“Vivemos em um mercado planetário que não soube suscitar fraternidade entre os povos”. Entrevista com Edgar Morin

Fonte: Pixabay

16 Abril 2020

“A unificação técnico-econômica do mundo, que trouxe o capitalismo agressivo nos anos 1990, gerou um enorme paradoxo que o surgimento do coronavírus agora tornou visível a todos: essa interdependência entre países, em vez de favorecer o progresso real da consciência e da compreensão dos povos, desencadeou formas de egoísmo e ultranacionalismo. O vírus desmascarou essa ausência de uma autêntica consciência planetária da humanidade”. Edgar Morin fala com sua habitual paixão pelo Skype. Ele, como milhões de europeus, se encontra confinado em sua casa no sul da França, em Montpellier, com sua esposa.

 

É considerado um dos filósofos contemporâneos mais brilhantes, aos 98 anos (em 8 de julho completará 99 anos), Morin lê, escreve, ouve música e mantém contato com amigos e parentes. Sua vontade de viver demonstra fortemente o drama de um flagelo que está aniquilando milhares de idosos e doentes com patologias anteriores. “Sei muito bem”, diz com tom irônico, que poderia ser a vítima por excelência do coronavírus. Na minha idade, no entanto, a morte está sempre à espreita. Portanto, é melhor pensar na vida e refletir sobre o que está acontecendo”.

 

A entrevista é de Nuccio Ordine, publicada por El País, 11-04-2020. A tradução é do Cepat.

 

 

Eis a entrevista.

 

A globalização da qual fala criou um grande mercado global que, através da tecnologia mais avançada, reduziu consideravelmente as distâncias entre os continentes. Mas essa redução de distâncias não favoreceu o diálogo entre os povos. Pelo contrário, fomentou o relançamento do fechamento identitário em si mesmo, alimentando um perigoso soberanismo.

 

Vivemos em um grande mercado planetário que não soube suscitar sentimentos de fraternidade entre os países. Criou, de fato, um medo generalizado do futuro. E a pandemia de coronavírus iluminou essa contradição, tornando-a ainda mais evidente. Isso me faz pensar na grande crise econômica dos anos 1930, na qual vários países europeus, Alemanha e Itália, sobretudo, abraçaram o ultranacionalismo. E mesmo que falte a vontade hegemônica dos nazistas, hoje me parece indiscutível esse fechamento em si mesmos.

 

O desenvolvimento econômico-capitalista, então, desencadeou os grandes problemas que afetam nosso planeta: a deterioração da biosfera, a crise geral da democracia, o aumento das desigualdades e as injustiças, a proliferação de armamentos, os novos autoritarismos demagógicos (com os Estados Unidos e o Brasil na cabeça). Por isso, hoje, é necessário promover a construção de uma consciência planetária sob sua base humanitária: incentivar a cooperação entre países com o objetivo principal de fazer crescer os sentimentos de solidariedade e fraternidade entre os povos.

 

Tentemos analisar essa contradição em escala reduzida, levando em consideração o microcosmo das relações pessoais. A incursão do vírus colocou em crise a ideologia de fundo que dominou as campanhas eleitorais nos últimos anos: slogans como “America First”, “La France d'abord”, “Prima gli italiani”, “Brasil acima de tudo”, ofereceram uma imagem insular da humanidade, na qual cada indivíduo parece ser uma ilha separada das outras (usando a bela metáfora de uma meditação de John Donne). Ao contrário, a pandemia mostrou que a humanidade é um único continente e que os seres humanos estão profundamente ligados uns aos outros. Nunca como neste momento de isolamento (longe dos afetos, dos amigos, da vida comunitária) tomamos consciência da necessidade do outro. “Eu fico em casa” significa não apenas proteger a nós mesmos, mas também as outras pessoas com quem formamos nossa comunidade.

 

Sim. O surgimento do vírus e as medidas que nos obrigam a ficar em casa acabaram estimulando nosso sentimento de fraternidade. Na França, por exemplo, todas as noites temos um compromisso em nossas janelas para aplaudir nossos médicos e os profissionais de saúde que, na linha de frente, prestam assistência aos doentes. Me emocionou, na semana passada, quando eu vi na televisão, em Nápoles e em outras cidades italianas, as pessoas se juntando nas sacadas para cantar juntas o hino nacional e para dançar ao ritmo de canções populares.

 

 

Mas há também o outro lado da moeda. A experiência nos ensina que todas as crises graves podem aumentar os fenômenos de fechamento e angústia: a caça ao infrator e a necessidade de um bode expiatório, muitas vezes, identificado com o estrangeiro ou o migrante. As crises podem favorecer a imaginação criativa (como aconteceu com o New Deal) ou provocar regressão.

 

Refere-se também à Europa que, diante da emergência de saúde, revelou mais uma vez sua incapacidade de planejar estratégias comuns e solidárias?

 

É claro. A pseudo-Europa dos banqueiros e dos tecnocratas massacrou, nessas décadas, os autênticos ideais europeus, cancelando todo impulso para a construção de uma consciência unitária. Cada país está administrando a pandemia de forma independente, sem uma verdadeira coordenação. Esperemos que desta crise possa ressurgir um espírito comunitário capaz de superar os erros do passado: da gestão da emergência dos migrantes ao predomínio das razões financeiras sobre as humanas, da ausência de uma política internacional europeia à incapacidade de legislar em matéria tributária.

 

Qual foi a sua reação diante do primeiro discurso de Boris Johnson, ao impiedoso cinismo com o qual convidou os cidadãos britânicos a se prepararem para as milhares de mortes que o coronavírus provocaria e a aceitar os princípios do darwinismo social (a supressão dos mais fracos)?

 

Um exemplo claro de como a razão econômica é mais importante e mais forte que a humanitária. O lucro vale muito mais do que as enormes perdas de seres humanos que a epidemia pode infligir. Afinal, o sacrifício dos mais frágeis (dos idosos e dos doentes) é funcional para uma lógica da seleção natural. Como ocorre no mundo do mercado, aqueles que não suportam a concorrência estão destinados a sucumbir. Criar uma sociedade autenticamente humana significa opor-se a todo custo a esse darwinismo social.

 

O Presidente Macron usou a metáfora da guerra para falar da pandemia. Quais são as afinidades e as diferenças entre um verdadeiro conflito armado e o que estamos vivendo?

 

Eu, que vivi a guerra, conheço bem os mecanismos. Primeiro, me parece evidente uma diversidade. Na guerra, as medidas de confinamento e toque de recolher são impostas pelo inimigo, agora, ao contrário, é o Estado que o impõe contra o inimigo. A segunda reflexão tem a ver com a natureza do adversário. Em uma guerra é visível, agora é invisível.

 

Também para aqueles que, como eu, participaram da resistência, a analogia poderia funcionar da mesma maneira: para os partisanos, a Gestapo era como um vírus, porque se infiltrava em qualquer lugar, porque tudo que estava ao nosso redor poderia ter ouvido para informar e denunciar.

 

Agora, não sei se esse período de confinamento durará o suficiente para provocar restrições que possam lembrar o racionamento de alimentos e os comércios ocultos do mercado negro. Penso, e espero que não. De qualquer forma, não creio que utilizar a metáfora da guerra possa ser mais útil para compreender essa resistência à epidemia.

 

Sobre o tema da solidariedade humana: não lhe parece que os cientistas neste momento estão promovendo uma colaboração internacional para buscar a derrota do vírus? A chegada de médicos chineses e cubanos no norte da Itália não é um sinal de esperança?

 

Isso é indiscutivelmente positivo. A rede planetária de pesquisadores atesta um esforço para um bem comum universal que atravessa fronteiras nacionais, idiomas e cores da pele. Mas não se deve subestimar os fenômenos de coesão nacional: estar, recordava antes, ao redor dos profissionais de saúde que trabalham nos hospitais. Muitos, no entanto, são deixados de fora dessas novas formas de agregação solidária: pessoas solitárias, idosos e famílias pobres não conectadas à Internet, sem contar os que vivem na rua porque não têm casa. Se esse regime durar por um período longo, como continuaríamos cultivando as relações humanas e como conseguiríamos tolerar as privações? 

 

 

Gostaria que abordássemos outra vez o assunto da ciência. Depois do desastre da Segunda Guerra Mundial, as primeiras relações entre Israel e Alemanha ocorreram por meio dos cientistas. No ano passado, enquanto visitava o Cern de Genebra com Fabiola Gianotti, vi em torno de uma mesa pesquisadores que vieram de países em conflito entre si. Não acha que a pesquisa científica básica, que não espera ganhar nada, possa contribuir para promover nesta emergência da pandemia um espírito de fraternidade universal?

 

Claro que sim. A ciência pode desempenhar um papel importante, mas não decisivo. Pode iniciar um diálogo entre trabalhadores de diferentes países que neste momento trabalham para criar uma vacina e produzir fármacos eficazes. Mas não se deve esquecer que a ciência é sempre ambivalente. No passado, muitos pesquisadores trabalharam a serviço do poder e da guerra. Dito isto, tenho grande confiança nos cientistas criativos e imaginativos que certamente saberão promover e defender uma pesquisa científica sólida e a serviço da humanidade.

 

Entre as emergências que a epidemia evidenciou está sobretudo a sanitária. Em alguns países europeus, os Governos enfraqueceram progressivamente os hospitais com substanciais cortes nos recursos. A escassez de médicos, enfermeiros, leitos e equipamentos mostrou uma saúde pública enferma.

 

Não há dúvida de que a saúde tenha que ser pública e universal. Na Europa, nas últimas décadas, fomos vítimas das diretrizes neoliberais que insistiram na redução dos serviços públicos em geral. Planejar a administração de hospitais como se fossem empresas significa conceber os pacientes como mercadorias incluídas em um ciclo produtivo. Este é outro exemplo de como uma visão puramente financeira pode produzir desastres do ponto de vista humano e sanitário.

 

A saúde e educação constituem os dois pilares da dignidade humana (o direito à vida e o direito ao conhecimento) e as bases do desenvolvimento econômico de um país. O sistema educacional também sofreu cortes terríveis nessas décadas.

 

A saúde e a educação, sobre esse ponto estou de acordo com o que escreveu em seus livros, não podem ser gerenciadas por uma lógica empresarial. Os hospitais ou as escolas e universidades não podem gerar lucro econômico (não deveriam vender produtos aos clientes que os compram!), mas devem pensar no bem-estar dos cidadãos e em formar, como dizia Montaigne, “teste ben fatte”. Deve-se reencontrar o espírito do serviço público que nessas décadas foi fortemente reduzido. 

 

 

Agora, com escolas e universidades fechadas, se faz necessário recorrer ao ensino a distância para manter viva a relação entre professores e estudantes.

 

Graças à tecnologia, é possível não romper o elo de comunicação. Também a televisão na França está se organizando para oferecer programas aos estudantes dos institutos. Mas a questão, como bem sabe, é de fundo: em diferentes livros meus, evidenciei os limites do nosso sistema de ensino. Penso que não se adaptou à complexidade que vivemos do ponto de vista pessoal, econômico e social.

 

Temos uma consciência dividida em compartimentos estanques, incapaz de oferecer perspectivas unitárias e inadequada para enfrentar de maneira concreta os problemas do presente. Nossos estudantes não aprendem a se medir com os grandes desafios existenciais, tampouco com a complexidade e incerteza de uma realidade em constante mutação. Parece-me importante se preparar para entender as interconexões: como uma crise de saúde pode provocar uma crise econômica que, por sua vez, produz uma crise social e, por último, existencial.

 

Alguns decanos e alguns professores consideram a experiência da pandemia como uma oportunidade para relançar o ensino telemático. Penso que é necessário lembrar que nenhuma plataforma digital pode mudar a vida de um aluno. Desse modo, não se corre o risco de menosprezar a importância essencial das aulas nas salas de aula e do encontro humano entre professor e aluno?

 

Deve-se distinguir a excepcionalidade imposta pelo vírus das condições normais. Agora, não temos escolha. Mas manter o contato humano direto entre professores e alunos é fundamental. Somente um professor que ensina com paixão pode realmente influenciar a vida de seus estudantes. O papel do ensino é, sobretudo, problematizar, através de um método baseado em perguntas e respostas capaz de estimular o espírito crítico e autocrítico dos alunos. Desde a infância, os alunos têm que deixar solta sua curiosidade, cultivando a reflexão crítica. Ensinar é uma missão, como a que estão cumprindo agora os médicos. Trata-se, de qualquer modo, de cuidar de vidas humanas, de pessoas e de futuros cidadãos. 

 

 

O vírus conseguiu explodir também os limites da rapidez. O confinamento em nossas casas nos ajudou a redescobrir a importância da lentidão para refletir, entender e cultivar os afetos.

 

Parece-me indiscutível. A epidemia, com as restrições que gerou, nos forçou a realizar uma saudável desaceleração. Eu mesmo notei uma forte mudança no meu ritmo diário: não é mais cronometrado e marcado como antes. Quando deixei Paris para viver em Montpellier, já percebi uma notável mudança no desenvolvimento dos meus dias. Agora, com maior consciência, estou (estamos) me reapropriando do tempo. Bergson havia entendido bem a diferença entre tempo de vida (o interior) e tempo cronometrado (o exterior). Reconquistar o tempo interior é um desafio político, mas também ético e existencial.

 

Justamente agora nos damos conta de que ler livros, ouvir música e admirar obras de arte é a melhor maneira de cultivar nossa humanidade.

 

Sem dúvida. O confinamento está nos fazendo perceber a importância da cultura. Uma oportunidade - através desses saberes que nossa sociedade chamou injustamente de “inúteis” porque não produzem lucros - para entender os limites do consumismo e da corrida ininterrupta em direção ao dinheiro e ao poder. Teremos aprendido algo nestes tempos de pandemia, se soubermos redescobrir e cultivar os autênticos valores da vida: o amor, a amizade, a fraternidade e a solidariedade. Valores essenciais que conhecemos desde sempre e que desde sempre, infelizmente, acabamos esquecendo.

 

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