19 Outubro 2020
Por que a religião é tão importante para tantas pessoas em todo o mundo? Porque é o nosso patrimônio biológico. Independentemente das diferenças culturais, a experiência religiosa é universal.
A opinião é do jesuíta belga Johan Verschueren, conselheiro geral da Companhia de Jesus e superior geral dos jesuítas da Região dos Países Baixos. O artigo foi publicado por Il Fatto Quotidiano, 16-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos últimos 20 anos, assistiu-se a um notável aumento de novas perguntas no setor das biociências e das neurociências. Particularmente interessante parece ser a pergunta sobre quando e como nasceu a “capacidade religiosa” na evolução dos hominídeos e como ela deve ser entendida do ponto de vista biológico.
O livro “The Emergence of Religion in Human Evolution” [A emergência da religião na evolução humana, em tradução livre], publicado em dezembro de 2019, tenta dar uma primeira resposta a essa pergunta. Esse estudo nasceu da colaboração entre Margaret Boone Rappaport, bióloga e antropóloga cultural estadunidense, especializada em evolução cognitiva humana, e Christopher J. Corbally, astrônomo britânico e sacerdote jesuíta, membro do grupo de pesquisa do Observatório Vaticano de Castel Gandolfo, perto de Roma. Ambos os cientistas trabalham em Tucson, Arizona (EUA).
Segundo os dois autores, é possível demonstrar que a “capacidade religiosa” do Homo sapiens é uma característica neurocognitiva muito desenvolvida. Ela parece se basear em um sólido fundamento evolutivo e, portanto, genético, e parece poder ser retraçada apenas no Homo sapiens. De fato, há cada vez mais indicações científicas de que nem o Homo heidelbergensis, nem o Homo neanderthalensis, nem o hominídeo de Denisova a possuíam. O Homo erectus, do qual essas espécies humanas mais recentes se originaram, não parece ter tido uma “capacidade religiosa”.
O Homo erectus se originou há cerca de 1,9 milhão de anos na África, provavelmente a partir de uma espécie humana mais antiga, o Homo habilis. Com o Homo erectus, o ser humano deixou para sempre a sua vida sobre as árvores e se mudou para as savanas, em grupos de cerca de 100 indivíduos.
Com argumentos válidos, os autores defendem que precisamente nesses grupos de caçadores – lembremos que o Homo erectus era originalmente carnívoro – ocorreram evoluções importantes: o nascimento de uma linguagem primordial, a capacidade de dominar e utilizar o fogo (cerca de 1,5-1 milhão de anos atrás), a capacidade de produzir instrumentos.
Entre essas novas capacidades, foi evidenciada também a moral. E, dada a importância desta última no desenvolvimento de uma subsequente capacidade religiosa, os dois cientistas se detêm longamente para descrevê-la e analisá-la.
Para que possa haver uma “capacidade moral”, é necessário que haja dois tipos de capacidades neurocognitivas, que provavelmente estavam presentes na espécie Homo erectus. Em primeiro lugar, a arqueologia nos deu a conhecer o sofisticado nível de produção de instrumentos do Homo erectus. Isso revela um aspecto do pensamento que possibilita tanto a referência ao passado quanto a projeção projetual ao tempo futuro.
Em segundo lugar, a paleoneurologia demonstra a presença de uma capacidade de se interrogar e de poder dar explicações a fenômenos e eventos. Essas duas faculdades cognitivas, junto com uma linguagem primordial – possibilitada pela anatomia da laringe do Homo erectus –, são necessárias para que haja um ser que possa agir moralmente.
Infelizmente, não temos um conhecimento direto do patrimônio genético do Homo erectus (não temos o seu genoma), o que poderia fornecer provas decisivas para apoiar essas hipóteses bem fundamentadas.
No livro, esclarece-se que a “capacidade moral” se distingue da “capacidade religiosa”. Ambas as capacidades se enquadram nas características neurocognitivas. Mas a “capacidade religiosa” requer desenvolvimentos ulteriores, incluindo a presença do gene FOXP2 (que encontramos no Homo sapiens), responsável pela forma linguística que nos caracteriza.
Esse gene não está presente no Homo neanderthalensis, que é outro descendente direto do Homo erectus e surgiu há cerca de 800.000 anos, muito antes de Homo sapiens (presente apenas há 300.000 a 400.000 anos.
Outra novidade do Homo sapiens é a ativação genética da zona HAR no cromossomo 20, que se tornou responsável pelo significativo aumento do volume do cérebro e pelo arredondamento do crânio na nossa espécie. Trata-se de um código genético que se manteve inalterado na nossa linha de primatas por 60 milhões de anos ou mais e que apenas na nossa espécie mostra uma mudança, que permite uma atividade genética significativamente maior.
A esse respeito, ainda há muita pesquisa a ser feita; mas não devemos esperar que seja possível encontrar algo como o “gene de Deus”. A “capacidade religiosa” pode ser uma característica neurocognitiva baseada no genoma, mas, como característica, é o resultado da soma de diversas características neurocognitivas muito antigas. (...)
E o que dizer do surgimento da cultura? Ela tem um fundamento biológico? Os dois autores dão uma resposta positiva a essa pergunta. Por “cultura”, entende-se o conjunto dos comportamentos e das expressões que, dentro da espécie, podem diferir de um grupo ao outro, a tal ponto que um indivíduo, se tivesse que ser inserido em um grupo limítrofe, não poderia viver e agir sem um período necessário de adaptação ou de choque cultural.
Nesse sentido, a origem da cultura é situada pelos dois cientistas mais atrás no tempo, até se chegar a mais de oito milhões de anos atrás. De fato, parece que até os chimpanzés, de forma mais fraca, e as várias espécies de hominídeos, de forma mais pronunciada, possuíam aquela que podemos definir como “cultura”. Assim, há milhões de anos, havia um ancestral comum com características cerebrais que possibilitaram o surgimento da “capacidade de cultura”.
Os dois estudiosos estão cientes de que a questão do fundamento biológico do fenômeno da religião, ou “capacidade religiosa”, pode surpreender muitos teólogos profissionais ou qualquer pessoa que considere a religião – qualquer religião – importante para ela ou para a comunidade a que pertence; mas, para um biólogo experiente, ela não é estranha.
Para ele, de fato, toda atividade do ser humano, até mesmo o seu pensamento e a sua ação, não é apenas uma expressão cultural, mas também uma característica biológica. Algo no nosso cérebro nos permite que nos comportemos religiosamente, pensemos religiosamente, tenhamos uma experiência religiosa, reconheçamos outras tradições como expressão religiosa, mesmo que sejam muito diferentes da nossa tradição. E tudo isso mesmo que o observador não seja crente.
Além disso, os dois autores apontam que nem todos os indivíduos do nosso gênero possuem a “capacidade religiosa”, assim como hoje existem pessoas que não têm a “capacidade moral”.
Com base nos dados já adquiridos, os autores formulam este enunciado: “A tese central deste livro afirma que o cérebro e as capacidades neurais que permitiram um nicho econômico e sociocognitivo para os primeiros Homo sapiens são os mesmos órgãos e as mesmas capacidades que permitiram o surgimento do pensamento religioso e da ação”.
À pergunta: “Por que a religião é tão importante para tantas pessoas em todo o mundo?”, eles respondem: “Porque é o nosso patrimônio biológico”. Independentemente das diferenças culturais, a experiência religiosa é universal.
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O surgimento da religião na evolução humana. Artigo de Johan Verschueren - Instituto Humanitas Unisinos - IHU