"O paradoxo da pandemia é que, em última análise, haverá mais liberdade se nos limitarmos voluntariamente. Quem, por exemplo, rejeita a máscara porque ela limita sua liberdade, acaba no final tendo menos liberdade ainda", escreve Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano que é docente de Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim, e autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço. Nascido em Seul, é considerado um dos filósofos contemporâneos mais interessantes. O artigo é publicado por Domani, 03-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a pandemia ensina o que significa solidariedade. A sociedade liberal precisa de um forte conceito de "nós". Caso contrário, cai em uma multidão de pessoas egoístas. E aí, o vírus tem uma vida fácil. Se mesmo no Ocidente falássemos de um "fator X" clinicamente inexplicável que coloca o vírus em dificuldade, nada mais seria do que o senso cívico, a ação comum e a responsabilidade para com os outros".
Qual a diferença entre as estratégias europeias na luta contra o vírus e as asiáticas? À primeira vista, parece que a diferença está na rígida vigilância digital a que estão submetidos os habitantes daqueles países. Na realidade, há uma maior observância das rígidas regras sanitárias, ainda que não seja prevista uma obrigatoriedade por parte do Estado, um “fator X” que não é fácil de explicar. Ao contrário, as democracias ocidentais pagam o preço pela doutrina liberal que as caracteriza e corre o risco de deteriorar o senso cívico que, por exemplo, na Nova Zelândia, ajudou a derrotar o vírus. Quando perguntado por que o Japão foi melhor sucedido na luta contra a pandemia em relação ao Ocidente, o ministro das finanças japonês, com reconhecidas tendências nacionalistas, Taro Aso, respondeu secamente com a palavra "mindo", literalmente "o nível das pessoas".
A afirmação do ministro da Fazenda gerou polêmica até no Japão. Ele foi censurado por espalhar o chauvinismo nacionalista em um período em que seria necessária a solidariedade entre todos os países do mundo. No entanto, Aso defende sua posição contra seus críticos, argumentando que os japoneses seguiram as regras rígidas de higiene de maneira resoluta, apesar de o governo não impor sanções aos infratores. As pessoas em outros países não teriam sido capazes de fazer isso, continua Aso, mesmo se tivessem sido obrigadas. Em primeiro lugar, é preciso considerar que não apenas o Japão, mas outros países asiáticos como China, Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura ou Hong Kong continuam a manter sob controle a pandemia com sucesso. Enquanto isso, a Europa e os Estados Unidos estão literalmente dominados pela segunda onda de contágios. Essa segunda onda na Ásia praticamente não se manifestou. Os números mais atualizados são tão baixos que podem ser considerados irrelevantes. Justamente esses países nos mostram que podemos resistir à pandemia mesmo sem a vacina.
Os asiáticos observam com espanto como os europeus estão indefesos diante do vírus, como os governos europeus são impotentes na luta contra a pandemia. Diante de diferenças tão evidentes no número de contágios, quase se impõe a pergunta: o que distingue a estratégia asiática da europeia?
A contenção da pandemia na China pode ser atribuída em parte à vigilância rigorosa do indivíduo, inimaginável para o Ocidente. Mas a Coreia do Sul e o Japão são democracias. Um totalitarismo digital ao estilo chinês não é admissível nesses países.
Na Coreia do Sul, no entanto, o rastreamento digital é aplicado constantemente. Naquele país não está nas mãos das empresas de saúde, mas sim da polícia. Os contatos diretos são identificados com métodos forenses. Inclusive o aplicativo anticontágio que todos instalaram, embora não seja obrigatório, funciona de forma precisa e confiável. Quando as técnicas normais de rastreamento não são mais suficientes, também são analisados os pagamentos com cartão de crédito e inúmeras câmeras de vigilância pública.
Para a contenção efetiva da pandemia, portanto, a Ásia deve agradecer ao rigoroso regime sanitário que usa a vigilância digital? Não parece. O coronavírus é notoriamente transmitido entre contatos próximos que cada pessoa infectada pode indicar por conta própria, mesmo sem a vigilância digital. Já sabemos que não é tão relevante para acompanhar o contágio saber quem esteve em que momento durante um curto período em que lugar, quem andou por quais ruas.
Então, como se pode explicar que na Ásia o número de contágios continua tão baixo, independentemente da ordem política do país? O que liga China ao Japão ou à Coreia do Sul? Como a estratégia de Taiwan, Hong Kong e Cingapura difere daquela da Alemanha?
Os virologistas estão se questionando sobre as razões do baixo número de contágios na Ásia. O vencedor japonês do Prêmio Nobel de Medicina, Shin'ya Yamanaka, fala de um "fator X" que não é fácil de explicar. Está fora de questão que os países liberais ocidentais não possam implementar a vigilância individual segundo o modelo chinês. E isso é bom. O vírus não deve minar as democracias liberais. Nas redes sociais, no entanto, a preocupação com a privacidade é rapidamente jogada ao vento, mesmo no Ocidente. Todos se exibem sem nenhuma vergonha. As plataformas digitais como Google e Facebook têm acesso ilimitado à esfera privada. Ninguém reclama que o Google esteja lendo e avaliando os nossos e-mails. Não é apenas o governo chinês que está coletando os dados de seus cidadãos para controlá-los e discipliná-los. O sistema de crédito social do Estado chinês é baseado nos mesmos algoritmos que os sistemas de pontuação ocidentais como o Fico nos Estados Unidos ou o Schufa na Alemanha também usam. Considerando a questão por esse ponto de vista, a vigilância panóptica não é apenas um fenômeno chinês. Diante da vigilância digital que já está acontecendo em todos os lugares, o rastreamento anônimo por meio do aplicativo anti-Coronavírus seria realmente inofensivo.
Mas o rastreamento digital provavelmente não é a principal causa do sucesso dos asiáticos no combate à pandemia. Se o viés nacionalista for removido das palavras do ministro das finanças japonês, elas contêm uma porção de verdade. Indicam a importância do senso cívico, da ação comum em uma crise pandêmica. Onde as pessoas respeitam voluntariamente as regras sanitárias, se podem poupar controles e obrigações que exigem muito pessoal e custam muito tempo. Durante a enchente de 1962, parece que Helmut Schmidt, então Ministro do Interior do Land de Hamburgo, tenha dito: "A força de espírito se mostra em tempos de crise". A Europa evidentemente não consegue mostrar força de espírito diante da crise.
Na pandemia, as democracias liberais ocidentais estão mostrando fraqueza. Evidentemente, a doutrina liberal favorece a decadência do senso cívico. A pandemia mostra o quanto é importante. Prova da decadência é o fato de os jovens promoverem festas ilegais em meio à pandemia, que os policiais que deveriam dispersá-los são agredidos e que se cospe ou tosse sobre eles, ou o fato de as pessoas não tenham mais confiança no Estado. Paradoxalmente, os asiáticos têm mais liberdade justamente porque respeitam voluntariamente as rígidas regras sanitárias. Nem no Japão nem na Coreia do Sul foram estabelecidos lockdowns ou toques de recolher. O dano econômico também foi muito menos severo do que na Europa.
O paradoxo da pandemia é que, em última análise, haverá mais liberdade se nos limitarmos voluntariamente. Quem, por exemplo, rejeita a máscara porque ela limita sua liberdade, acaba no final tendo menos liberdade ainda. Os países asiáticos não são muito influenciados pela doutrina liberal. Por essa razão, os asiáticos têm pouca compreensão e tolerância pelos individualismos. As restrições sociais são, portanto, extremamente fortes. É também por isso que, como coreano, prefiro continuar vivendo no foco do Coronavírus que estourou em Berlim, em vez que em Seul, mesmo sem vírus.
Um grande número de contágios durante a pandemia não é, no entanto, e isso deve ser enfatizado, uma consequência natural do estilo de vida liberal que deveríamos simplesmente aceitar. O senso cívico e a responsabilidade individual são armas liberais eficazes contra o vírus. A doutrina liberal não leva necessariamente ao individualismo vulgar e ao egoísmo, que entram no jogo do vírus. A Nova Zelândia, um país liberal, já derrotou a pandemia pela segunda vez. O sucesso dos neozelandeses também se deve a uma mobilização do senso cívico. A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, falou com empatia do "time dos cinco milhões". Seu apelo apaixonado ao senso cívico foi muito bem recebido pela população. O desastre estadunidense pode ser reconduzido ao fato de que, ao contrário, Trump minou o senso cívico por puro egoísmo e sede de poder e dividiu o país. Sua forma de fazer política impede a criação de qualquer sentimento comum.
O liberalismo e o senso cívico não devem ser alternativos. O senso cívico e a responsabilidade individual são pressupostos essenciais para uma sociedade liberal completa. Quanto mais liberal uma sociedade, mais senso cívico é necessário. A pandemia ensina o que significa solidariedade. A sociedade liberal precisa de um forte conceito de "nós". Caso contrário, cai em uma multidão de pessoas egoístas. E aí, o vírus tem uma vida fácil. Se mesmo no Ocidente falássemos de um "fator X" clinicamente inexplicável que coloca o vírus em dificuldade, nada mais seria do que o senso cívico, a ação comum e a responsabilidade para com os outros.