25 Julho 2020
“O que está fazendo contra a fome? Eu luto contra o imperialismo”, dizia um grafite do glorioso Maio de 68, época da grande revolução estudantil a qual imediatamente se uniram milhões de trabalhadores. Os franceses explodiram nas ruas, em uma cadeia de protestos lendários que se levantaram contra o capitalismo e a sociedade de consumo, contra as instituições que os sustentavam, contra os bancos - com paredes pintadas que diziam "Roubam!"-, contra os autoritarismos... Mais de meio século depois, a esquerda perdeu a batalha?
É a pergunta que se faz o cineasta Jean-Gabriel Périot em seu novo trabalho, “Nos Défaits” [Nossas derrotas], um dos filmes políticos mais interessantes, lúcidos e oportunos dos últimos anos. Cinema político, com raízes em uma tradição documental, de reflexão e debate imprescindíveis. Um filme que confronta o presente com o passado e reflete sobre os restos daqueles ideais de 50 anos atrás.
A convite da Câmara Municipal de Ivry-sur-Seine, um histórico e resistente feudo comunista na França, Périot concordou em fazer um filme com os alunos do primeiro grau do Instituto Romain Rolland. Com eles, encarregados de todos os aspectos das filmagens, técnicas e artísticas, foram reinterpretadas as cenas centrais dos filmes políticos franceses do final dos anos 1960 e 1970. Depois, diante das câmeras, Périot entrevista os jovens, perguntando a respeito de conceitos da esquerda: política, sindicatos, revolução, compromisso, capitalismo, greves, trabalho, dinheiro, liberdade, anarquia...
A entrevista é de Begoña Piña, publicada por Público, 24-07-2020. A tradução é do Cepat.
A esquerda perdeu a batalha?
A esquerda perdeu muitas batalhas. A verdade é que luto contra meu próprio pessimismo, mas também é verdade que sempre fico surpreso ao ver que as pessoas continuam lutando. Para mim, é impressionante estar em manifestações com 20.000 ou 30.000 pessoas e ver que 90% delas têm cerca de 20 anos. São manifestações políticas, muitas vezes contra a violência, que continuam a usar os lemas dos anos 1970. Portanto, deveria ser mais otimista.
No filme, você reflete sobre a esquerda com jovens de 17 anos. Espalhou-se a ideia de que os jovens de hoje são muito menos idealistas do que eram as gerações anteriores, é verdade?
A verdade é que isso me fascinou, ainda não sei se é um sonho ou um desejo meu ou a necessidade que tenho de mudar as coisas, mas no filme pude notar um senso adulto nesses jovens. A sociedade atual de adultos, a escola, as regras impostas pelos pais... talvez os façam parecer adultos demais. Eu queria confrontá-los com a realidade do trabalho, dinheiro, inclusive fazer filmes... coisas, talvez, muito complicadas para eles. Mas depois de fazer várias entrevistas com eles, percebi que tinham muito mais pressão do que quando eu tinha a idade deles. Faz parte da história.
Mas, na realidade, são muito jovens ...
…Sim, são jovens demais para algumas coisas, mas não para outras. Não são jovens para participar de movimentos antinacionalistas, na marcha ecológica mundial... E nem tudo são movimentos novos, algo está voltando novamente. É uma mudança.
No filme, nota os jovens muito preocupados com dinheiro e trabalho?
Recordo-me de quando ia à escola, quando o professor e meus pais nos perguntavam o que queríamos ser quando crescêssemos. Não pensávamos em viajar pelo mundo ou ter um bom computador, só precisávamos realmente confiar que encontraríamos trabalho. Era isso que queríamos. Estávamos tentando ter uma vida normal e encontrar um lugar na sociedade.
É preocupante descobrir que eles não têm ideia do que é um sindicato e não são capazes de definir o que é política.
Isso me assustou porque percebi que algo havia mudado dentro das escolas. Nós aprendemos tudo isso na escola, o sistema político, assim como a História, as Ciências Sociais ou as Ciências. Agora, não aprendem nada sobre política, possuem um grande desconhecimento do que é direita ou esquerda, não falam sobre nada relacionado à política.
Passei meses conversando com eles sobre isso, decidimos que eu iria explicar tudo para eles. Falamos de sindicatos também e, se depois não foram capazes de dizer o que é um sindicato, pode ser porque não compreenderam e, então, nada disseram, ou porque são tímidos...
Provavelmente seja minha culpa porque eu não sou professor, sou cineasta. Mas fiquei muito surpreso que ninguém, exceto um, soubesse o que eram os sindicatos ou a revolução ou o que é política. Isso é perturbador.
Descartar a política dos planos curriculares é, então, um grave erro?
Bom, acho que não é um erro, acho que é um projeto do governo. Na França, desde a Revolução, a escola se dedica a educar os cidadãos, te envolve e anima a participar da vida política. A mudança no sistema educacional apagou o vocabulário político e todas essas questões. Meus estudantes moram em uma cidade comunista e, apesar disso, sem vocabulário político, é muito difícil explicar tudo isso. Para eles, é muito difícil colocarem palavras ao que veem ou explicarem para si mesmos. É muito complicado. Mas é premeditado, não é um erro.
Ao ter nascido e crescido em Ivry, não deveriam ter esses conceitos mais claros?
Ivry foi historicamente comunista e ainda é, hoje. Não conseguem explicar algumas coisas ou não sabem o que são, mas quando estávamos conversando sobre compromisso, revolução, greves... pensei que pudessem entender muito bem, e entenderam. Nessa aula, todo mundo sente a necessidade de mudar, entende os aspectos positivos do compromisso... pudemos falar sobre pobreza, sobre essas coisas...
Você acredita que as ideias de esquerda se tornaram antigas?
Sim, porque a esquerda não lida com questões importantes para a sociedade atual, como a ecologia e o racismo, o feminismo... Na esquerda, percebemos que é importante, mas não o suficiente para mudar. No entanto, para a nova geração é mais urgente.
Preferimos pensar em pequenas mudanças e também as fazemos muito devagar, e queremos sempre ser corretos, sempre pensamos em termos de maiorias, tentando resolver divergências. De alguma forma, evitamos o debate e, assim, os problemas não são resolvidos. A esquerda está muito parada e, quando se mexe, é muito devagar.
E as estratégias?
Eu acredito que está no filme. Acredito que a estratégia é continuar lutando por nós mesmos, ir todos juntos, sermos melhores... Para os trabalhadores, as manifestações e as greves ainda continuam sendo importantes, mas, sim, precisamos de um caminho novo de ação. A coisa dos 'coletes amarelos' na França foi impressionante, mas a única maneira de conseguir uma profunda transformação da sociedade é realmente nos posicionar... Somos trabalhadores, ativistas...
No filme, não pergunta sobre os fascismos e o auge que estão tendo hoje, por quê?
Não, só queríamos falar sobre conceitos da esquerda. Essa pergunta estaria fora do escopo do filme e talvez fosse fácil demais para eles responderem, eles são contra. Não falamos sobre isso, nem sobre nacionalismo... Precisava de respostas mais concretas do que um simples não, sou contra.
Todos são a favor de uma sociedade igualitária e de um mundo sem guerras. É real ou é a música que repetem porque a ouvem constantemente?
Não são tão ingênuos para dizer ‘não mais guerra, um mundo em paz’..., são mais do que tópicos para eles. Nessa idade, é normal ser pacifista, é natural. Embora no final do filme, quando eles lutam, não é para conseguir a paz, é por algo muito diferente.
Um aspecto interessante do filme é o da arte comprometida. Ainda existe um forte compromisso no cinema?
Nos anos 1980, algo mudou no cinema. Havia muitos projetos na França que falavam de trabalhadores, fábricas... e o cinema político não desapareceu. Depois, tornou-se mais metafórico, menos concreto. E penso, e não sou o único que pensa, que agora algo está mudando novamente, e o cinema se torna cada vez menos interessante. Eu procuro questionar o mundo com meus filmes políticos e meus personagens. O cinema político dos anos 1960 e 1970 é uma jornada enriquecedora, é importante e precisamos desse tipo de cinema. Precisamos de todos os tipos de cinema, mas o político estava realmente desaparecido.
O cinema, a arte, a cultura e a escola podem voltar a provocar a curiosidade dos jovens?
Sim, de fato, acredito que é muito importante motivar a curiosidade dos jovens, que pode estar limitada pelo próprio ambiente familiar, às vezes, assistem filmes na TV e isso é tudo o que fazem. E essa motivação deve começar na escola. É nas escolas onde começam a abordar outro tipo de arte. Gosto de ir a institutos para fazer filmes e percebo que sou bem-vindo, com curiosidade.
Os jovens têm uma energia muito boa e estão mais bem preparados para abrir suas mentes do que os adultos. Quando começamos a trabalhar e assistimos aos filmes dos anos 1970, eles nem sabiam que existiam, mas assistiram com muita curiosidade. Temos que ir às escolas para mostrar filmes e conversar sobre livros, sobre arte. É a única maneira de saberem que não existe só Hollywood.
Pessimista ou o oposto, ao final do filme?
Bom, os jovens são, sem dúvida, diferentes de nós. Mas há coisas muito importantes para eles, como o ecologismo, e quando você os vê em uma manifestação, descobre muita energia. Estão cheios de energia. Isso me encoraja a ser muito otimista.
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“A esquerda está parada e quando se mexe, é muito devagar”. Entrevista com Jean Gabriel Périot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU