A ciência e a religião parecem estar em conflito apenas se você pensar em ambas como livros fechados de regras e fatos, cada uma exigindo credulidade infalível. Mas isso não é religião; é fanatismo. E isso não é ciência; é cientificismo.
O comentário é do irmão jesuíta estadunidense Guy Consolmagno, diretor do Observatório do Vaticano, em artigo publicado em America, 22-10-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na luta contra a pandemia da Covid-19, as evidências científicas a favor da vacinação são esmagadoras. Com isso em mente, muitas pessoas veem a vacinação universal como a única forma de pôr fim à pandemia, muitas vezes invocando o mantra de “seguir a ciência”. Como um slogan, ele parece ter um certo apelo, mas as evidências sugerem que a frase de efeito não tem sido particularmente eficaz no aumento das taxas de vacinação. Afinal, uma significativa parcela da população ainda se recusa a se vacinar e, de fato, é cética em relação à ciência.
Eu sou diretor do Observatório do Vaticano. Isso significa que sou um cientista e também um funcionário da Igreja Católica. Estou muito familiarizado com a autoridade científica e clerical. E, embora seja totalmente favorável à vacinação, eu também fico perturbado com a frase: “Siga a ciência”. Ela implica que a autoridade da ciência é infalível.
Mas, é claro, a ciência não é infalível. Sim, a vacina previne a doença para a grande maioria das pessoas que a recebem e, mesmo em casos disruptivos, ela reduz a gravidade da doença. Mas as vacinas não são perfeitas. As pessoas totalmente vacinadas podem pegar, e pegam, a Covid – às vezes com efeitos graves, mesmo que isso ocorra raramente. Para os céticos da vacina, o fato de que tais falhas ocorram sugere não apenas que a vacina não é perfeita, mas também dá crédito ao seu medo de que “seguir a ciência” cegamente pode ser perigoso.
Por mais que odiemos admitir, esse medo da confiança cega na ciência contém um elemento de verdade. Às vezes, “a ciência” está errada. Sou cientista e posso citar um certo número de artigos que eu escrevi que se revelaram embaraçosamente incorretos. Mais ainda, há momentos na nossa história em que “a ciência” – ou pelo menos o modo como ela é apresentada ao público em geral – revelou-se não apenas imperfeita, mas também terrivelmente errada.
Todos os popularizadores da ciência do fim do século XIX e início do século XX – pessoas como H. G. Wells, Alexander Graham Bell e o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Oliver Wendell Holmes – promoveram a ideia da eugenia. Eles insistiam que poderíamos aperfeiçoar a raça humana eliminando pessoas supostamente “inferiores”. Era uma ideia tão evidente para essas figuras que qualquer pessoa (incluindo a Igreja) que se opusesse a ela por motivos morais era vista como perigosamente atrasada.
Como resultado da aceitação popular da eugenia, estima-se que 70.000 mulheres, a maioria de minorias, foram esterilizadas à força nos Estados Unidos durante o século XX. Tais programas continuaram até os anos 1970. E, é claro, essa também era a lógica dos campos de extermínio nazistas.
Visto que a ciência popular estava tão errada nesse caso, isso significa logicamente que nunca se deve confiar na ciência? Obviamente não. Por um lado, a ciência acabou acertando; de fato, a eugenia havia sido desacreditada há muito tempo nos círculos científicos, décadas antes que a “moda” das esterilizações forçadas fosse finalmente interrompida (é claro, mesmo que o argumento científico fosse verdadeiro, a esterilização forçada ainda seria imoral). Pode-se argumentar que os vilões nessa trágica situação foram os popularizadores, que sucumbiram à tentação de promover visões simplificadas demais dessa questão científica. Mas isso não desculpa os cientistas que erraram, em primeiro lugar.
É algo mais profundo do que isso. A luta por “seguir a ciência”, na realidade, é uma luta pela confiabilidade da autoridade em geral. Afinal de contas, tanto os que promovem a ciência quanto os que a desdenham procuram a certeza em um universo incerto. É uma intolerância quase calvinista ao erro; o mundo é preto ou branco, e “o fracasso não é uma opção”. “Se ao menos pudéssemos ter certeza”, dizemos a nós mesmos, “se ao menos pudéssemos não ter dúvida...”
A ironia é que a própria ciência, na verdade, é um processo baseado na dúvida, no erro e na aprendizagem de como analisar esse erro. Na ciência, é fundamental saber que você não sabe todas as respostas: é isso que leva você a trabalhar para aprender mais e para não ficar satisfeito com o que você já sabe.
Infelizmente, porém, não é assim que ensinamos a ciência. Nos cursos introdutórios, pelo menos – e quantas pessoas já passaram pelos cursos introdutórios? –, o “sucesso” na aula de ciências significa obter a mesma resposta que você encontra no fim do livro. É verdade que resolver esses problemas repetitivos na ciência provavelmente seja a forma mais rápida de mergulhar o aluno em uma sensação de como é praticar a ciência com sucesso. Da mesma forma, você deve aprender a tocar as escalas antes de começar a tocar a música. Mas as escalas não são a música, e obter as “respostas” não é ciência.
Você só se torna um cientista quando é capaz de olhar para algo que achava que entendia e dizer: “Hmm, isso não está certo”. Enquanto você não conseguir fazer isso, você nem saberá como começar a procurar o que deu errado.
Na ciência, o fracasso não é uma opção; é um requisito.
A dúvida desempenha um papel paralelo ao da fé. A escritora Anne Lamott resumiu isso perfeitamente quando disse que o “oposto da fé não é a dúvida; o oposto da fé é a certeza”. Não é apenas que, se não tivéssemos dúvidas, não precisaríamos da fé. Isso também significa que a dúvida é o motor essencial que nos mantém à procura de Deus e não nos deixa ficar satisfeitos com apenas aceitar ou rejeitar, o tipo de coisas que aprendemos quando somos crianças – como na ciência.
Aceitar a dúvida, aceitar a inevitabilidade do erro também significa aceitar uma tolerância para com as outras pessoas, mesmo quando elas estão erradas. Eu ainda gosto das histórias de H. G. Wells, eu ainda admiro muito o que Oliver Wendell Holmes fez como juiz principal e ainda uso o telefone de Alexander Graham Bell, embora abomine as opiniões dessas pessoas sobre a eugenia. Posso aceitar que os heróis às vezes também são pecadores, até mesmo pecadores graves.
A ciência e a religião parecem estar em conflito apenas se você pensar em ambas como livros fechados de regras e fatos, cada uma exigindo credulidade infalível. Mas isso não é religião; é fanatismo. E isso não é ciência; é cientificismo.
A ciência não lhe dá a verdade perfeita. Mas pode lhe dizer as probabilidades. Confiamos na vacina porque ela melhora muito as suas chances de não ficar doente (o problema, é claro, é que a maioria de nós não consegue entender como as probabilidades funcionam, e é por isso que os cassinos e as loterias têm tanto sucesso).
Há uma ironia a mais, é claro, vista em uma parte da multidão de céticos da vacina. Logo depois de anunciarem que são muito espertos para serem enganados pelos especialistas, eles começaram a se automedicar com uma droga totalmente inapropriada e perigosa sobre a qual ouviram falar na internet. As mesmas pessoas que nos impelem a não sermos “gado” estão no minuto seguinte tentando curar a Covid tomando remédios destinados para bois.
Por que alguém confiaria suas vidas a algum site aleatório que encontraram na internet? Por que rejeitaríamos a religião em favor de uma filosofia que podemos ler em uma camiseta ou em um adesivo de carro? Devemos reconhecer a tentação. É o fascínio do gnosticismo, um desejo de adotar o “conhecimento secreto”. É um desejo que existe desde os Padres da Igreja nos séculos II e III e, de fato, desde que os antigos gregos realizavam ritos esotéricos.
Mas, ao invés de acumularmos desprezo sobre as pessoas que são vítimas desse desejo, talvez devamos olhar onde erramos na forma como ensinamos a nossa ciência e a nossa religião. Se promovermos a ideia de “seguir a ciência”, com a suposição de que os cientistas merecem ser seguidos porque são mais espertos do que você, não estamos apenas alimentando uma falácia perigosa?
Se o seu senso de autoestima vem do fato de pensar que você é mais inteligente do que o cidadão comum, que você é a pessoa mais inteligente da sala, então surge uma grande tentação de nunca concordar com o consenso da maioria – de nunca ser “gado”. Se você é mais inteligente do que todo mundo, então provavelmente você deve saber algo que ninguém mais sabe. E, se as suas crenças têm um alto custo – por exemplo, por causa do desprezo que você suporta por sustentá-las –, então você se torna tão envolvido na sua postura peculiar que nunca consegue admitir que estava errado.
Desse modo, eu acho que chegamos à raiz do problema: a identificação da inteligência ou da esperteza como um critério de superioridade. Certamente, a história da Igreja deveria nos dizer o contrário, se apenas estivéssemos prestando atenção. Havia muitos teólogos eruditos no século XIX, a maioria deles brigando uns contra os outros; quase todos eles estão esquecidos há muito tempo na história da Igreja. Em vez disso, os santos daquela época eram pessoas como Bernadette; Francisco de Sales; e Teresa de Lisieux, a “Pequena Flor”. Pessoas simples que não se preocupavam tanto em marcar pontos teológicos, mas sim em experimentar Deus.
Tentar entender o universo, da astronomia à medicina, só é possível quando é uma resposta ao amor. Isso depende de amar o que não é amável; de confiar mesmo quando a confiança é incerta; de estar disposto a perdoar e a aprender até mesmo com aqueles que erraram no passado; de conviver com a incerteza, mesmo quando aprendemos a confiar.
Afinal, a única coisa certa na vida é o amor e a misericórdia de Deus – e a nossa necessidade de ambos.