ou de quem fique em casa para cuidar de alguém com deficiência.
No entanto, além das preocupações sobre a implementação prática da RBU e a origem dos fundos, provavelmente impostos, Kelly plantou uma semente “filosófica” de dúvida. Para ela, é melhor ter uma renda mínima garantida, ao invés de uma renda básica que é um primeiro recurso, dada de forma incondicional, sem qualquer obrigação de procurar trabalho ou condicionada ao adoecimento ou incapacidade.
É uma questão que o Papa Francisco abordou em seu livro com Ivereigh.
“Apesar do fato de eles gerarem valor, trabalhadores são tratados como o elemento mais dispendioso de uma empresa, enquanto alguns acionistas – com seus estreitos interesses em maximizar lucros – pedem por demissões”, escreveu Francisco em Vamos Sonhar Juntos. “Nossa definição de valor do trabalho também é estreita. Nós precisamos ir além dessa ideia de que o trabalho de cuidados, ou ser mãe em tempo integral, ou voluntário em um projeto social, não é trabalho porque não recebem salários”.
É no reconhecimento do valor que o trabalho não-pago tem para a sociedade que sugere a exploração de conceitos como a renda básica universal, também conhecida como “o imposto de renda negativo”.
“A RBU poderia remodelar as relações no mercado de trabalho, garantindo às pessoas a dignidade de recusar os termos de emprego que os prendem na pobreza”, escreveu o pontífice. “Isso daria às pessoas a segurança básica de que precisam, removeria o estigma do assistencialismo e tornaria mais fácil mudar de emprego conforme os padrões de trabalho baseados na tecnologia cada vez mais exigem. Políticas como a RBU também podem ajudar a liberar as pessoas para combinar o ganho de salários com a doação de tempo para a comunidade”.
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Seminário examina a proposta do Papa Francisco para uma Renda Básica Universal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU