A parábola do ateu devoto que acreditava apenas no seu Eu. Artigo de Vito Mancuso

Silvio Berlusconi. (Foto: European Parliament | Flickr CC)

14 Junho 2023

"O que exatamente infecta o berlusconismo? Vou responder logo, mas primeiro quero lembrar esta frase de Hegel: 'A filosofia é o próprio tempo apreendido em pensamentos'. Eu acho que aquilo que vale para a filosofia, aplica-se mais ainda para a economia e a política: seu sucesso depende estritamente da capacidade de saber apreender e satisfazer o desejo do próprio tempo. Berlusconi foi muito bom nisso".

O artigo é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, publicado por La Stampa, 13-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O antigo provérbio ensina: "De mort tuis nihil nisi bonum", ou seja: "De quem acaba de morrer, ou se fica calado ou se fala bem". Eu não teria escrito nada sobre Silvio Berlusconi, não tendo da minha parte muito de bom a lhe reconhecer, onde entendo "bom" no sentido radical do termo que se refere ao Bem como valor supremo que coincide com a Justiça e a Verdade (conceitos para os quais escrevo com maiúsculas para indicar sua superioridade sobre o mero interesse privado). Se, no entanto, escrevo a respeito, é para tentar focar na frase do cantor e compositor Gian Piero Alloisio, às vezes atribuída a Giorgio Gaber (cito de memória): “Não temo o Berlusconi em si, mas o Berlusconi que está em mim”. Portanto, não falarei sobre o Berlusconi em si, mas sobre o Berlusconi em nós, convencido que estou de que o que Benigni declarou vale para milhões de italianos, talvez para todos nós, que trazemos dentro de nós, alguns com alegria, outros com incômodo ou mesmo vergonha, aquela infecção que é, na minha opinião, o "berlusconismo".

O que exatamente infecta o berlusconismo? Vou responder logo, mas primeiro quero lembrar esta frase de Hegel: "A filosofia é o próprio tempo apreendido em pensamentos". Eu acho que aquilo que vale para a filosofia, aplica-se mais ainda para a economia e a política: seu sucesso depende estritamente da capacidade de saber apreender e satisfazer o desejo do próprio tempo. Berlusconi foi muito bom nisso.

Com suas antenas pessoais (funcionando bem antes de instalar em Cologno Monzese as antenas de suas emissoras) ele soube apreender o desejo profundo do nosso tempo, reconheceu a alma leve e se colocou à sua caça exercendo todas as artes de sua sorridente e persistente sedução.

Desta forma, se transformou em uma espécie de sumo sacerdote da nova religião que já há tempos havia tomado o lugar da antiga, sendo a religião de nosso tempo não mais a liturgia de Deus, mas o culto obsessivo e obcecado do Eu.

O berlusconismo representa da maneira mais esplêndida e sedutora a derrubada da antiga religião de Deus e a sua substituição pela religião do Eu. E o nosso tempo se sentiu interpretado por ele no mais alto grau, atribuindo ao fundador as maiores honras e transformando-o um dos homens mais ricos e poderosos não só da Itália.

Falei de berlusconismo como uma infecção, mas o que exatamente infecta? Não é difícil a resposta: a consciência moral. O berlusconismo representa o flagrante fim do primado da ética e o triunfo do primado do sucesso. Sucesso atestado através da certificação do aplauso e do consequente ganho imparável.

Vejam, antes, Deus podia ser entendido de várias maneiras: no sentido clássico do catolicismo e das outras religiões, no sentido socialista e comunista da sociedade futura sem classes e finalmente justa, no sentido liberal e republicano de um estado ético como, por exemplo, o estado prussiano celebrado por Hegel, no sentido da consciência individual reta e incorruptível da filosofia moral de Kant, e ainda de outras maneiras, todas compartilhando a crença de que existisse algo mais importante que o Eu, diante do qual o Eu tivesse que parar e se colocar a serviço. Desde os primórdios da humanidade, o conceito de Deus representou exatamente a emoção vital segundo a qual existe algo mais importante do que o meu Eu, do meu poder, do meu prazer (independentemente deste "algo" ser o único Deus, ou os Deuses, ou a Urbe, a Polis, o Estado, a Ciência, a Arte ou qualquer outro).

Bem, o triunfo do berlusconismo representa a derrota dessa tensão espiritual e moral. Como religião do Eu, proclama exatamente o oposto: não há nada mais importante do que Eu. Certamente não é por acaso que o partido-empresa de Berlusconi nunca teve um sucessor, e agora, morto o fundador, é provável que não tenha um bom fim.

Certamente, esta religião do Eu assume como condição imprescindível o que permite ao Eu afirmar sua primazia sobre o mundo, ou seja, o dinheiro. O dinheiro era para o berlusconismo o que a Bíblia é para o cristianismo, o Alcorão para o islamismo, a Torá para o judaísmo: o verdadeiro livro sagrado, a única Palavra sobre a qual jurar e na qual acreditar. O berlusconismo foi uma religião neopagã segundo a qual tudo se compra, porque tudo está à venda: empresas, casas, políticos, magistrados, homens, mulheres, jogadores de futebol, cardeais, corpos, palavras, almas.

Todos têm um preço, e é preciso apenas faro e dinheiro para pagar e obter os melhores para si. Quem (de acordo a doutrina do berlusconismo) não deseja ser comprado?

O berlusconismo representou tal rebaixamento do nível de indignação ética da nossa nação a ponto de coincidir com a própria morte da ética nas consciências dos italianos. Consciência que, de fato, hoje em dia está em coma, principalmente nos palácios do poder político. Mas o que significa a morte de ética? Significa o desmando da vulgaridade, termo a ser entendido não tanto como um uso de linguagem imprópria, como no sentido etimológico que se refere ao povo comum, populacho, plebe, ou seja, ao populismo como procedimento que tudo mede com base nos aplausos, como medidor de aplausos permanente que transforma os cidadãos de seres pensantes em espectadores que batem palmas. Ou seja: não é certo o que é certo, mas o que recebe mais aplausos. Aqui está a morte da ética, aqui está o triunfo do que politicamente se chama de populismo e que representa a degeneração da democracia em oclocracia (em grego antigo "demos" significa povo, "oclos" significa populacho).

Tudo isso teve e continuará a ter consequências devastadoras. Em primeiro lugar penso na imagem da Itália no exterior, que nem dez Mario Draghis conseguiriam limpar da lama e da sujeira do chamado Bunga-Bunga. Mas ainda mais grave é o estado da consciência moral dos nossos concidadãos: já éramos um país corrupto e de sonegadores, agora estamos no topo europeu; já estávamos entre os últimos em termos de índice de leitura, agora estamos no final do ranking.

Lembro-me de uma vez que estava com um empresário no autódromo de Monza para uma convenção empresarial e, talvez pela proximidade de Arcore, talvez por sabe-se lá que outro motivo, ele começou a falar-me sobre Berlusconi. Ele me disse que muitos anos atrás ele havia apontado para um grupo de pessoas que estava perto e depois se virou para ele e disse: “Na sua opinião, quantas pessoas inteligentes têm aí? 10 por cento? Bem, eu cuido do restante 90 por cento". Essa tem sido a política editorial das suas emissoras de TV que trouxeram à cena personagens tolos e ambíguos e arrasaram com a verdadeira cultura.

O berlusconismo efetivamente arrasou na mente da maioria dos italianos com o valor da cultura, reduzindo tudo a espetáculo, diversão, simpatia falsa e descaradamente superficial, sedução. A sedução deve ser entendida no sentido etimológico de se-ducere, ou seja, recondução para si mesmo de cada coisa, de acordo com aquela religião do Eu que foi o verdadeiro credo de Silvio Berlusconi e da qual não será fácil libertar e purificar a nossa "pobre pátria" (como a designava, justamente pensando no berlusconismo, Franco Battiato).

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