02 Janeiro 2023
"Se eu fosse um caso único, minha história seria interessante, mas não importante para julgar o legado de Joseph Ratzinger. Infelizmente, o meu é apenas um entre centenas de exemplos de repressão à livre investigação por repórteres e teólogos durante os papados de João Paulo e Bento XVI", escreve o jesuíta estadunidense Thomas Reese, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 31-12-2022.
Conheci Joseph Ratzinger em junho de 1994, quando ele era o cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF. Não, eu não estava sendo interrogado pelo Grande Inquisidor. Isso foi muito antes de eu ter problemas com o Vaticano como editor-chefe da revista America. Eu estava em Roma para entrevistá-lo e a outras autoridades da Igreja para o meu livro Inside the Vatican: The Politics and Organization of the Catholic Church.
Quase perdi a entrevista. O cardeal Ratzinger estava doente no dia de nosso encontro. Quando cheguei, perguntaram-me se queria falar com o secretário da congregação. Eu concordei, imaginando que era melhor do que nada. Quando fui conduzido à sua presença, não havia dito uma palavra antes que o secretário, dom Alberto Bovone, me agredisse com perguntas: "Quem é você?" "O que você está fazendo aqui?" "Eu decidirei se você pode ver o cardeal Ratzinger."
"Mas o cardeal já concordou em me receber", gaguejei. Isso não significava nada para ele; ele exigiu uma lista de perguntas que eu faria. Ele então designou um jovem dominicano para me interrogar.
Jesuítas sendo interrogados por dominicanos que trabalhavam para a Inquisição têm uma história longa e infeliz. Por outro lado, os dominicanos também vieram em nosso socorro. Quando Lorenzo Ricci, o superior geral jesuíta, morreu em 1775, depois de ter sido preso pelo papa no Castel Sant'Angelo, em Roma, o superior geral dominicano foi o único disposto a presidir seu funeral. A tradição continuou desde então.
Em todo caso, fui entregue ao dominicano, que parecia já estar do meu lado. Durante meu interrogatório por Bovone, ele estava fazendo caretas e revirando os olhos pelas costas da secretária. Em vez de me interrogar, ele me aconselhou sobre o que fazer. "Escreva uma carta ao cardeal. Explique que você está saindo no final da semana e que gostaria de se encontrar com ele por 15 minutos."
Escrevi a carta assim que voltei para o meu quarto, enviei por fax para o CDF e marquei um novo compromisso. Ratzinger concordou em se encontrar comigo à tarde, quando os escritórios do Vaticano geralmente estão fechados. A entrevista durou mais de uma hora.
Aprendi muito sobre Ratzinger antes mesmo da entrevista começar. Ele era gentil e disposto a fazer de tudo para ajudar um jovem estudioso, mesmo em um momento em que não estava se sentindo bem.
Por outro lado, ter um valentão como seu homem número 2 mostrava cegueira por parte de Ratzinger ou uma dependência doentia de pessoas que, embora leais, não eram adequadas para suas funções. Nem como prefeito nem como papa ele era bom em escolher seus subordinados.
Quando nos sentamos para a entrevista, Ratzinger perguntou se eu queria fazê-la em alemão ou italiano. Com uma voz em pânico, eu disse: "Inglês seria muito melhor." Ele concordou, dizendo "Meu inglês é muito limitado." Na verdade, foi excelente. Apenas uma vez durante a entrevista ele se esforçou para pronunciar uma palavra.
Ele me disse que a princípio estava indeciso se aceitaria o cargo de chefe da congregação. O Papa João Paulo II teve que perguntar três vezes antes de ele dizer sim.
"Dê-me tempo, Santo Padre", disse a João Paulo. "Sou um bispo diocesano; devo estar em minha diocese." Ele finalmente concordou em vir para Roma em 1982.
Em nossa entrevista, ele falou em promover um diálogo entre os teólogos e seu departamento, mas os teólogos que perderam seus empregos ou foram silenciados por ele não vivenciaram isso. Ele ficou chateado com a linguagem ofensiva dos ataques ao seu setor, mesmo que pudesse rir da situação.
(Eu deveria ter me lembrado disso anos depois, antes de me referir tolamente aos procedimentos "inquisitoriais" de sua congregação em um editorial na América.)
O que mais chamou a atenção na entrevista foi sua confissão: "Não tenho carisma para tratar problemas estruturais".
Em outras palavras, Ratzinger era, no fundo, um estudioso, não um gerente, mas se tornaria o chefe de uma organização de um bilhão de membros com uma estrutura hierárquica e uma burocracia complexa em Roma.
Em 1998, depois que meu livro foi publicado, tornei-me editor-chefe da America, uma revista publicada pela primeira vez pelos jesuítas em 1909. Meu objetivo era torná-la "uma revista para católicos pensantes e para aqueles que querem saber o que os católicos estão pensando".
Embora quase sempre cuidadoso nos editoriais para manter a linha do Vaticano, pensei que poderia publicar pontos de vista alternativos na seção de opinião da revista se insistisse que esses artigos não representam necessariamente os pontos de vista da revista. Afinal, éramos uma revista de opinião.
Durante meus sete anos como editor, o CDF publicou documentos importantes sobre os quais pedi comentários a estudiosos relevantes. Eles geralmente elogiavam as partes de que gostavam e criticavam as de que não gostavam. Eu sempre ficava feliz em publicar respostas críticas a esses artigos.
Também publiquei artigos de muitos bispos e cardeais, incluindo o então arcebispo Raymond Burke, a quem convidei para explicar por que a Igreja deveria negar a comunhão a políticos católicos pró-escolha. Pedi meia dúzia de vezes ao cardeal de Chicago Francis George, um proeminente conservador, para escrever algo para nós, mas ele sempre recusou.
Um ponto alto da revista como um fórum de diálogo foi um artigo do cardeal Walter Kasper, chefe do departamento ecumênico do Vaticano, criticando a eclesiologia do cardeal Ratzinger. Quando o artigo ia para a tipografia, enviei uma cópia a Ratzinger convidando-o a responder. A princípio ele recusou, mas depois, mudando de ideia, enviou uma resposta em alemão, que traduzimos e publicamos.
Ficamos encantados por ter dois proeminentes cardeais debatendo um assunto importante nas páginas da América, mas depois soube que o cardeal George reclamou da troca e pediu ao secretário de Estado do Vaticano que dissesse aos cardeais para não debaterem na América porque isso escandalizava os fiéis.
Apesar de minhas tentativas de ser justo, ficou claro que nem João Paulo II nem o cardeal Ratzinger queriam uma revista de opinião, a menos que refletisse suas opiniões. Depois de dois anos e meio como editor, ouvi do superior geral jesuíta, Peter-Hans Kolvenbach, que o Vaticano estava descontente com um artigo sobre AIDS e preservativos escrito pelo teólogo jesuíta James Keenan e pelo médico jesuíta Jon Fuller.
Eu ficaria feliz em publicar uma refutação de qualquer pessoa do Vaticano, mas nunca recebi nada diretamente da congregação. A congregação sempre se comunicou comigo através dos meus superiores jesuítas.
Em junho de 2001, fui informado de que a congregação considerou "agressiva e ofensiva a forma do padre Reese criticar a Santa Sé, e particularmente a congregação". Em particular, eles questionaram um editorial que publicamos sobre o devido processo na Igreja (9 de abril de 2001). Fomos acusados de ser anti-hierárquicos.
No final de fevereiro de 2002, o padre Kolvenbach disse que o CDF havia decidido impor uma comissão de censores eclesiásticos na América "a pedido dos bispos americanos e do núncio". Os censores seriam três bispos americanos.
Além de ser uma má ideia, era totalmente impraticável, já que a revista é semanal.
Em abril, recebi uma lista de artigos publicados na América que não agradavam à congregação. Eles incluíram uma resenha do livro do historiador jesuíta John O'Malley sobre Papal Sin, o artigo de Keenan e Fuller, um artigo sobre padres homossexuais do jesuíta James Martin e artigos sobre o documento da CDF, Dominus Iesus, de Francis X. Clooney, Michael A Fahey, Peter Chirico e Francis A. Sullivan.
Ratzinger parecia ter um pente fino quando se tratava de documentos que saíam de sua congregação.
Apenas dois editoriais foram mencionados – um sobre Dominus Iesus (28 de outubro de 2000) e outro sobre "a pílula do aborto", RU-486 (14 de outubro de 2000). Condenamos a droga abortiva, mas insinuamos que talvez seja hora de repensar o ensinamento da Igreja sobre controle de natalidade como forma de reduzir o número de abortos.
Curiosamente, a cobertura extensa e contundente da crise dos abusos sexuais dos Estados Unidos nunca foi mencionada pela congregação, embora eu soubesse que alguns bispos americanos não gostaram dela. Ratzinger, embora não seja perfeito, foi melhor do que qualquer outro em Roma no assunto.
Ninguém conseguiu me dizer quais bispos dos Estados Unidos haviam solicitado o conselho de censura. Eu sabia que isso nunca havia surgido em uma reunião da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos. Tampouco foi discutido no comitê administrativo da conferência dos bispos dos Estados Unidos, segundo minhas fontes, entre elas o arcebispo Thomas Kelly, que fazia parte do comitê nessa época.
Quando perguntei a dom Donald Trautman, presidente do Comitê de Doutrina dos bispos dos Estados Unidos, ele ficou furioso porque um conselho de censura foi criado sem consultar seu comitê. Ele planejava se opor vigorosamente.
Tampouco foi consultado o arcebispo americano John Foley, chefe de um dos departamentos de comunicação do Vaticano. Ele disse que, se lhe perguntassem, diria que era uma má ideia. Ele se referia a si mesmo, brincando, como a "ala esquerda da Cúria Romana".
Pedi ajuda aos arcebispos Kelly, John Quinn e Daniel Pilarczyk, mas todos eles disseram que não eram de confiança de Roma, então seu apoio não adiantaria. Quinn e Pilarczyk foram presidentes da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos e Kelly foi secretário-geral da conferência e membro da equipe da nunciatura papal em Washington.
Aproximei-me do cardeal jesuíta Avery Dulles, que achava que um conselho de censura era uma péssima ideia. Ele prometeu falar bem de mim com Ratzinger. "Você me publica", disse o cardeal muito ortodoxo.
Algum tempo antes do final de julho de 2003, Kolvenbach se encontrou com Ratzinger e conseguiu convencê-lo a não impor um conselho de censura. Kolvenbach me avisou que a congregação estaria observando para ver como a America responderia ao próximo documento do CDF sobre o casamento gay. Pedi ao editor associado James Martin, que havia escrito extensivamente sobre gays na Igreja, que não dissesse nada sobre o documento. Eu queria proteger ele e a revista. Ele concordou.
Nosso primeiro artigo sobre o assunto foi publicado em 7 de junho de 2004, pelo monsenhor Robert Sokolowski, filósofo da Universidade Católica da América, que se opunha fortemente ao sexo gay e ao casamento gay. Tive de convencê-lo a não escrever um parágrafo comparando sexo gay a sexo com animais.
Seu artigo, como era de se esperar, gerou fortes respostas, uma das quais veio de Stephen Pope, professor de teologia no Boston College. Embora eu tenha conseguido que Pope reduzisse o tom do artigo e mesmo que eu permitisse que Sokolowski respondesse a Pope na mesma edição, eu sabia que isso poderia ser o último prego em meu caixão.
Embora eu nunca tivesse opinado ou publicado sobre o assunto, estava claro que apenas permitir a discussão de algumas questões na América era mais do que Ratzinger toleraria.
Quase imediatamente após a publicação da edição de 6 de dezembro de 2004, meu superior americano ouviu reclamações do núncio papal em Washington. Ele também reclamou de um artigo sobre políticos, aborto e comunhão do deputado americano Dave Obey, a quem Burke havia negado a comunhão. Houve reconhecimento de que publicamos artigos de ambos os lados da "guerra do wafer".
À medida que 2005 avançava, o mundo se concentrou na doença e morte de João Paulo II e no conclave que elegeu Ratzinger como Papa Bento XVI. Durante esse tempo, estive ocupado trabalhando com a imprensa explicando e comentando o que estava acontecendo.
Antes do conclave, em um jantar confidencial com alguns jornalistas em Roma, perguntaram-me: "Qual seria sua reação se Ratzinger fosse eleito papa?" Eu respondi: "Como você se sentiria se Rupert Murdoch assumisse seu jornal?"
No dia da eleição de Ratzinger, eu já havia prometido aparecer no PBS Newshour. No programa, opinei sem rodeios que algumas pessoas vão gostar do resultado, outras não. Depois disso, minha resposta às indagações da imprensa foi "sem comentários", porque acreditei que sua eleição foi um desastre, mas, como jesuíta, não podia dizer isso.
Em 19 de abril de 2005, ao ouvir o anúncio da eleição de Ratzinger na Praça São Pedro, soube que meu mandato como editor da América havia terminado. Pelo bem da revista e dos jesuítas, eu tinha que ir. Além disso, depois de sete anos olhando por cima do ombro, eu estava farto.
Parei de dar entrevistas e deixei Roma.
Quando voltei para Nova York, os outros jesuítas da revista não me deixaram renunciar. Alguns dias depois, encontrei-me com meu superior, o presidente da Conferência Jesuíta, e soube que meu tempo como editor havia terminado. Só então soube que em março Ratzinger havia dito ao superior geral jesuíta que eu deveria ir. Por várias razões, eles não conseguiram me contar. Então eu pedi demissão.
Meus superiores jesuítas sempre apoiaram muito meu trabalho, mas eu sabia que, em última análise, eles não poderiam me proteger a menos que eu estivesse disposto a comprometer meus valores como editor. Eles não foram capazes de proteger numerosos teólogos jesuítas que foram disciplinados pela CDF.
Quando a notícia chegou à imprensa, fui retratado como a primeira vítima de Bento XVI; a verdade é que fui a última vítima do cardeal Ratzinger. Como eu era muito conhecido pela mídia, que frequentemente me usava como fonte, a cobertura foi extensa e negativa em relação ao novo papa.
A cobertura foi tão ruim que o Vaticano desistiu da planejada remoção do editor jesuíta da revista alemã Stimmen der Zeit. Eles o deixaram cumprir seu mandato como editor.
Se eu fosse um caso único, minha história seria interessante, mas não importante para julgar o legado de Joseph Ratzinger. Infelizmente, o meu é apenas um entre centenas de exemplos de repressão à livre investigação por repórteres e teólogos durante os papados de João Paulo II e Bento XVI.
Alguns meses antes de minha renúncia, Jacques Dupuis, um distinto teólogo disciplinado por Ratzinger, contou-nos a história de seu próprio encontro. Depois que a congregação condenou um de seus livros, o velho (e doente) teólogo preparou uma resposta de 200 páginas. Quando ele se encontrou com Ratzinger e a CDF, disse ele aos editores de America, eles o surpreenderam ao pedir sua resposta. Quando ele apontou para o documento na mesa diante deles, que havia levado meses de trabalho, eles zombaram: "Você acha que vamos ler isso, acha?" Dupuis morreu pouco depois de nosso encontro.
Se eu estava certo ou errado em minhas opiniões é irrelevante. O que importa é que depois do Concílio Vaticano II a discussão aberta foi suprimida por Ratzinger sob o papado de João Paulo II. Se você não concordasse com o Vaticano, era silenciado. No entanto, sem uma conversa aberta, a teologia não pode se desenvolver e as reformas não podem ser feitas. Sem um debate aberto, a Igreja não pode encontrar maneiras de pregar o evangelho de maneira compreensível para as pessoas do século XXI.
O papado do Papa Francisco reabriu as janelas da Igreja para permitir a brisa fresca do Espírito. A conversa e o debate são possíveis novamente, até mesmo para discordar do papa. Ao contrário de seus predecessores, Francisco não silencia seus críticos. A mudança não acontecerá com rapidez suficiente para muitos na Igreja, mas permitir que a conversa floresça é essencial para se preparar a reforma.
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Meus encontros com Joseph Ratzinger – e o Papa Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU