06 Abril 2019
Kathleen Gallagher Elkins defende fortemente a utilidade dos estudos bíblicos feministas para examinar e transformar o pensamento patriarcal sobre as mulheres. Seu livro “Mary, Mother of Martyrs” [Maria, Mãe de Mártires, em tradução livre] é um curso de boas-vindas às pesquisas e aos textos mais recentes nesse campo, que eu aposto que a maioria dos pregadores nem sabe que existe.
O comentário é da teóloga feminista Mary E. Hunt, cofundadora e codiretora da rede Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER), com sede em Silver Spring, Maryland, Estados Unidos. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 03-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ela demonstra como os cansados tropos do autossacrifício das mulheres que reforçam a opressão e as expectativas de martírio podem ser expandidos e revigorados realisticamente à luz das vidas das mulheres contemporâneas. Em suma, o autossacrifício de toda mulher não é opressivo, e toda forma de opressão não é causada pelo autossacrifício das mulheres.
Capa do livro | Divulgação
Os estudiosos estão em dívida com Elkins por uma análise crítica densa, complicada e multifacetada, embora os leitores mais casuais também serão amplamente recompensados. Ela oferece uma revisão útil da literatura que fundamenta suas propostas criativas, perspicazes e imaginativas. A introdução se destaca como uma visão abrangente, clara e convincente do seu argumento, tornando-a facilmente acessível.
Elkins se baseia em duas abordagens marcantes para os estudos bíblicos feministas. A primeira é a insistência de Elisabeth Schüssler Fiorenza sobre “a política da interpretação”, a atenção ao modo como os textos são interpretados tanto em termos do próprio texto, quanto de como tal interpretação afeta aqueles que o leem em sua vida cotidiana. A segunda é a “reflexividade crítica”, tanto o “quê” quanto o “como” ler tais textos em seus contextos. Para defender sua tese, Elkins aproxima quatro textos familiares das Escrituras com quatro grupos de mulheres renomadas.
Seu primeiro foco é Maria, conhecida muito bem através do relato de Lucas (Lc 1-2) e a interminável pregação sobre sua vida de sofrimento e sacrifício. Maria é relacionada com as Mães da Praça de Maio (as mães dos desaparecidos na Argentina). Através das lentes da sua perda materna comum, os leitores são direcionados para um contexto muito maior. Os esforços das mulheres para encontrar e proteger seus filhos (e netos) são heroicos e curativos para a pólis, não apenas para a família. Isso aponta para uma compreensão muito mais nuançada e complexa da narrativa de Jesus: Maria pode ser vista como uma figura múltipla para uma comunidade em luta, em vez de uma mulher que cumpre o seu destino como mulher.
O próximo exemplo é a “Mulher Vestida de Sol” do Livro do Apocalipse (12, 1-17), assim como outros ícones femininos – Jezabel, Babilônia e Jerusalém – mencionados lá. Elkins se recusa a reforçar as imagens de “boa mãe” e de “mãe má” que sugiram em torno desses nomes. Em vez disso, ela sugere que “essas múltiplas imagens da maternidade que envolvem perda, ameaça, proteção e reprodução também nos permitem ver os modos como essas figuras estão sendo usadas em discursos mais amplos sobre a formação da identidade comunitária, a continuidade e o sofrimento”.
A análise ganha sentido especialmente quando as quatro mulheres do Apocalipse são justapostas às mulheres da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) em El Salvador, que lutaram como guerrilheiras no fim do século XX. Sua dor com a perda real e ameaçada de seus filhos também é contextualizada à luz de lutas maiores em suas comunidades.
Seu terceiro exemplo é a mãe dos Macabeus com seus sete filhos (2Macabeus 7, 8-18) que morrem um após o outro enquanto cumprem, com o encorajamento dela, os costumes da sua comunidade. Trata-se de casos difíceis de racionalizar e, de fato, de entender. O que se destaca é a profunda complexidade do mal em que as gerações, incluindo as mães, tiveram que fazer escolhas impossíveis.
Elkins analisa esse texto à luz dos homens-bomba israelenses e palestinos que vivem em tempos igualmente complexos. Todos eles citam suas tradições como razões para as suas ações, tradições que desafiam a compatibilidade ou mesmo a coexistência pacífica. Ao fazer isso, Elkins convida a uma reflexão profunda, não sobre a historicidade ou a moralidade de qualquer uma dessas ações, mas sim sobre o próprio mal. Interpretações baratas e fáceis desses textos e a pregação que daí resulta ignoram, por sua conta e risco, a natureza muitas vezes intratável do mal.
Finalmente, essa estudiosa capaz olha para as mães Perpétua e Felicidade, que deixam seus filhos para trás em seu próprio martírio. Elas dificilmente são modelos de mulheres responsáveis no patriarcado, mesmo no século II da Era Comum, quando os textos apareceram. Elkins admite que suas histórias não tiveram o impacto de Maria e que a fluidez de gênero de Perpétua (às vezes, ela é descrita em termos masculinos, “queerificando” o texto) acrescenta uma camada inexplicável. Elas persistem como figuras atípicas do gênero feminino, cujas razões para ações radicais, como abandonar os filhos ou serem martirizadas, convidam a um exame crítico.
Elkins as lê à luz do grupo russo Pussy Riot, cujos membros sofreram um destino semelhante nas mãos do governo de Putin. Suas detenções e prisões foram criticadas pelo fato de elas abdicarem de suas responsabilidades como mães, uma comparação adequada e assustadora. Muito mais do que “zeladoras” generificadas, as mulheres são agentes plenamente humanos de mudança social e política, que às vezes usam suas próprias vidas como garantia.
Em todos os casos, o que resplandece é a complexidade até a impossibilidade de ser mulher do modo como ela é definida pelo patriarcado. Quer seja uma virgem e mãe, ou uma mãe cujos filhos são apreendidos dela, ou uma mulher que assiste e até mesmo encoraja seus filhos a sofrer e a morrer, ou uma mulher que sofre e morre, todas as mulheres são subjugadas e compreendidas através das expectativas patriarcais e das interpretações dos textos antigos.
A moral da história é que as mulheres não podem vencer quando só perdem no patriarcado. Os textos do patriarcado, e especialmente a leitura e a reinscrição deles em tal contexto, são muito perigosos e prejudiciais. Esse livro é uma prova bem-vinda de que outros resultados são possíveis.
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Mulheres, agentes totalmente humanos de mudança social e política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU