26 Agosto 2021
“Anos duros nos aguardam, com colapsos sanitários e ambientais, mediação digital de cada ação humana e, talvez, viagens ao espaço. Iremos precisar de mais do que duas vacinas. Não forneçamos esse direito aos colonialistas do corpo, nem aos talibãs da natureza”, escreve Alejandro Galliano, professor da Universidade de Buenos Aires e colaborador das revistas Crisis, La Vanguardia e Panamá, publicado por El Diario, 21-08-2021. A tradução é do Cepat.
A imagem, já quase um meme, do comando talibã no escritório presidencial afegão nos ilustrou como esses dias estão sendo difíceis para o imperialismo. E a velha analogia com o Vietnã nos lembrou que os problemas começaram há tempo. É verdade que nesse meio houve algumas vitórias (a primeira guerra do Iraque, a épica invasão de Granada), mas não suficientes para compensar o retrogosto do fim do século americano.
Deixo para os jornalistas e especialistas da geopolítica a análise tática e estratégica. Aqui, prefiro me dedicar a um problema mais abstrato: para onde vai o capital, quando o mundo acaba para ele. E arriscar uma resposta: para dentro de nós.
A humanidade sempre precisa de mais espaço. Assim saímos da África e assim chegamos à América. Nesse meio tempo, os impérios cresceram até arrebentar ou desinflar. Mas com o capitalismo a expansão não é mais um desejo, nem uma necessidade, é um dado.
O trabalho cria mercadorias, as mercadorias se transformam em lucro, o lucro se acumula como capital, o capital é investido na produção de mais mercadorias. Ninguém é o culpado, todos fazem o que se espera deles, mas, no final, os mercados se esgotam e os recursos naturais também.
A pressão centrífuga para sair em sua busca espalhou as pessoas brancas por todos os cantos do globo. Até que o planeta também acabou. Os historiadores do sistema-mundo explicam essas crises com a sucessão de potências: Gênova, primeiro; Holanda, depois; depois Inglaterra, os Estados Unidos ainda hoje; amanhã talvez a China.
O centro se move, mas o planeta não se expande: a escassez de recursos permanece aí. As tentativas de Elon Musk e Richard Branson em colonizar o espaço levarão mais tempo do que dispomos. A solução está aqui.
Henri Lefebvre foi um desses marxistas do pós-guerra tão marxista que ficou fora da Universidade, do Partido Comunista e até da Internacional Situacionista. Testemunha da descolonização, perguntou-se para onde iria o capital metropolitano quando os territórios ultramarinos se tornassem independentes. A resposta foi: para a nossa vida cotidiana.
Entre 1947 e 1968, dedicou-se a estudar a colonização da rotina doméstica, do tempo, do lazer, do consumo e da imaginação. Assim abriu o caminho para uma abordagem que hoje já faz parte de certo senso comum crítico (não é um oximoro, lamentavelmente): Umberto Eco e Roland Barthes analisando quadrinhos e propagandas de detergente, Dorfman e Mattelart lendo o Pato Donald, Michel de Certeau buscando resistência no consumo, e centenas de trabalhos acadêmicos estudando como a televisão, as redes sociais ou a data science conquistam, manipulam e comercializam nossa sensibilidade.
Não se trata mais da ideologia dominante, nem mesmo da alienação, é a expansão intersticial do capital nos recantos mais inacessíveis de nossas vidas, a colonização das almas. Um processo que levou muitos a pensar que o capitalismo não é mais algo externo a nós e que talvez não reste mais nada externo ao capitalismo. Mas ainda resta um interstício: o corpo.
Entre todas as lembranças inúteis e anódinas provocadas em mim pela quarentena (e os quarenta anos), a mais inútil e anódina é a de Me gusta ser mujer, um programa new age de Nacha Guevara, no ATC menemista, em que no início a apresentadora escrevia seu lema com batom em um espelho: “Meu corpo é meu templo”. Nada novo: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1 Coríntios 3,16). Santo Ambrósio de Milão chamava o ventre de Maria de aula pudoris: o útero como um palácio inexpugnável de pureza.
Apesar dos marca-passos, da cirurgia estética, das leituras de Foucault e dos mil e um comprimidos que tomamos para alguma coisa, a percepção do corpo como instância inviolável demorou para cair. Em Contra natura. Sobre la idea de crear seres humanos (Turner, 2012), Philip Ball repassa as polêmicas e rejeições que foram despertadas, em seu momento, pelas práticas como a clonagem ou a fertilização in vitro, sempre tendo como advertência a fatídica figura do Dr. Frankenstein.
No entanto, o templo foi profanado. “A próxima fronteira está dentro de nós”, disse às portas do milênio Michael Goldblatt, diretor da Agência de Projetos de Pesquisa Avançados do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. As big techs tornam públicos seus projetos para reverter a velhice ou intervir no córtex cerebral. A pandemia acelera essa expansão: de campanhas de vacinação com vacinas recém-testadas a dispositivos biopolíticos de todos os tipos (aplicativos de rastreamento, passaportes sanitários).
Sinal dos tempos, em 2018, He Jiankui foi repelido e preso por anunciar a edição genética de duas gêmeas com técnicas CRISPR. No ano passado, Jennifer Doudna, promotora da edição genética humana, recebeu o prêmio Nobel pelo... desenvolvimento da técnica CRISPR.
Como enfrentar essa colonização final, a do corpo humano? O Talibã da resistência naturalista são pessoas como Leon Kass ou Francis Fukuyama, que dizem que nosso corpo é um dom natural e moral que não devemos alterar. Aula pudoris.
É verdade que comoditizar o corpo humano levaria para o plano biológico desigualdades que no momento são “apenas” sociais. Quem pode pagar um chip para melhorar seu desempenho cerebral e quem precisa se oferecer como cobaia? Toda aventura humana tem seus belgas e seus congoleses.
Seria um erro pensar que a crise socioeconômica regional e a disputa entre a China e os Estados Unidos nos deixam fora desses experimentos, quando, ao contrário, nos cotam com algum grau de periferia. As tecnologias sempre chegam, pela porta da frente ou pela de serviço.
Contudo, é inegável que há tempo nossas entranhas são mais políticas do que naturais. Séculos de tecnologia e democracia desativaram cada mecanismo de seleção natural humana. Os fracos sobrevivem, os velhos vivem mais. Choramos a morte de um roqueiro de mais de 60 anos, quando há um século teria tido a sorte de chegar aos 50.
“A civilização avança ampliando o número de operações importantes que podemos fazer sem a necessidade de pensar”, disse Alfred N. Whitehead. Cada progresso civilizatório nos tornou mais inúteis, nossas capacidades de sobrevivência sem um ambiente tecnológico e institucional estão mais atrofiadas que a de um obeso gato chartreux em deixar a cadeira e voltar para o mato. E não é um problema da vida burguesa: um indigente, hoje, está mais preparado para procurar comida no lixo do que para caçar um pombo.
Já não podemos confiar em que nosso corpo evolua naturalmente, devemos ajudá-lo. É parte de nossas tarefas técnicas e políticas. E de nossos conflitos. Se há algum mérito para os novos movimentos de minorias sexuais, é o de ter destripado o corpo humano e colocado suas vísceras sobre a mesa política: zigotos, células-mãe, genitais, etc., são questões a ser debatidas como se debatem leis ou taxas de juros. O corpo não é mais um templo, mas uma assembleia.
Como americanos, sabemos que o colonialismo se combate com suas armas. E que, apesar de recuperar a independência, nunca mais seremos os de antes da conquista. No último século, foram muitos os que entenderam que intervir no corpo humano poderia ser uma missão emancipatória. De John D. Bernal, Julian Huxley e os cosmistas russos, no início do século XX, a Paul B. Preciado, Rosi Braidotti e o xenofeminismo, no início do século XXI.
Anos duros nos aguardam, com colapsos sanitários e ambientais, mediação digital de cada ação humana e, talvez, viagens ao espaço. Iremos precisar de mais do que duas vacinas. Não forneçamos esse direito aos colonialistas do corpo, nem aos talibãs da natureza.
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A próxima fronteira está dentro de nós. Artigo de Alejandro Galliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU