30 Mai 2020
Para o filósofo italiano, em nome do imperativo sanitário, sacrificamos nossas liberdades, mas também nossas condições normais de vida, nossas amizades e até mesmo o respeito por nossos mortos.
Desde o começo da epidemia da Covid-19, o filósofo italiano foi uma voz dissidente. Num primeiro texto, publicado no site do L’OBS, ele ressaltava a “invenção de uma epidemia” e enumerava as inúmeras privações de liberdades provocadas pelo confinamento. “Mesmo depois que o terrorismo foi desconsiderado como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia parece oferecer um pretexto ideal para ampliá-las para além de quaisquer limites.” Tal afirmação suscitou uma dura resposta do filósofo Slavoj Zizek, no nº 2889, do L’OBS.
Em outro texto, publicado no início de março, Agamben[1] estimava que, de fato, “as disposições recentes transformaram cada indivíduo num transmissor potencial do vírus, exatamente como as leis sobre o terrorismo consideravam, na prática, cada cidadão como um potencial terrorista.” Finalmente, em 17 de março, publicou “Esclarecimentos”. O texto traduzido do italiano para o francês foi publicado em maio. No momento em que se abre um novo período de “desconfinamento” cujos contornos são aleatórios, as questões que Agamben colocava há dois meses atingem a todos nós.
O artigo é de Giorgio Agamben, filósofo italiano, publicado por L’OBS, Nº 2897, 14-20 de maio 2020. A tradução é de Edgard Carvalho e Fagner França.
“O medo é um mal conselheiro”, mas faz surgir inúmeros elementos que podíamos fingir não ver. O primeiro elemento foi a onda de pânico que paralisou nosso país; ele mostra claramente que nossa sociedade não acredita em mais nada a não ser na vida nua. Fica claro agora que os italianos estão dispostos a sacrificar tudo, ou quase tudo, para não ficar doentes: suas condições normais de vida, suas relações sociais, seu trabalho e até mesmo suas amizades, seus afetos e, também, suas convicções religiosas e políticas. A vida nua – e o medo de perdê-la – não é algo que une os homens, mas que os cega e separa. Como na peste descrita no romance “Os noivos” de Manzoni[2], os outros seres humanos aparecem sempre como pestíferos (Manzoni recorre ao termo untore[3]), que devem ser evitados a qualquer preço e ficar a distância de um metro pelo menos.
Os mortos – nossos mortos – não têm direito às cerimonias fúnebres e, na verdade, não sabemos o que pode ter acontecido com os cadáveres de pessoas queridas. Nossos familiares desapareceram e é surpreendente que as igrejas não digam nada sobre isso. Qual o significado das relações humanas num país que se habituou a viver dessa maneira por um período que não se sabe quanto tempo irá durar? Que sociedade é essa que só reconhece a sobrevivência como valor?
O outro elemento, que não é menos inquietante que o primeiro, e que a epidemia fez surgir muito claramente, reside no fato de que o estado de exceção converteu-se doravante em condição normal. No passado houve epidemias mais graves, mas apesar disso ninguém jamais imaginou declarar um estado de urgência que proíbe tudo, até mesmo nossos deslocamentos.
Os homens se habituaram a viver numa condição de crise perene e de perene urgência e, por isso, parecem não se dar conta de que sua vida foi reduzida à uma condição meramente biológica e que perderam qualquer dimensão social e política e, até mesmo, humana e afetiva. Uma sociedade que vive num estado de urgência perene não pode ser considerada uma sociedade livre. De fato, vivemos numa sociedade que sacrificou a liberdade em nome de supostas “razões de segurança” e que, por isso mesmo, encontra-se condenada a viver num estado de medo e insegurança perenes.
Não causa surpresa que se evoque a guerra, quando se fala desse vírus. As medidas de urgência nos obrigam a viver em condições de recolhimento obrigatório. Mas pelo fato de que essa guerra é travada contra um inimigo que pode se alojar no corpo de qualquer homem, será que ela não pode ser entendida como a mais absurda de todas as guerras? Na verdade, trata-se de uma guerra civil. O inimigo não está no exterior, mas sim no interior de cada um de nós.
O que inquieta não é tanto o presente e nem apenas ele, mas o que virá depois. Assim, tal como todas as guerras deixaram como legado da paz uma série de nefastas tecnologias - das cercas de arame farpado às centrais nucleares - pode-se certamente supor que, após a urgência sanitária, surgirão experimentações que os governos não conseguiram implementar até agora: fechar as universidades e as escolas e dar aulas pela internet, parar de uma vez por todas de se reunir e debater em conjunto política e cultura, contentar-se de trocar mensagens digitais e, por toda parte onde for possível, fazer com que as máquinas substituam qualquer espécie de contato – qualquer contágio - entre os seres humanos.
Notas:
[1] Especialista em Martin Heidegger e Carl Schmitt, o filósofo italiano, de 78 anos, é figura de destaque na filosofia europeia. “O poder soberano da vida, primeiro volume do ciclo Homo sacer, exerceu influência determinante na nova geração radical. Em 2018, a editora Le Seuil publicou todos os volumes do Homo sacer. [A traducão brasileira é da Boitempo editorial].
[2] Alessandro Francesco Tommaso Manzoni (1785-1873). O romance foi publicado pela primeira vez em 1827, em três volumes, e transformado em ópera em 1856. Edição brasileira: Os noivos. Tradução de Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2012.
[3] O termo significa literalmente hospedeiro de um virus e que nos convertemos nisso. (N.Ts.)
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Que sociedade é essa que só reconhece a sobrevivência como valor? Artigo de Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU