Ecologista à frente de seu tempo, sábio sem arrogância e igrejinha, o sociólogo e filósofo francês não perdeu nada de sua aura. Mais ainda: com sua análise sobre o mundo moderno, ele se impõe como referência para os millenials. Um homem luminoso como poucos.
A entrevista é de Caroline Laurent Simon, publicada por Marie Claire [1], 11-09-2020. A tradução é de Edgard Carvalho e Fagner França.
A cena se passa no começo do verão no clube de boxe frequentado por Ali Baddou, professor de filosofia, apresentador do C l’hebdo na rádio France 5. “Chego na sala de aula, conta ele, e de repente alguns jovens de 20 anos me perguntam: “Vimos Edgar Morin em seu programa! Ele é genial!”. Uma reação emblemática do que o sociólogo e filósofo francês, de 99 anos, representa para as novas gerações. Mas por que esse intelectual límpido e claro, pensador da complexidade, ecologista à frente de seu tempo, sem arrogância, goza de tão grande e inédita popularidade transgeracional? “É porque ele é um jovem senhor de quase 100 anos”, ressalta Ali Baddou, que o conhece bem. “Ele tem uma pulsão vital genial, uma infindável curiosidade intelectual. Agrada aos jovens porque é emancipado de todas as ideologias e fala melhor que ninguém sobre o mundo moderno. Hoje, ele se empenha em desvendar a crise do coronavírus. Nos anos 1960, em sua pesquisa sobre o rumor [2], em seus ensaios sobre as estrelas de cinema [3] e sobre Hollywood, ele já anunciava, com fantástica intuição, o que hoje ocorre nas redes sociais. É incrível que uma pessoa quase centenária fale do futuro! Edgar Morin é um antídoto maravilhoso à melancolia”.
É também o percurso pessoal desse pensador otimista, que não tem nada de ingênuo, que entende a filosofia como parte da cultura. Segundo Alexandre Lacroix, editor da revista Filosofia, é isso que explica a popularidade do renomado Edgar Morin: “Ele é o último dos nossos intelectuais, depois de Jorge Semprun e de Stéphane Hessel, a fazer a relação direta entre a Segunda Guerra Mundial e os embates políticos contemporâneos, a ecologia, a luta em prol de projetos sociais, a cultura popular e a luta antifascista. Engajou-se na Resistência aos 20 anos e esteve ao lado dos Republicanos espanhóis. Seus engajamentos e combates têm um verdadeiro peso moral e, de modo algum, é identificado com o oportunismo de um convertido tardio. E isso é muito forte para as novas gerações”. Muito forte, como a narrativa pessoal de sua vida e as pistas para o “mundo que virá depois” que ele expõe em seu recente livro Mudando de via, as lições do coronavírus (em tradução livre), coescrito com sua companheira, a socióloga e urbanista Sabah Abouessalam. Conheça esse jovem senhor de 99 anos cheio de charme, inteligência generosa e energia comunicativa.
A chegada da Covid-19 inspirou Mudando de via, fantástica aglutinação de esperança e de pistas para a “vida que virá depois”. Esses desejos de mudanças e novas solidariedades se consolidarão ao longo do processo histórico?
Bem antes do aparecimento do vírus, a França já contava com um grande número de associações solidárias. Eu penso que tal efervescência de iniciativas e ações deverão perdurar, e até mesmo crescer. Toda essa conscientização veio à luz com as evidentes carências hospitalares que se tornam evidentes pela epidemia.
Em primeiro lugar, constatamos que o sistema político-econômico havia feito economias injustificáveis no tocante ao funcionamento e aos equipamentos hospitalares, assim como com seus profissionais, em suma, com a realidade fundamental que é a saúde. Depois, nos demos conta de que essa política de fluxo intenso e os deslocamentos tornavam os medicamentos essenciais fora de nosso alcance.
Vimos também uma crise se instalar na cúpula do Estado. A administração mostrou-se totalmente incoerente. Os serviços não se comunicavam, excesso de compartimentalização, de burocracia, além de uma linguagem burocrática incompreensível para qualquer cidadão.
No campo da saúde, ou mesmo da ecologia, percebemos que os altos escalões dessa burocracia eram parasitados por poderosos interesses econômicos que prejudicavam os cidadãos. Daí decorre a necessidade de desburocratizar o Estado.
A mudança deve passar então pela ação cidadã?
A crise só pode ajudar a tomada de consciência se houver uma convergência de movimentos populares e associativos. Mas é preciso haver organização. Não falo de um partido, penso que essa fórmula é ultrapassada. É necessário um agenciamento entre um pensamento e uma ideia.
Como funcionaria este “agenciamento” que você propõe?
Podemos lançar mão de uma outra via política e econômica. Uma via ecológica em prol das energias renováveis, da desintoxicação das cidades por meio da construção de grandes parques e vias para pedestres, mas também a desintoxicação dos campos que, por sua vez, viabilizariam a desintoxicação de nossa alimentação e de nossa saúde fazendo recuar a agricultura industrial. Tudo isso traria mais empregos e repovoaria as zonas rurais.
A onda ecológica nas eleições municipais tem entusiasmado você!
É um acontecimento muito positivo. Isso vai permitir sanear as cidades, fazer uma outra política de moradia, mais popular. Seria maravilhoso se isso reinventasse toda uma convivialidade. É preciso criar uma nova política que integraria o cuidado do “bem-viver”, como chamam os sul-americanos, quer dizer, algo bem diferente do bem-estar material com cinco televisões e três carros!
Em suas obras você insiste que é hora de reformar nossas vidas. Como?
Estamos intoxicados por um modo de vida acelerado, cronometrado, escravizado por imposições imbecis. Podemos nos tornar zen-budistas, certamente, em nível pessoal já é alguma coisa. Mas não vamos mudar nada no mundo e na sociedade. Então, o que poderia fazer a ligação entre o Eu e o coletivo? A solidariedade e a responsabilidade, bases de toda sociedade. Desde que você se sinta solidário você se sente responsável e vice-versa. Claro, em nossa sociedade como no mundo animal, também existem conflitos. Não vamos eliminá-los. De fato, há competições úteis, mas o importante é que a solidariedade seja mais forte. Seja ela antiga ou tradicional, ligadas à grande família, às pequenas cidades, às relações pessoais, ao trabalho, enfim, ela está degradada e adormecida. Despertaram um pouco em função da catástrofe do coronavírus, portanto são capazes de se reanimar! Se queremos uma sociedade que não seja ligada pelo cimento do poder ou do terror, cada um de nós deveria se sentir membro desta comunidade. Devemos colocar a solidariedade no cerne do programa político. É por isso que proponho a criação de casas de solidariedade nos bairros, para cuidar de todas aquelas angústias que o SAMU não leva em conta.
Defendo a ideia de um serviço cívico dos jovens porque quando prestamos serviços aos outros, ficamos felizes e acabamos prestando serviço a nós mesmos. Quando estava na Resistência, defrontei-me com uma infinidade de perigos, mas eu me sentia bem comigo mesmo. Em cada ser humano coexistem dois “softwares”: o Eu egocêntrico, que é vital para se alimentar, se defender, o Tu e o Nós. A criança que nasce precisa de amor, de ser cuidada. Depois, na vida, precisamos de uma irmã, um irmão, uma mãe, um companheiro ou uma companheira. São as relações de amor, de amizade, de fraternidade que dão sentido à vida.
Neste mundo tão cheio de problemas, você acha que a balança pode pender para o otimismo?
Acho que sim. Mas sou consciente dos perigos, porque antes do coronavírus não havia uma serenidade maravilhosa! Depois da epidemia, os mesmos perigos, como a opressão econômica neoliberal, as ameaças sobre os direitos sociais como a aposentadoria, a chegada ao poder de ditadores, inclusive na Europa, continuarão a existir. Teremos nossas lutas políticas, mas é preciso evitar que elas assumam o caráter de embates sangrentos. Precisaremos de muita inteligência e líderes políticos à altura. Mas digo que o futuro não está dado e que o pior não está predeterminado. Qual a chave para fazer frente ao pior quando ele chegar? A coragem. Tanto no plano individual quanto no coletivo. André Malraux, que era minha bíblia, afirmava: “A coragem é questão de organização”. E é verdade. Quando dei meus primeiros passos na clandestinidade por fazer coisas proibidas durante a guerra, como transportador de malas cheias de documentos da Resistência, eu tinha um pouco de medo. Depois as coisas que me faziam medo deixaram de me amedrontar.
Daí seu otimismo?
Sabe de uma coisa, eu também passei por tempos obscuros, por túneis, mas sempre conseguimos sair deles... Não falo apenas da Segunda Guerra Mundial. Sei que mesmo o mais improvável, o mais inesperado pode acontecer e trazer benefícios. É um pouco de minha experiência de vida. Para mim, a questão não é saber se estamos seguros que o futuro será melhor, a questão é saber se a emergência de uma nova barbárie é possível. É a história da luta entre aqueles que são pela união, pela democracia, pela fraternidade e aqueles que são pela destruição e pela separação, as forças de Eros contra as de Tânatos. Eu escolho Eros. Tomemos partido pelas forças do bem porque, aconteça o que acontecer, manteremos ainda pequenos oásis, ilhas de resistência. Pequenos vagalumes brilham na noite. Eu não digo que tudo vai se iluminar, mas já é um bom sinal.
Em seu livro, você consagra uma passagem bastante intensa aos “últimos da fila”, aos invisíveis, dentre eles as mulheres, os doentes, os caixas de supermercado, as empregadas domésticas, trabalhadores assalariados. O mais importante, segundo você, é “fazer-lhes justiça”.
Justiça, claro. Não somente valorizando seu salário, mas dando-lhes o reconhecimento social a que têm direito. Em relação às mulheres, o que surgiu do movimento #MeToo é muito importante na história do movimento de emancipação feminina. Quantas mulheres fazendo trabalhos de “últimos da fila” têm não somente seu status precário mas estão sujeitas também ao assédio de um “boss”, de um patrão. Essas mulheres jamais tinham ousado denunciar o que haviam sofrido. Como em todo movimento de liberação, existem excessos, mas nada será capaz de alterar a característica positiva desse movimento. Os combates feministas deviam ser igualmente estendidos ao âmago das grandes questões sociais.
Aos 99 anos, qual o segredo dessa energia incrível, ao mesmo tempo lúcida e extremamente feliz?
É o amor! São Paulo, na carta aos Coríntios, diz: “Sem amor eu não sou nada, mesmo se tivesse fé para mover montanhas, sem amor eu não sou ninguém”. Acredito profundamente nisso que chamo, entre aspas, minha missão, no sentido das ideias, da escrita. Mas não posso fazê-la bem se não tiver meu fogo interior iluminado pelo amor de minha companheira Sabah. Ela desempenha um papel capital. Eu poderia ter vivido só, mais ou menos tristonho, mais ou menos resignado... Mas essa é outra história.
Uma última palavra?
(Extremamente sorridente, sua resposta foi imediata.) Viva o amor!
[1] Entrevista publicada na última edição da revista Marie Claire, autorizada por Edgar Morin para publicação no Brasil, em setembro de 2020.
[2] No conjunto da obra, esse livro integra a categoria “Tempo presente”. Ver Edgar Morin. La rumeur d’Orléans (com Bernard Paillard, Évelyne Burguière, Claude Capulier, Suzanne de Lusignan, Julia Vérone. Paris: Seuil, 1969, coleção “Point Essais”, nº 143, 1982. Edição aumentada com La rumeur d’Amiens, 1982. (N.Ts.)
[3] Ver Edgar Morin. Les stars. Paris: Seuil, 1957. (N.Ts.)