Imobilização do CadÚnico visa à desregulamentação dos programas sociais existentes. Entrevista especial com Denise De Sordi

"Mais que uma simples plataforma de cadastro de dados, o CadÚnico é uma base informacional crucial para o funcionamento dos programas sociais brasileiros", afirma a pesquisadora

Desigualdade | Foto: Camila Perisse - Agência IBGE

Por: João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin | 24 Março 2021

 

A proposta do Ministério da Cidadania de priorizar o autocadastramento dos beneficiários do Cadastro Único para Programas Sociais - CadÚnico por meio de um aplicativo de celular, como foi feito o cadastramento daqueles que receberam o Auxílio Emergencial no ano passado, impactará todos os programas sociais do país, porque irá "imobilizar o CadÚnico". Segundo Denise De Sordi, doutora em História Social e autora da tese de doutorado "Reformas nos Programas Sociais brasileiros: Solidariedade, Pobreza e Controle Social (1990-2014)" (2019), "o CadÚnico é o instrumento instituído para organizar o acesso à rede de proteção social de forma focalizada para parcelas da população empobrecida. A utilização do CadÚnico mantém não só a credibilidade da transferência condicionada de renda, mas permite mapear se a distribuição dessa transferência está permitindo que os objetivos de programas como o Bolsa Família sejam atingidos".



Segundo ela, a proposta do governo federal integra "as sucessivas ações empreendidas sob o argumento de 'enxugar o gasto social'", que visa à "desregulamentação dos programas sociais existentes".



Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Denise diz que desde 2003 o CadÚnico "se tornou um dos pilares dos programas sociais no país". Somente em relação ao Bolsa Família, explica, por meio do CadÚnico "há ainda o repasse de verbas aos municípios por meio do Índice de Gestão Descentralizada - IGD, que mede a qualidade de gestão do programa e permite o desenvolvimento de ações de assistência social complementares em nível municipal. O cadastramento das famílias no CadÚnico é ainda responsável por mobilizar e direcionar as ações da rede dos postos de atendimento dos Centros de Referência da Assistência Social - Cras e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - Creas".

 

Denise de Sordi (Foto: Arquivo pessoal)

Denise De Sordi é historiadora, doutora em História Social pelo PPGHI/UFU. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais - GPEPS/CNPq/UFU, investigadora do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho - OCTV, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como a senhora analisa programas de distribuição de renda como o Bolsa Família? Quais suas potencialidades e fragilidades?

Denise De Sordi - Se observamos o desenvolvimento de reformas nos programas sociais brasileiros desde o início da década de 1990, é possível afirmar que o Programa Bolsa Família, de fato, sedimentou um significado para o desenvolvimento social no Brasil que tende a orientar até mesmo as perspectivas em debate atualmente.

A implementação, formato e objetivos do Bolsa Família conseguiram, com engenhosidade, unir as dimensões do consumo e do aquecimento econômico interno e, principalmente, redefinir a perspectiva de desenvolvimento social pela chave de leitura do desenvolvimento individual – definido pela intervenção do programa nos núcleos das famílias atendidas.

Cabe pontuar que quando o Bolsa Família foi implementado havia outras possibilidades que poderiam ter orientado o formato dos programas sociais no país. Entretanto, devido a uma série de questões que incluem desde a necessidade de construção de certa coesão política e social e também a atenção à pressão do setor econômico, o Bolsa Família foi a opção política feita.

O que a análise do substrato político que informou a escolha por esta opção permite evidenciar, é que o Bolsa Família, de certa forma, representa a síntese de um processo histórico de mudanças nas características de nosso tecido social que abriram espaço para a implementação, desde o início dos anos 1990, de políticas sociais orientadas pela minoração da pobreza. Ou seja, pelo convencimento social acerca da necessidade de aceitação de condições imediatas de alívio material, em um contexto demarcado pelos efeitos dos ajustes macroeconômicos; pelo aumento do desemprego e pela piora das condições materiais de vida da população trabalhadora.

 

 

Programas sociais de atendimento universal x Programas focalizados

Ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, há, portanto, uma permanente tensão entre propostas por programas sociais de atendimento universal à população e a definição de programas focalizados, para o atendimento de parcelas da população empobrecida.

Esta tensão pode ser percebida, em resumo, quando se analisa o desenvolvimento de ações que intencionavam dialogar com as demandas da sociedade e ao mesmo tempo organizá-las como políticas de governo. Dentre estas ações pode-se destacar a Campanha da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida; a implementação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea em 1993, sua extinção em 1995 seguida por sua substituição pelo Programa Comunidade Solidária - PCS no mesmo ano; o debate entre uma Renda Mínima expressa nos moldes de programas do tipo Bolsa Escola e entre a proposta de Renda Básica em meados dos anos 1990; a implementação do Bolsa Escola nacional e também do Cartão Cidadão e do CadÚnico em 2001; a reativação do Consea em 2003 e a tentativa de manutenção do Fome Zero como carro-chefe do governo também naquele ano e, por fim, a criação do Bolsa Família em 2003, com sua regulamentação em 2004.

Ao longo do processo de desenvolvimento, substituição e reforma destes e outros programas fica evidente um forte componente estruturante para o formato dos programas sociais brasileiros, que é a ideia de que, além de o Estado se desresponsabilizar pela pobreza é preciso incentivar o desenvolvimento individual a partir de ações que promovam a expectativa pela mobilidade social, ainda que em meio a situações de crise econômica.

Para além das questões técnicas de eficiência e gestão, que são frequentemente evocadas para explicar a passagem ou a transição de um programa social a outro, é preciso notar que no desenvolvimento de cada programa, valores sociais que subsidiam práticas sociais de gestão das condições materiais de vida da população empobrecida vão progressivamente conferindo legitimidade política ao trato da condição de pobreza. Ou seja, este acúmulo de experiências sociais e políticas é que possibilita evidenciar as formas pelas quais – e é disto que trata minha tese – o Bolsa Família permitiu avançarmos socialmente, mas sem alterar as dimensões que produzem a fome e a pobreza.

 

 

Limites dos programas de transferência condicionada de renda

Este é um ponto fundamental para a compreensão dos limites dos programas de transferência condicionada de renda, inclusive de seu maior exemplo, que é justamente o Programa Bolsa Família. Deste modo, se torna possível compreender que os efeitos de programas deste tipo estão circunscritos em seus objetivos de minoração do risco social, com a instituição de mecanismos de redução da pobreza e da extrema pobreza que irão atuar na esfera individual em conjunto com outras políticas socioassistenciais.

Portanto, é possível dizer que a potencialidade deste tipo de programa está também definida pela existência do interesse político em desenvolver a rede de proteção social brasileira. Como temos visto, os programas de transferência condicionada de renda sozinhos não são suficientes para produzir resultados sociais concretos.

O alívio imediato que a transferência de dinheiro provoca em baixas condições materiais é importante e urgente, mas cabe ressaltar que o próprio Bolsa Família atingiu resultados positivos reais, e a saída do país do Mapa da Fome em 2014 é o mais expressivo, em conjunto com políticas de, dentre outros, geração de empregos, aumento real do salário mínimo e da estruturação, ampliação e desenvolvimento do Sistema Único de Assistência Social - Suas, que é o sistema que viabiliza o cumprimento dos mecanismos de proteção social instituídos pela Lei Orgânica de Assistência Social - Loas. Quando estas políticas são desmanchadas, se não temos a consolidação dos Direitos Sociais de forma ampliada, mesmo políticas exitosas como o Bolsa Família têm sua força e legitimidade social minadas.

 

 

IHU On-Line - O Bolsa Família financeirizou as relações de assistência social? Por quê? Quais os riscos dessa financeirização?

Denise De Sordi - Me parece que financeirizar não é o vocábulo que melhor contribui para compreendermos os efeitos do Bolsa Família nas ações de assistência social. Esse termo tem sido muito utilizado e acho que deve ficar restrito às reflexões que lidam com as medidas econômicas que intencionam desmontar por completo a rede de proteção social existente. Digo isto, pois debater se o Bolsa Família “financeirizou” as relações de assistência social é um exercício que parece pouco explicar sobre os impactos e as mudanças no entendimento acerca das possibilidades de desenvolvimento social que ainda existem. Ao eleger a financeirização como característica principal, me parece ainda que corremos o risco de reduzir a atuação dos assistentes sociais e de todos os avanços, concordemos com eles ou não, que ocorreram na primeira década e meia dos anos 2000.

O que posso evidenciar a partir de minha tese sobre as reformas nos programas sociais brasileiros entre os anos 1990 e 2014, é que a partir da implementação do Programa Bolsa Família tivemos a cristalização de um deslocamento dos significados da pobreza, do controle e da solidariedade sociais. Como mencionei, o Bolsa Família representa a síntese de um processo histórico de reformas nos programas sociais durante este período. É um programa que tem seus méritos e resultados reais, mas que permitiu que avançássemos socialmente sem alterar concepções estruturantes em torno da fome e da pobreza. O que o Bolsa Família entregou foi uma proposta de gestão da vida social que conciliou interesses expressos por polos sociais que são inconciliáveis.

Isto foi possível por meio de algumas apropriações e mudanças no significado social em torno dos Direitos Sociais que mobilizaram certa coesão social em relação à intervenção do Estado por meio de programas sociais circunscritos, no objetivo de promover ações voltadas à dimensão individual. Por isso penso que, apesar da aparente autonomia assumida pelo Programa, não podemos analisar o Bolsa Família de maneira descolada dos demais programas sociais e da forma dominante que foi eleita para a implementação dos Direitos Sociais ao longo dos anos da década de 1990. A fome e a pobreza, como experiências sociais concretas, foram significadas como categorias políticas que orientaram uma pauta central para o arranjo político e social do qual emergiu o Bolsa Família.

 

 

Condicionalidades

Nesse sentido, as condicionalidades, mecanismo de legitimação social e política do Programa, cumprem um papel que não pode ser desconsiderado; elas permitiram – e ainda permitem – a vocalização de um discurso de acesso à cidadania que modela a justificativa para a não universalização do acesso aos Direitos Sociais que, por sua vez, seguem cada vez mais desvinculados das dimensões do trabalho.

As condicionalidades permitem que baixas condições materiais de vida sejam compreendidas enquanto “vulnerabilidades sociais”, de modo que as ações socioassistenciais visam atender a estas vulnerabilidades, estejam elas identificadas a partir de argumentos concretos, ou de perspectivas fincadas no senso comum. Não é de maneira despropositada que dezenas de projetos propõem a ampliação das condicionalidades do Bolsa Família, indo desde exigência de laqueadura à apresentação de ficha limpa criminal. Para que um Programa como o Bolsa Família exista é preciso torná-lo socialmente aceitável, e isto se dá por meio da implementação de medidas que expressem a atenção às práticas sociais instituídas nas relações sociais que caracterizam o tecido social brasileiro.

A manutenção de patamares baixos de condições de vida, com o Bolsa Família, passou a ser medida sistematicamente pela ideia de vulnerabilidade social, que ao ser atendida por meio das condicionalidades geraria o efeito de minoração dos impactos da própria política econômica vigente. Institui-se assim, uma nova moeda para a cidadania que começa a ser medida pelo custo do programa que é legitimado, por exemplo, pela divulgação de que por corresponder a um gasto anual de 0,5% do PIB, programas como o Bolsa Família são uma forma barata e fácil de gerir os impactos da condição de pobreza no país.

Para que essa legitimação fosse possível, foi preciso desativar os aprendizados de mobilização social fincados na ideia de solidariedade social que modelaram não só os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, mas todo o horizonte de expectativas pela implementação de outras formas de lidar com a pobreza e que ainda resistia no início dos anos 2000. Nesse sentido, os mecanismos de controle social – imbuídos da ideia de gestão democrática – foram transpostos ao campo da fiscalização a partir do desenvolvimento, por exemplo, do CadÚnico e da tematização da oferta de medidas socioassistenciais por meio do chamado “terceiro setor”, que havia sido amplamente incentivado mediante a desativação do Consea e com a implementação do PCS. Esse movimento de reorganização dos instrumentos técnicos das políticas socioassistenciais que já existiam quando o Bolsa Família foi implementado, permitiu ainda a coexistência do programa com projetos geridos por governos municipais e estaduais.

Ao unir os sentidos concretos da experiência da pobreza com uma proposta que viabilizou medidas de transferência condicionada de renda, o Bolsa Família deu um passo engenhoso que atrelou em definitivo a concepção de que o desenvolvimento social deve caminhar junto ao desenvolvimento econômico.

 

 

IHU On-Line - Em seu artigo recente, “As perigosas mudanças no Cadastro Único, o Bolsa Família e o Brasil rumo ao Mapa da Fome”, a senhora recupera movimentos que vêm sendo engendrados para enfraquecer o Bolsa Família. Gostaria que recuperasse sua tese central sobre por que a mudança no cadastro único é uma ameaça ao Bolsa Família.

Denise De Sordi - O Cadastro Único para os Programas do Governo Federal - CadÚnico foi instituído em 2001 como parte de uma tentativa de organizar a miríade de programas sociais que eram desenvolvidos a nível nacional. Por isso, em sua criação, foi prevista a obrigatoriedade de que todo programa desenvolvido pelo governo federal deveria utilizar o cadastro.

A criação do CadÚnico se deu em conjunto com a instituição do cartão magnético – o Cartão Cidadão – para viabilizar a transferência condicionada de renda a nível nacional. E aqui temos um componente que irá ressaltar não apenas o acesso direto ao dinheiro pelas famílias atendidas, mas o lastro da transferência monetária como um mecanismo de acesso a serviços sociais, com características que permanecerão no corpo do Bolsa Família: preferência do cartão no nome das mães e a centralização do pagamento pela rede da Caixa Econômica Federal.

A partir do momento em que se estabelece a transferência condicionada de renda para um público delimitado, passa a ser preciso controlar a distribuição desse dinheiro, tornando-a socialmente aceita sob uma narrativa de eficiência de gestão do gasto público e de não desincentivo ao trabalho.

Isso ocorre porque adotamos um modelo focalizado para a transferência de dinheiro, que se dá mediante a não universalização do atendimento aos trabalhadores empobrecidos. Ou seja, estabelece-se uma estratificação que irá definir cortes de renda que, na prática, se sustentam socialmente a partir de uma imagem construída e propagada do que é ser pobre. Quando há dissonância nessa imagem emergem os discursos que revelam certa aporofobia em percepções que demarcam as formas como conferimos legitimidade à condição de pobreza. Podemos citar, por exemplo, críticas ao programa sobre taxas de natalidade, acomodação, oportunismo e ignorância. A legitimidade da transferência condicionada de renda está centrada em uma dimensão que desvincula o acesso aos Direitos Sociais do trabalho e, por isso, precisa ser moralmente regulada.

Assim, o CadÚnico é o instrumento instituído para organizar o acesso à rede de proteção social de forma focalizada para parcelas da população empobrecida. A utilização do CadÚnico mantém não só a credibilidade da transferência condicionada de renda, mas permite mapear se a distribuição dessa transferência está permitindo que os objetivos de programas como o Bolsa Família sejam atingidos.

Deste modo, imobilizar o CadÚnico é imobilizar as possibilidades de existência do Bolsa Família como o conhecemos. As sucessivas ações empreendidas sob o argumento de “enxugar o gasto social” trilham um caminho de desregulamentação dos programas sociais existentes e há uma tendência no horizonte de que o Bolsa Família é o próximo. Este é um processo que pode ser visto como uma tendência à “hiperfocalização”, ou seja, à maior restrição dos mecanismos que temos para lidar com a extrema pobreza e a pobreza só que de modo inteiramente desvinculado de outras ações socioassistenciais que caracterizam a rede de proteção social brasileira.

A criação do CadÚnico em 2001 tinha um objetivo estreito de gestão técnica dos programas sociais, no entanto, ao ser revitalizado a partir de 2003 se tornou um dos pilares dos programas sociais no país. No âmbito do Bolsa Família, por meio do CadÚnico, há ainda o repasse de verbas aos municípios por meio do Índice de Gestão Descentralizada - IGD, que mede a qualidade de gestão do programa e permite o desenvolvimento de ações de assistência social complementares em nível municipal. O cadastramento das famílias no CadÚnico é ainda responsável por mobilizar e direcionar as ações da rede dos postos de atendimento dos Centros de Referência de Assistência Social - Cras e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - Creas.

 

 

CadÚnico, a base informacional para o funcionamento dos programas sociais brasileiros

Mais que uma simples plataforma de cadastro de dados, o CadÚnico é uma base informacional crucial para o funcionamento dos programas sociais brasileiros. Não só o Bolsa Família, mas o Benefício de Prestação Continuada - BPC, a Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa de Cisternas, Isenção de Pagamento de Taxas de Inscrição em Concursos Públicos, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - Peti, dentre tantos outros que compõem a rede de proteção social do país, utilizam o CadÚnico.

É a partir do CadÚnico que ações socioassistenciais podem ser direcionadas, pesquisas podem ser realizadas e é por meio dos dados coletados no cadastramento de beneficiários destes programas que podemos analisar os impactos das políticas públicas nos níveis municipal, estadual e federal, bem como a transparência na implementação dos programas sociais.



IHU On-Line - Em que medida podemos pensar num programa de renda básica, tendo em vista toda essa experiência da pandemia, a partir do Bolsa Família? Ou o ideal seria constituir um programa de renda básica por outros caminhos?

Denise De Sordi - Creio que a resposta a esta pergunta ainda está em disputa, e estará, de certa forma, condicionada aos limites daquilo que sobrar de nossa atual rede de proteção social pelos próximos anos. No entanto, as possibilidades estão sempre em aberto e temos que considerar que a proposta por uma Renda Básica não é nova.

No contexto da Nova República, foi uma pauta que até pelo menos os anos 2000 esteve ao menos sinalizada nos programas de governo de partidos. Em 1991 foi apresentada pelo então senador Eduardo M. Suplicy e esteve muito perto de ser aprovada. Chegou a ser classificada por Fernando Henrique Cardoso como uma “utopia realista”, no entanto, o que se encaminhou como resultado dos debates motivados pela ideia de uma Renda Básica, foi a opção política por uma Renda Mínima expressa nos programas de transferência condicionada de renda que foram inspirados na experiência de programas do tipo Bolsa Escola.

E aqui vemos mais uma vez a importância da ressignificação provocada pelo Bolsa Família, que conseguiu encaminhar certa coesão social em torno da transferência condicionada de renda, que ao longo dos anos 1990 ainda não era uma ideia totalmente legitimada. De qualquer forma, com a opção por uma Renda Mínima, mais uma vez, a necessidade de moralizar a transferência condicionada de renda se fez presente. Havia uma ideia, por parte de setores econômicos e da elite do país, de que transferir renda seria um desincentivo ao trabalho e este foi um elemento que influenciou o debate público naquele período para que se encaminhasse a opção por uma Renda Mínima e não pela Renda Básica.

 

 

Programas de transferência de renda

O que se deve evitar é a confusão entre Renda Mínima, Renda Básica e Auxílio Emergencial, pois são propostas muito diferentes entre si. Em síntese, a Renda Básica, em sua proposta original, é universal, não gera estigmas pois não possui condicionalidades e sua fiscalização não se sustenta por meio de concepções morais sobre a condição de pobreza; assume o pressuposto de que a riqueza é e sempre foi coletiva e socialmente produzida e, deve, portanto, ser igualmente distribuída.

De certo modo, convencionou-se dizer que o Bolsa Família seria o primeiro passo para a implementação da Renda Básica no Brasil. A meu ver, esse é um discurso derivado das rupturas políticas que a implementação do Bolsa Família provocou no governo. Ainda no programa de governo de 2002, a Renda Básica estava prevista para quando houvesse condições fiscais para tanto, de maneira que o governo cumpriria o acordo de realizar o “contrato social” com “distribuição de renda”.

Porém, os limites para a distribuição de renda já estavam balizados pelos programas anteriores, pela existência dos instrumentos técnicos de gestão tanto do CadÚnico quanto do cartão magnético que monetiza as transferências. De qualquer modo, com a progressiva expansão do Bolsa Família, o programa se tornou mais importante que esses limites, por meio tanto da conciliação de interesses antagônicos que seu formato permitiu, quanto por sua própria importância política a nível nacional e internacional.

A Renda Mínima é, em geral, focalizada e baseada na proposta de atendimento das basic needs, atende parcelas específicas da população definidas por critérios específicos, e prevê contrapartidas que podem ser expressas em condicionalidades, tal como ocorre no Bolsa Família. Em tese, a Renda Mínima é enunciada como política transitória, no entanto, este é um argumento que a torna socialmente aceitável em cenários nos quais não é possível universalizar os Direitos Sociais, ou seja, políticas de pleno acesso à habitação, emprego, renda, saúde, educação, dentre outros.

O Auxílio Emergencial, desenvolvido durante a pandemia, é, como o próprio nome indica, emergencial. Foi gestado por uma articulação política diversa e sem dúvida é uma medida necessária e urgente. No entanto, é transitório e, pelo menos por enquanto, está limitado pela pandemia e, infelizmente, tem sido gerido de acordo com os interesses da pauta econômica do governo. É emergencial, no sentido de que não possui previsão de impulsionar o estabelecimento de redes de proteção social. O auxílio lida com a ideia de estímulo ao consumo, de oferta de ajuda imediata e transitória aos que tiveram sua renda afetada pela pandemia e que, de certo modo, já vinham sofrendo com os efeitos tanto da crise política e econômica que vivemos desde 2016, quanto das reformas promovidas nesse período.

 

 

IHU On-Line - Por que é importante, além de pensar em programas de redistribuição de renda ou mesmo numa renda básica, o desenvolvimento de políticas de assistência social abrangentes? E como uma ferramenta como o Cadastro Único pode contribuir para a concepção dessas políticas?

Denise De Sordi - É preferível caracterizar a ideia de políticas de assistência social abrangentes pela concepção de ampliação dos direitos sociais. Nós já temos em nossa Constituição a previsão, ou seja, a indicação pela construção de um pacto social, de que os Direitos Sociais devem ser universalizados à população.

No entanto, isso implica um movimento político de reversão dos postulados neoliberais que foram geridos pela influência de organismos multilaterais, e que orientaram o desenvolvimento dos programas sociais com o desmonte do rol de possibilidades dos Direitos Sociais ao longo dos anos 1990.

Porém, para isso, seria necessário alterar valores e práticas sociais que delineiam nosso atual pacto social, do qual deriva a manutenção do abismo social que existe no país. Nesse sentido, não parece interessante que a manutenção da não participação popular na definição das políticas sociais seja o caminho mais interessante.

Agora, se pensamos na ampliação dos programas sociais existentes, o CadÚnico é um instrumento de gestão que mantém sua funcionalidade. Fora desse cenário, temos outros instrumentos que medem a qualidade de vida da população que podem ser ampliados, talvez se utilizando da experiência do CadÚnico, para implementar propostas que consideram a aplicação de outros índices para aferir esta qualidade.

Quanto à importância do desenvolvimento de políticas sociais, este é um ponto que tem relação com a natureza do próprio Estado Social e com as formas pelas quais consideramos ser socialmente justo organizar nossas relações sociais.

 

 

IHU On-Line - Como analisa a forma como já vínhamos usando o Cadastro Único e suas possibilidades? Quais os desafios para refinarmos o olhar sobre as informações geradas a partir dele?

Denise De Sordi - O CadÚnico, a meu ver, deve ser analisado por aquilo que é: um instrumento de focalização do acesso aos serviços sociais que gera uma base informacional fundamental para o funcionamento dos programas sociais da forma como existem hoje.

No âmbito do Bolsa Família, considerando o abismo social que existe no Brasil, se o modelo escolhido para a implementação da transferência de renda é o da transferência condicionada e dirigida a parcelas específicas da população identificada pelos cortes de renda que delineiam a extrema pobreza e a pobreza, é preciso garantir que o dinheiro continue a ser transferido para o atendimento desta população.

Por isso a não utilização prioritária do CadÚnico para a implementação do Auxílio Emergencial é tão problemática. Desvincular a transferência condicionada de renda do CadÚnico é desvincular a ideia de que programas como o Bolsa Família são a porta de acesso para os serviços socioassistenciais, em um movimento que desconsidera que a rede de proteção social brasileira não é composta apenas pelo Bolsa Família.

Quanto à utilização ou um maior “refinamento” do CadÚnico, o que pesquisas desenvolvidas nos últimos anos sobre o tema têm apontado, é a necessidade de que o CadÚnico não seja restrito ao uso de um instrumento de fiscalização pura e simplesmente. A implementação do IGD foi uma tentativa de aplicar essa concepção.

O que poderia ampliar a potencialidade do CadÚnico seria o seu funcionamento baseado em instâncias de controle social, que se definem, em resumo, pela ideia de gestão democrática. São os sujeitos que são beneficiados por programas sociais que devem contribuir na avaliação e desempenho dos mesmos. Esse movimento de gestão social democrática permitiria, em tese, que distorções como avaliações endógenas aos objetivos dos programas sociais, que visam apenas verificar se metas de desenvolvimento econômico estão sendo atingidas, continuassem a ocorrer.

No entanto, isso implicaria na quebra de homogeneização do tipo de atendimento que é ofertado pelo Estado. Portanto, não parece que seria suficiente repensar a gestão dos programas a partir somente do CadÚnico, seria preciso repensarmos a gestão dos programas sociais em sua totalidade.

 

 

IHU On-Line - O que o processo de discussão e implantação do Auxílio Emergencial e o conturbado caminho até chegar a quem precisa revela? Por que, mais uma vez, o autocadastramento pode se converter em risco que leva à desregulamentação dos programas sociais?

Denise De Sordi - O processo de discussão e emergência pela aprovação do Auxílio Emergencial revela algumas questões, dentre elas, os efeitos da crise política e econômica que temos vivido nos últimos anos, do aumento do desemprego e da queda brusca das condições materiais de vida dos trabalhadores. Revela ainda que, sozinhos, sem o interesse político em manter a rede de proteção social brasileira, os programas de transferência condicionada de renda têm seus limites brutalmente pressionados por aspectos conjunturais.

O auxílio basicamente buscou atender um público ampliado que extrapola aquele definido para a oferta de programas como o Bolsa Família. Desde, pelo menos, 2016, temos visto a retomada vigorosa de políticas de arrecadação de alimentos, a exemplo da reativação em larga escala da Ação da Cidadania (derivada da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida), e agora reativa-se a ideia de que é preciso mobilizar a consciência individual das pessoas para suprir a desresponsabilização do Estado em garantir condições mínimas de sobrevivência.

Ou seja, há um movimento que precisa caminhar junto com a política de desregulamentação das Políticas Sociais que é de direcionar os efeitos da crise às ações individuais; não se cobra ou se reivindica do Estado, mas se acionam mecanismos de filantropia e de mobilização individual. É um movimento que não é nem igual, mas nem tão diferente do que ocorreu ao longo dos anos 1990, é uma espécie de aprofundamento da aplicação de postulados neoliberais que visam alterar os valores que regem nossas relações sociais concretas.

É um aprofundamento também porque prevê o encaminhamento da inativação até mesmo da atuação de ONGs e entidades religiosas que historicamente foram ativadas em momentos de crise e que tiveram papel estruturante para as reformas nos programas sociais levadas a cabo nos últimos anos, que, por sua vez, incluíram esses grupos no corpo de gestão das políticas sociais do Estado, com o repasse de verbas e outras ações. É, em síntese, o esvaziamento completo do sentido do Estado Social e das particularidades que este assume no contexto brasileiro.

O que se desenha agora é um movimento por meio do qual é preciso provocar a quebra de legitimidade das ações de assistência social para que se possa cumprir o projeto enunciado como o de enxugamento do “custo social”. O autocadastramento para o recebimento do auxílio corre nesse sentido, desvinculando a transferência de renda da oferta de serviços sociais por meio da rede de proteção social. Esta última, também em desmonte.

 

 

IHU On-Line - No mundo todo, o investimento em assistência social pelo Estado, a partir da pandemia, tem crescido. Mas, no Brasil, vemos um desmonte de programas de assistência social e mesmo de seguridade social. O que essa posição de contrafluxo pode nos legar?

Denise De Sordi - Pode-se pontuar que seria uma enorme contradição por parte de um governo que se elegeu propondo a redução ou a eliminação dos mecanismos de proteção social do Estado ampliar o gasto com medidas desse tipo. Assim, por mais que o Brasil esteja neste “contrafluxo” de investimentos, o que está ocorrendo é nada mais que a manutenção da política de governo eleita. A questão é até que ponto isso será socialmente aceitável e quais serão as medidas utilizadas para amortecer os impactos desta política.

É certo que o agravamento dos impactos dessa política econômica, com a pandemia, é sentido mais rapidamente, aumentando a pressão sobre as relações hierárquicas que compõem o governo, até mesmo porque os impactos da pandemia e os efeitos da convulsão política provocada no país nos últimos anos estão afetando parcelas da população que até então não eram afetadas tão rapidamente pelas crises. Em uma perspectiva social total, a tendência que se coloca é a de reversão completa dos avanços sociais que foram conquistados nos últimos anos.

Nesse sentido, é possível indicar que o saldo de tudo isso irá depender do que será feito desse cenário não só pelo corpo que gere esse governo, mas pela pressão da sociedade na redefinição da política econômica e social vigente.

 

 

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