20 Abril 2021
Pensar a história e as evoluções do liberalismo e, ao mesmo tempo, se inscrever na ação coletiva concreta não são dois aspectos frequentemente articulados. A filósofa francesa Barbara Stiegler os incorpora em uma obra nutrida na ação, cujo desenvolvimento teórico se refletiu, depois, em dois livros que rapidamente a levaram a ser reconhecida.
O último, Du Cap aux grèves, é a crônica reflexiva do movimento dos coletes amarelos deflagrado na França, entre 2018 e 2019, do qual Barbara Stiegler participou de corpo e alma. O título remete a uma situação que explodiu em quase todo o planeta quando os movimentos sociais impugnaram de forma inédita e globalizada a monarquia neoliberal. O rumo que a revolução neoliberal havia fixado às sociedades humanas deixou de ser a única alternativa. O mundo disse um basta categórico a esse rumo, cujo credo foi, desde sempre, “é preciso se adaptar”. Por força da adaptação a um modelo destrutivo, os indivíduos deixaram de ser eles mesmos e perderam a noção de emancipação.
Argentina, Equador, Chile, Argélia, Hong Kong, Iraque e França se levantaram contra essa ditadura da adaptabilidade que tinha feito da condição humana um cordeiro nas mãos de quem punia os que se recusavam a se adaptar. Du Cap aux grèves completa o primeiro livro da autora, publicado em 2019: Il faut s’adapter.
Esse ensaio é uma vertiginosa viagem da matriz do modelo neoliberal às margens do fracasso de seu padrão evolucionista, cujo limite não foi precisamente uma ideologia oposta, mas a crise ambiental.
Fluxos de capitais, fluxos de informação, fluxos de mercadorias e globalizam colidem, diz a autora, contra os muros de sua própria impossibilidade, contra a destruição do planeta e o cansaço dos seres humanos. Muitos analistas viram nesse livro a explicação ao movimento dos coletes amarelos. Pela primeira vez, uma autora radiografava de forma original a identidade dessa crise, cujas origens estavam enraizadas há muito tempo.
Além disso, em Il faut s’adapter, Barbara Stiegler acentuava outro dos componentes do ultraliberalismo: a forma como até mesmo os governos de esquerda abraçaram e implementaram esse modelo acreditando, às vezes, que o estavam combatendo. A autora demonstra como foi criada uma espécie de confusão muito útil em torno da definição do que era, de fato, o projeto ultraliberal.
Nas duas obras, Stiegler também assume um imperativo: transformar o mundo a partir da ação coletiva e não ficar na torre de marfim da teoria ou das grandes ideias. Trata-se, diz a filósofa francesa, de criar uma rede de resistência a partir da ação imediata, no lugar onde vivemos e trabalhamos.
Nos dois ensaios e muito antes da pandemia, Barbara Stiegler destinou sua experiência aos hospitais, onde trabalhou junto a médicos e enfermeiros para interpretar a barbárie liberal a partir daí.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 19-04-2021. A tradução é do Cepat.
Seu último livro está escrito com a experiência da rua, no calor das multidões em rebelião e os gases lacrimogêneos das manifestações. Entre os dois termos do título, rumo e greves, está concentrada a história dos últimos 40 anos.
O rumo que descrevo é o rumo imposto pela revolução neoliberal que se impôs em quase todo o mundo, há quase 50 anos, e cuja história remonta a um século atrás. Esse rumo é a adaptação de todas as sociedades à globalização, a um mundo no qual não há mais fronteiras e onde os ritmos se aceleram. Esse rumo foi seguido por muitas sociedades e é verdade que, há alguns anos, existem movimentos sociais por todas as partes que demonstram que existe uma rejeição em continuá-lo.
Neste contexto, surgem as greves, ou seja, essa ideia de deixar de trabalhar segundo as modalidades obrigatórias que nos impõem e, a partir daí, repensar a nossa relação com o trabalho, com as interações sociais. Basta pararmos, inicia-se um trabalho de reflexão, de reelaboração do sentido.
Hoje, trata-se de saber se este movimento de greves acabou por causa da pandemia. Acredito que estamos congelados. Estávamos em plena ação, em plena efervescência e nos vimos brutalmente congelados. Se observarmos rapidamente, teremos a impressão de que nos submetemos, de que renunciamos. Mas isso, apenas quando se olha a situação de fora.
Quando falamos com as pessoas, percebemos que estão mais irritadas do que antes. A grande pergunta que os governos se fazem hoje consiste em saber o que acontecerá quando as manifestações de rua, os festivais, os cafés e toda a vida social recomeçarem. Acredito que, ao menos na França, o poder teme esse momento.
Ao final, as duas coisas congelaram: a raiva globalizada e a marcha do liberalismo.
Sim, isso mesmo. Há uma forma da globalização que se viu congelada. Mas isso não quer dizer que tudo acabou. Os partidários da globalização continuarão defendendo-a e desenvolvendo-a, ao passo que seus adversários continuarão se opondo a ela. Acredito que este momento de congelamento pode quintuplicar os conflitos.
Você transitou do ofício universitário às ruas e aos protestos sociais, com o movimento dos coletes amarelos. Que lição essa experiência deixou para você?
Permitiu-me entender uma forma de ação e transferi-la para lugares estratégicos do meu ambiente, à universidade, ao hospital, ao liceu. Mostrou-me que em todas as classes sociais mobilizadas, sejam estudantes, professores ou coletes amarelos, havia a necessidade de reconstituir as questões democráticas. O que é uma ágora, quem deve falar, como? Tudo isso tinha que ser construído.
Há algo terrível em nossas profissões, nos especialistas, professores e universitários. Muitos estão imersos em uma atividade intelectual intensa, mas quando os vemos atuar no trabalho, não existe conexão com o que fazem. Muitos colegas denunciam o neoliberalismo, apresentam-se como adversários teóricos, mas acabam aplicando dispositivos neoliberais no mundo da educação sem que isso lhes sugira qualquer problema. E sem reflexão, em uma espécie de ação mecânica.
Há uma espécie de desprezo pelo lugar de trabalho, pela interação prática. Acredito que as coisas seriam muito melhores se os professores, os profissionais dos hospitais, se definissem como trabalhadores e pensassem um pouco mais em seus atos.
Você destacou uma das grandes perversões do liberalismo, essa espécie de ordem permanente: é preciso se adaptar.
Com esse pensamento, perdemos a expressão da identidade e a capacidade de emancipação. Passamos muito tempo nos adaptando, aceitando as inclinações da normalização. Isso destrói a relação emancipada e impede a reafirmação do indivíduo. A ideia de adaptação nos colonizou. Construiu-se uma espécie de hegemonia cultural silenciosa. É uma herança do século XIX, que provém da transferência das ideias de Darwin ao campo social e político.
É um pensamento oriundo dos Estados Unidos, que recupera a ideia de que a nossa espécie está mal adaptada à globalização e que é preciso se readaptar a ela por meio de amplas políticas públicas em campos como o da educação, a saúde e as políticas sociais, para instaurar a igualdade de possibilidades, a concorrência em todos os níveis da sociedade. Em suma, trata-se de uma revolução social e política que, nos bastidores, esconde um princípio biológico quando fala em adaptação, de seleção, de mutação e de evolução.
Em seu ensaio, destaca que pensamento está impregnado por um relato que argumenta que a espécie humana está sempre atrasada. Seria essa a matriz do neoliberalismo?
Sim, esse pensamento inclui uma ampla reflexão sobre a inadaptação. A tese do teórico norte-americano que inspirou os novos liberais e que lançou a corrente neoliberal, Walter Lippmann, sustenta que a espécie humana se adaptou ao longo de um extenso período a um mundo relativamente estável e fechado. Lippmann disse que o sentido da história, sua missão quase revolucionária, é a globalização do mundo, a divisão do trabalho com um capitalismo totalmente globalizado, e que, nesse movimento, a espécie humana não está à altura desse porvir.
Por conseguinte, é preciso transformá-la, por meio de políticas públicas muito ambiciosas, a fim de readaptá-la em todos os níveis: afetivo, cultural, emocional, cognitivo. Trata-se, então, de um empreendimento de readaptação integral da espécie humana por meio de uma agenda, de um programa revolucionário.
Ressalta que, durante muito tempo, houve dificuldades em definir o que é o neoliberalismo. Demorou-se muito para compreender sua mecânica?
Absolutamente! Foi dito que era uma teoria econômica que propunha o menor Estado possível. Foi uma confusão permanente. De fato, nos anos 1930, o neoliberalismo partiu da evidência de que, com a experiência da crise de 1929, o capitalismo sem regulamentação não poderia se salvar sozinho, que não era possível confiar nas interações espontâneas das sociedades humanas, pois os seres humanos eram inadaptados.
Consequentemente, era necessário reassumir a ação do Estado, com um Estado mais forte e, eventualmente, autoritário, cuja primeira missão consistia em fabricar o consentimento. Lippmann falava em “manufatura do consentimento”. Esse plano passa por um conjunto de políticas culturais e educacionais.
Percebemos aqui que tudo isso não tem nada a ver com a imagem do neoliberalismo, com a ideia de deixar que tudo seja livre. Isto é muito grave, pois não ter visto isso, manter-se nessa confusão, permitiu que partidos que se identificavam com a esquerda realizassem políticas neoliberais, sem percebermos. Na Europa, muitos partidos de esquerda romperam com a esquerda, com o socialismo, e acabaram aplicando programas de ajuste e adaptação à globalização.
E como fizeram isso por meio de políticas públicas que exigiam uma espécie de igualdade de possibilidades e uma regulamentação leal às regras, acreditaram que assim lutavam contra o neoliberalismo. Na realidade, esse era o próprio conteúdo da política neoliberal. Dessa forma, muitos partidos de governo que se consideravam de esquerda aplicaram uma política neoliberal de forma contínua, desde os anos 1980.
Foi esse o grande fracasso da esquerda, não ter captado a realidade de seu inimigo ou, talvez, querer imitá-lo?
Sim. E é aqui que podemos falar de colonização ou de hegemonia cultural. O neoliberalismo é uma nova direita, uma direita a serviço da globalização econômica. Essa nova direita invadiu todas as mentes e se tornou hegemônica.
Essa ideia neoliberal deixou a humanidade praticamente sem um lugar para respirar livremente.
Toda a ordem gira em torno dessa ideia asfixiante. Não obstante, há uma novidade que surgiu a partir da guinada dos anos 2000: o neoliberalismo, que carecia de oposição e que havia se infiltrado em todas as partes por uma espécie de capilaridade, de mimetismo, essa hegemonia liberal que foi construída ao longo de um século, começou a ser questionada com base na crise ambiental e os estragos consideráveis desse modelo capitalista globalizado.
O neoliberalismo começou a mostrar que era uma coisa impossível. Colidimos contra os limites insuperáveis da globalização e percebemos que seus custos são consideráveis. Por esta razão, a hegemonia neoliberal se vê profundamente questionada. E isso é novo.
Estamos em um momento cambaleante da história humana. Como vê a emancipação futura de nossas sociedades? Quais formas a ação coletiva poderá assumir?
Não posso antecipar o futuro, nem ter uma visão global. O que posso dizer é o que estou fazendo agora, durante esta crise sanitária, e o que continuarei fazendo no futuro. Acredito que é fundamental que aqueles que almejam assumir o conflito e participar na resistência se perguntem onde estão, em que lugar vivem, onde trabalham e onde estão suas vidas.
Eu vivia no campo, mas acabei compreendendo que minha vida está em Bordeaux. Mesmo que não seja fácil, quando conseguimos nos colocar de algum lado, já temos um ponto, podemos dizer “este é o meu lugar, aqui está o meu trabalho, isto é o que eu faço”. Somente a partir desse marco particular é que é possível construir uma luta. A partir do lugar em que estamos e das funções sociais que ocupamos. Mesmo se não temos trabalho, também ocupamos uma função, porque podemos ser pais ou desempregados. Acredito que a partir de uma plataforma pessoal como esta é necessário e lógico constituir uma rede de resistência.
Na história, as pessoas nunca construíram um programa para depois agir. Primeiro, observaram o que havia ao redor, para depois tentar algo. Tentaram salvar o essencial construindo uma oposição diante de um poder esmagador. Busco agir assim. Gosto muito da lógica da rede porque nos permite construir uma ação coletiva. É assim que se constrói um programa ou um pensamento político: na precisão do concreto.
É uma das poucas pensadoras que pensou o mundo a partir de um hospital, e esse lugar se tornou central com base na pandemia.
Trabalhei muito com os profissionais do setor da saúde, com médicos e enfermeiros. Meu pensamento político se alimentou de seu combate, do que vivem e atravessam. O que vemos hoje na saúde não é a privatização, não é um Estado que vende o hospital, ao contrário, é um Estado que conserva o hospital e o controla, ao mesmo tempo em que busca transformar o sentido. É uma gestão assumida pelo Estado que transforma os ofícios dos profissionais. As enfermeiras se tornaram administradoras que devem cumprir toda uma série de objetivos. São ofícios que suscitam muita vocação, mas essa vocação está destruída por uma visão da saúde oposta à vocação.
O mesmo aconteceu no ensino. As reformas neoliberais induzem os professores a fazer o contrário daquilo que sua vocação apontava. Essas instituições republicanas foram destruídas por dentro pelo próprio Estado ou por aqueles que se apropriaram do Estado para lhe mudar o sentido. E é justamente aí, nos restaurantes, nos bares, nos meios operários, onde é preciso construir a resistência, nossa própria resistência ligada a outras. A meta consiste em ter uma visão coletiva do que somos.
Seu pensamento tende a definir a pandemia como uma sindemia, ou seja, a soma de vários males.
No início, pensei que se tratava apenas de uma pandemia, mas depois vi que era algo muito mais complicado, que era uma epidemia muito difícil de controlar e que em nada era um acontecimento aleatório. Nisto, concordo com o editor-chefe da revista The Lancet, Richard Horton, para quem esta epidemia apenas revela os problemas estruturais de nossas sociedades fundadas sobre a concorrência e nas quais nossos modos de vida se degradaram, o que leva, além disso, a um aumento considerável das doenças crônicas. Isso permite ler a pandemia e o pânico que se espalhou no mundo todo como um revelador de patologias anteriores, patologias sociais, patologias ambientais. Em suma, todas as causas sociais e políticas atravessam a pandemia.
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“A ideia de adaptação nos colonizou”. Entrevista com Barbara Stiegler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU