17 Outubro 2019
Maxim Renahy (Grande-Synthe, França, 1978) trabalhou como espião dos serviços secretos franceses em Jersey, um dos “piores paraísos fiscais” do mundo, segundo os termos da Rede para a Justiça Fiscal. Renahy trabalhou nessa ilha britânica, localizada no Canal da Mancha, para o escritório de advocacia Mourant. Também esteve a serviço do Mourant em Luxemburgo. Pensando que as autoridades francesas perseguiriam as empresas que recorriam a esses paraísos fiscais para cometer atividades fraudulentas, forneceu informações comprometedoras às quais tinha acesso ao serviço da Direção Geral de Segurança Externa da França (DGSE), os serviços de inteligência. Contudo, teve uma péssima surpresa.
Renahy se deparou com a “passividade” do Estado francês diante das irregularidades cometidas pelas empresas francesas. Convencido de que os esforços franceses - e também do resto dos grandes países europeus - contra paraísos fiscais são insuficientes, escreveu um livro contando sua experiência até 2013 no obscuro mundo das finanças em paraísos fiscais. O volume é intitulado Là où est l'argent [Onde está o dinheiro]. Nele, abarca os muitos usos que continuam a ser dados aos considerados buracos negros das finanças que são paraísos fiscais. É um autêntico exercício de whistleblowing à francesa.
A entrevista é de Aldo Mas, publicada por El Diario, 12-10-2019. A tradução é do Cepat.
Você queria entrar no mundo das finanças para, estando dentro, se colocar a serviço dos serviços de inteligência. Por quê?
Quando comecei, em 2007, havia bem pouca informação sobre os paraísos fiscais. Lembre-se que 2007 é muito antes de ocorrerem revelações como as do Luxleaks e de pessoas como Edward Snowden, capazes de revelar ao menos parte do anverso do cenário político e econômico internacional. Pode parecer casual que eu trabalhasse no setor, mas muitas coisas fizeram com que eu trabalhasse como espião lá.
Sempre tive um forte desejo de me colocar a serviço do meu país e, segundo, havia algo que me intrigava muito no segredo dos paraísos fiscais. Esses são os motivos pelos quais acabei trabalhando para o escritório de advocacia Mourant, o maior da ilha. Estava aberto a esse tipo de aventura. Ainda que minha formação não tinha a ver com esse mundo, tive a oportunidade de realizar esse sonho de trabalhar para os serviços de inteligência franceses.
Tornando público, em seu livro, o seu trabalho para o serviço da DGSE. Até que ponto se tornou um whistleblowing?
Em meu livro, procurei mostrar como funciona o mundo das finanças, a corrupção de políticos e de bilionários. Também busquei explicar o envolvimento do estado francês nos paraísos fiscais e como os serviços secretos defendem, para o bem ou para o mal, os interesses franceses. Também quis deixar algumas pistas para ver como é possível servir melhor os interesses franceses e da Europa por meio de uma melhor governança.
Essa corrupção da qual você fala, não é apenas evasão fiscal, correto?
Os paraísos fiscais também servem para todos os tipos de fraude, sejam desvios, uso de informação privilegiada, criação de monopólios ou estruturas offshore para ocultar uma estrutura acionária, ou para realizar liquidações fraudulentas nas empresas. Sobre este último, os paraísos fiscais podem ser usados para fazer acreditar que, na França, Espanha ou Itália, por exemplo, um centro de produção de uma empresa não é rentável, quando na verdade é, para assim justificar uma realocação sem pagar programas sociais, por exemplo.
Depois, há questões como o pagamento de retrocomissões ou investimentos proibidos feitos através de paraísos fiscais. Existem bancos e empresas de seguros francesas que passam pelos paraísos fiscais para fazer coisas que são penalizadas por lei, como, por exemplo, evitar possuir suficientes reservas de dinheiro. Há 15.000 razões para que as empresas utilizem paraísos fiscais.
O argumento mais usado no momento de justificar esses usos de paraísos fiscais é que são utilizados para competir melhor nos mercados internacionais.
Essa é a desculpa dada pelas multinacionais para justificar a presença em paraísos fiscais. Por própria experiência, posso lhe dizer que todas as vezes que vi multinacionais ou bilionários passando por um paraíso fiscal era para cometer fraude, mas falo de fraudes em todos os níveis. A evasão fiscal nunca caminha sozinha. Esta se soma a muitas outras coisas. Fazer uso de um paraíso fiscal não é algo que se faça unicamente pela evasão fiscal. A desculpa que as empresas dão é que vão para esses paraísos fiscais por “obrigação”, porque “a globalização as obriga”. Mas, essa é uma falsa desculpa. Vão para lá para evitar que as fraudes que realizam sejam vistas.
Quando você se colocou à disposição dos serviços de inteligência franceses, pensava que atuariam contra os atores econômicos que denunciava com suas informações?
Sim, porque fui educado pensando que o Estado francês fazia o seu trabalho, porque a França tem um Estado forte. Mas, na realidade, não é assim. Se o Estado francês fizesse bem o seu trabalho - embora não seja o caso -, seria necessário que os cidadãos que desejam pudessem ajudar o Estado francês. Ele não é onipotente, por mais que a administração se convide a pensar o contrário. Um estado que fizesse bem o seu trabalho, seria honesto, faria as coisas corretamente e pediria ajuda aos cidadãos. Isso é algo que o estado não ousa. Parece que há um medo. Seria necessário criar parcerias informais entre o estado e os cidadãos, pagas ou não. Eu trabalhava gratuitamente.
O que mais chamou a sua atenção acerca do comportamento das autoridades frente aos paraísos fiscais?
O seguinte: diante das empresas que fazem liquidações fraudulentas de centros de produção, diante destas empresas, quando são estrangeiras, o Estado francês não se ocupa de nada, ou se age é muito pouco. Não as persegue e isto é algo completamente inaceitável. No processo, roubam-nos as patentes, a indústria, por exemplo. Além disso, colocam milhares de pessoas na rua, que perdem seus empregos. Em contrapartida, o Estado francês não faz nada para que os responsáveis por essas ações prestem contas à justiça. Isto é o mínimo que deveria ser feito.
Por isso, você diz em seu livro que os paraísos fiscais estão associados a “catástrofes sociais”.
Exatamente.
Mas, não houve ações da DGSE contra ilegalidades em seu tempo a serviço da administração?
Sim, houve. Uma informação que repassei para a DGSE fez com que a mesma chegasse a diferentes estruturas da Fazenda francesa e outras estrangeiras e assim foi possível fazer com que pagassem impostos para clientes nossos [no Mourant]. No entanto, parece-me insuficiente o desempenho da administração.
Qual foi o comportamento das autoridades fiscais que você viu, por exemplo, em relação ao Google?
Existem estruturas empresariais, como no Google, que são completamente ilegais, mas que são consideradas legais porque há servidores que dizem: “bom, é ilegal, mas ... a empresa emprega, por exemplo, 3.000 pessoas aqui”. Por isso, dentro do Estado francês também existem paraísos fiscais, algo comparável à ‘City’ em Londres. E isso é algo que precisa mudar para que haja uma verdadeira justiça fiscal.
Na França, existe um laissez-faire por meio do que se chama Cadeado de Bercy [um sistema da administração, modificado no final de 2018, que coloca nãos mãos de funcionários de altos escalões e não da justiça decisões relacionadas à perseguição da fraude fiscal]. Mas, é que há casos em que o direito internacional não é respeitado na França. A iniciativa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), com a sigla BEPS (Base erosion and profit shifting), está incluída na legislação francesa. É destinada à luta contra a evasão fiscal. A iniciativa teria que condenar a Amazon e o Google. A lei, supõe-se, proíbe o envio do faturamento para a Irlanda, entre outras coisas.
Como avalia a luta, em nível europeu, contra as fraudes que você apresenta em seu livro?
Percebo que a França não é uma exceção na Europa. Sou levado a pensar que na Espanha, Itália, Grã-Bretanha ou Alemanha acontecem as mesmas coisas.
Você mencionava o Google e a Amazon, mas, exatamente, de que empresas estamos falando quando se trata de recorrer a paraísos fiscais para fins fraudulentos?
Eu poderia lhe dar o nome de dezenas de empresas, francesas e estrangeiras, implantadas na França. Mas, sendo a difamação, de acordo com a lei francesa, não dizer coisas falsas, mas, sim, coisas que podem afetar a reputação e a honra de uma pessoa moral ou física, prefiro evitar dar nomes e as consequentes medidas legais contra mim.
Contudo, a mensagem de seu livro é clara: permite-se que as empresas recorram a paraísos fiscais, mesmo quando há informações dos serviços secretos de que há atividades ilegais.
Sim. Essas informações existem, não somente por espiões ou whistleblowers, mas também pela ação de servidores que fazem bem o seu trabalho, porque nem todos agem mal. Estou em contato com um grupo de servidores do Ministério das Finanças francês que trabalha bem. Agora, não quero colocar toda a culpa nos políticos, mas há uma grande responsabilidade dos políticos nisso. Refiro-me aos políticos que, por exemplo, na Espanha chamam de “casta”.
Pode ser violento constatar que existem aqueles que gozam de um tratamento favorável pelas autoridades, quando o restante dos cidadãos, por exemplo, pode sofrer economicamente, também por causa da pressão fiscal.
É desse jeito. Isso cria muita violência. Na França, por exemplo, apoio o movimento dos Coletes Amarelos, concretamente um grupo que luta pela justiça fiscal. Contudo, também preciso dizer que me vejo em um paradoxo: denunciar essas ações da oligarquia é uma maneira de lhes ajudar. No dia em que houver outra crise financeira, não sei se todos terão a paciência que eu tenho para fazer revelações puramente factuais. Fazendo revelações, na realidade, também estamos ajudando aqueles que vivem com a fraude a voltar para o caminho da legalidade.
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“Os paraísos fiscais servem para todos os tipos de fraude”. Entrevista com Maxim Renahy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU