14 Fevereiro 2020
Parece-nos que o texto da exortação reforça o clericalismo que o próprio Francisco quer combater. Para além da nossa posição crítica, não podemos aceitar que esse texto seja uma virada no pontificado.
O comentário é publicado por Noi Siamo Chiesa, 12-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A leitura dos três primeiros capítulos da exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” (“Um sonho social”, “Um sonho cultural”, “Um sonho ecológico”) é interessante. Percorre-se o itinerário anterior e contextual do Sínodo que teve uma ampla participação de baixo, totalmente incomum para momentos da vida eclesial desse tipo.
Nele, a Igreja amazônica deu a melhor contribuição que existe no que se refere a uma análise desencantada da situação. Passa-se da rapina dos recursos ao desastre ecológico, até a história das riquezas culturais dos povos indígenas, que agora sofrem muito com as violências permanentes que sofrem e com a desintegração que suportam, forçados há muito tempo a emigrações e a urbanizações contínuas.
O “bem viver” dos povos indígenas (aquele que sobreviveu) “implica uma harmonia pessoal, familiar, comunitária e cósmica e manifesta-se no seu modo comunitário de conceber a existência, na capacidade de encontrar alegria e plenitude numa vida austera e simples, bem como no cuidado responsável da natureza que preserva os recursos para as gerações futuras”.
O texto denuncia incondicionalmente “a injustiça e o crime”, e também é rico em descrever as diversidades e a complexidade dos povos amazônicos.
O quarto capítulo (“Um sonho eclesial”), por sua vez, contém aquilo que diz respeito mais diretamente à Igreja. Ele fala amplamente da inculturação, detém-se sobre a necessidade e oportunidade absolutas que os leigos, e as mulheres em particular, continuem no papel que já desempenham de dar continuidade à vida de tantas comunidades pequenas e dispersas. É forte a ênfase na importância da Eucaristia como momento indispensável da vida do Povo de Deus.
Mas a passagem fundamental e mais esperada que realmente permitiria ir na direção da inculturação, a da aceitação da proposta dos viri probati, é ignorada, ou seja, rejeitada. Recorre-se a uma descrição do papel do “sacerdote” (não do “presbítero”) que parece escrita pelo ex-Santo Ofício.
Quanto ao diaconato feminino, depois de muitos reconhecimentos aos papéis femininos, uma idêntica posição negativa. O texto diz: “Na realidade, este horizonte limitaria as perspectivas, levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do que elas já deram e sutilmente causaria um empobrecimento da sua contribuição indispensável”.
É realmente surpreendente essa afirmação que rejeita o diaconato feminino muito além das fronteiras da Amazônia. Parece-nos evidente uma contradição entre a proclamada vontade de aceitar plenamente as sensibilidades e as culturas que vêm de longe e que exigem reconhecimentos e acolhida com o dever de reconhecer novos ministérios e, em particular, de facilitar a assembleia eucarística comunitária, cujo papel, aliás, é enfatizado.
Tudo isso para respeitar a norma canônica do celibato dos padres que, aplicada especificamente, parece-nos contradizer, de modo pouco evangélico, as legítimas expectativas do povo cristão dos países amazônicos e da qual, com ampla maioria, o Sínodo deseja a mudança.
Outras propostas significativas, para as quais o papel do Vaticano é importante, são ignoradas. Pensemos no pedido de “redimensionar as extensas áreas geográficas das dioceses, vicariatos e prelazias”, de “criar um fundo amazônico de apoio à evangelização”, de “sensibilizar e encorajar as agências de cooperação católica internacional para apoiar as atividades de evangelização além dos projetos sociais”, de criar estruturas pós-sinodais amazônicas.
O Sínodo também pediu “elaboração de um rito amazônico que exprima o patrimônio litúrgico, teológico, disciplinar e espiritual da Amazônia”. É uma proposta muito importante, mas os novos ritos devem ser aprovados por Roma! Além disso, o Sínodo levantou a hipótese da criação de uma Universidade Amazônica.
A nossa profunda decepção se une a considerações mais gerais sobre a colocação da exortação dentro deste momento particular da vida eclesial. Nós, junto com muitos outros, pensamos que esse texto foi fortemente condicionado pela questão alemã, em que o Caminho Sinodal, recém-iniciado lá, fez entrever, desde o início, uma posição explícita em favor do celibato facultativo dos padres e do diaconato feminino.
Portanto, o Papa Francisco penalizou a cristandade na Amazônia para bloquear a Igreja na Alemanha (e também em outros lugares, por exemplo, na Austrália)?
Parece-nos que o texto da exortação reforça o clericalismo que o próprio Francisco quer combater, contradiz a opinião que nos parece generalizada no laicato católico favorável ao celibato facultativo, fortalece muito os conservadores de todos os tipos, daqueles corretos àqueles desleais na Cúria e fora, que não conhecem o Evangelho que condena os seus ídolos.
Para além da nossa posição crítica, não podemos aceitar que esse texto seja uma virada no pontificado. Parece-nos de grande importância o texto sinodal, que o próprio Francisco convida a ler “integralmente”, exortando todos a se empenharem “na sua aplicação e que, de alguma forma, possa inspirar todas as pessoas de boa vontade”.
Ele indica o caminho para o futuro, quando ele não poderá deixar de ser recebido. É realmente uma pena que o Papa Francisco tenha tido dificuldade em aceitá-lo toto corde.
Noi Siamo Chiesa
Roma, 12-02-2020
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“A sinodalidade está em risco, mas o documento do Sínodo indica o caminho para o futuro” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU