26 Março 2020
À medida que o novo coronavírus se alastra pelo Brasil, crescem os temores de que comunidades indígenas sejam dizimadas pela covid-19, a doença causada pelo patógeno.
A reportagem é de João Fellet, publicada por BBC News Brasil e reproduzida por amazônia, 25-03-2020.
Doenças respiratórias já são a principal causa de morte entre as populações nativas brasileiras, o que torna a pandemia atual especialmente perigosa para esses grupos.
Há ainda preocupações quanto ao desabastecimento de muitas comunidades indígenas que compram alimentos em cidades e dependem de programas sociais como o Bolsa Família, mas estão sendo orientadas a evitar os deslocamentos para impedir o contágio.
Apesar da gravidade do cenário, associações indígenas e entidades que os apoiam afirmam que órgãos federais não têm adotado providências para proteger as comunidades – e que há falta de materiais básicos, como máscaras, para lidar com eventuais casos nas aldeias.
“Há um risco incrível de o vírus se alastrar pelas comunidades e provocar um genocídio”, diz a médica sanitarista Sofia Mendonça, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Mendonça é a atual coordenadora do Projeto Xingu da Unifesp, pelo qual a universidade atua na promoção da saúde de povos indígenas da bacia do rio Xingu (no Mato Grosso e no Pará) há meio século.
Ela afirma que o novo coronavírus pode ter para povos indígenas brasileiros impacto comparável ao de grandes epidemias do passado, como as causadas pelo sarampo.
“Todos adoecem, e você perde todos os velhos, sua sabedoria e organização social. Fica um buraco nas aldeias”, afirma.
Mendonça diz, por outro lado, que a memória de epidemias passadas pode estimular comunidades que vivem em territórios extensos a se dividir em grupos menores e buscar refúgio no interior da mata.
“Provavelmente alguns vão se munir de materiais que precisam para caçar e pescar e vão fazer acampamentos, esperando lá até a poeira baixar”, afirma.
Mendonça diz que métodos usados em áreas urbanas para reduzir o contágio – como higienizar as mãos com álcool gel – são impráticaveis em muitas aldeias. Por isso ela defende concentrar os esforços em impedir que o vírus chegue às comunidades e isolar eventuais infectados.
Mendonça, assim como várias organizações indígenas brasileiras, tem difundido mensagens no WhatsApp e por rádio orientando as comunidades a suspender as idas às cidades e impedir a entrada de visitantes.
Nas últimas semanas, vários grupos cancelaram reuniões e rituais abertos a turistas. O Acampamento Terra Livre – principal evento do movimento indígena brasileiro, que ocorre em Brasília a cada mês de abril – foi suspenso.
Mesmo assim, Mendonça diz que há chances consideráveis de que o vírus chegue às aldeias – e que será preciso isolar os doentes antes que eles infectem os parentes.
Segundo ela, os modos de vida de vários povos indígenas – que incluem compartilhar utensílios como cuias e morar em habitações com muitas pessoas – tendem a ampliar o poder de contágio de doenças infecciosas.
Em 2018, segundo o Ministério da Saúde, doenças infecciosas e parasitárias – tipos de enfermidades considerados evitáveis – foram responsáveis por 7,2% das mortes ocorridas entre indígenas, ante uma média nacional de 4,5%.
Entre crianças indígenas com menos de um ano, doenças respiratórias foram responsáveis por 22,6% das mortes registradas em 2019, índice só inferior ao de mortes causadas por problemas no período perinatal (24,5%).
Mendonça tem orientado as comunidades a adotar práticas de reclusão – normalmente usadas em ritos de passagem – para isolar as pessoas com sintomas da doença.
Nesses rituais, diz a médica, várias comunidades costumam usar barreiras físicas, como paredes de palha, para que o recluso não tenha contato com os demais membros do grupo.
Mendonça afirma que também é preciso agir para impedir que o vírus chegue a grupos que vivem em isolamento voluntário. Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 107 registros de grupos indígenas não contatados na Amazônia brasileira.
Muitos territórios habitados por esses grupos são alvo de madeireiros, garimpeiros, caçadores e missionários, que podem levar o vírus até as comunidades.
Mendonça diz que a Funai deveria reativar bases encarregadas de proteger essas áreas que foram fechadas nos últimos anos em meio à redução do orçamento do órgão.
Ela defende ainda que indígenas que estejam nas cidades e apresentem sintomas associados à covid-19 sejam submetidos a exames. Se não houver confirmação da doença, deveriam voltar rapidamente à aldeia, reduzindo as chances de contágio na cidade.
Por ora, no entanto, a Secretaria Especial de Saúde Indígena não dispõe de testes para detectar a covid-19, segundo profissionais de saúde entrevistados pela BBC News Brasil na condição de anonimato.
Uma servidora que atua em Mato Grosso diz que também faltam máscaras e outros itens básicos proteção para lidar com eventuais casos nas aldeias.
Ela afirma que procedimentos médicos não urgentes entre indígenas foram suspensos, e que só pacientes em estado grave estão sendo enviados a hospitais, para reduzir os riscos de contágio. Os demais casos estão sendo tratados nas aldeias.
Diante da falta de recursos e ações governamentais para enfrentar a pandemia, ela afirma que servidores estão se organizando por conta própria, arrecadando entre conhecidos itens de limpeza e alimentos para enviar às comunidades.
Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, não há infecções confirmadas do novo coronavírus entre indígenas.
Em São Gabriel da Cachoeira, município amazonense na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, onde a maioria da população é indígena, órgãos sanitários aguardam o resultado de um exame em uma paciente não indígena que chegou de Manaus recentemente.
Até esta terça-feira (24/03), a capital amazonense tinha 45 casos confirmados da doença.
Não há em São Gabriel Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) nem respiradores mecânicos, o que obrigaria o deslocamento de pacientes em estado grave até Manaus, a mil quilômetros de distância por via fluvial.
Marivelton Baré, diretor presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), baseada em São Gabriel da Cachoeira, diz que as comunidades da região estão em pânico.
Ele diz que, na semana passada, a prefeitura se comprometeu a proibir a chegada de embarcações, principal meio de acesso à cidade, mas que, mesmo assim, um barco com cerca de cem passageiros aportou na última segunda-feira (23/03).
Baré afirma ainda que, embora o governo federal tenha ordenado o fechamento das fronteiras na semana passada, continua a haver trânsito de venezuelanos e colombianos na região.
Segundo Baré, há especial preocupação com indígenas das etnias hupdah e yuhupdeh que passam vários meses do ano acampados à beira do rio Negro, na área urbana de São Gabriel da Cachoeira.
O fluxo de membros dessas etnias aumentou nos últimos anos à medida que foram cadastrados pelo programa Bolsa Família e passaram a se deslocar até a cidade para receber o benefício.
Oriundas de comunidades que ficam a alguns dias de barco da sede de São Gabriel, várias dessas famílias têm dificuldades para comprar o combustível necessário para a viagem de volta e acabam permanecendo longos períodos na cidade. Com isso, deixaram de cultivar suas roças e passaram a depender do alimento comprado nas cidades.
Membros de várias outras etnias da região também costumam visitar São Gabriel no período de liberação do Bolsa Família, período em que há grande aglomeração nas ruas do município.
Baré diz que será preciso pensar em formas de levar alimentos às aldeias para que os indígenas não precisem visitar a cidade durante a pandemia. O desafio se aplica a várias outras regiões do Brasil onde indígenas costumam frequentar cidades para suprir necessidades básicas.
Questionada pela BBC News Brasil sobre a ameaça de falta de alimentos nas comunidades durante a pandemia, a Funai não citou ações específicas para lidar com a questão.
Em nota, o órgão disse apenas que “está ciente da situação de maior vulnerabilidade dos diversos povos indígenas do Brasil” e vem articulando ações com outros órgãos, como o Ministério da Cidadania e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), sobre o tema.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) tampouco se pronunciou sobre os temores de desabastecimento nas aldeias.
Em nota à BBC News Brasil sobre sua posição diante da pandemia, a secretaria diz ter produzido “uma série de documentos técnicos para que povos indígenas, gestores e colaboradores fossem orientados a adotar medidas de prevenção da infecção pelo coronavírus”.
Segundo a Sesai, “todas as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena já receberam capacitação para atuar em eventuais casos suspeitos de covid-19”.
O órgão diz ainda que vem orientando os indígenas a se deslocar à cidade somente “em caso de extrema necessidade”, e que, ao retornar às aldeias, “devem ficar atentos às medidas de higienização recomendadas”.
O temor de desabastecimento em meio à pandemia tem feito muitas comunidades indígenas promoverem campanhas para arrecadar recursos.
É o caso, por exemplo, da comunidade Mendonças do Amarelão, do Rio Grande do Norte, e do povo Maxakali, de Minas Gerais. Ambos divulgaram no WhatsApp contas bancárias para receber doações.
“Estamos com medo de ir na cidade, por isso eu peço a cada um de vocês colaboração para a gente comprar cesta básica”, diz uma mensagem divulgada por Isael Maxakali, da etnia de Minas Gerais.
Para o bispo Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica que atua junto a dezenas de povos indígenas brasileiros, as ações do governo federal para proteger as comunidades da pandemia estão “muito aquém do necessário”.
“Temos a preocupação de que o governo aproveite essa situação para retirar toda a assistência das comunidades, estabelecendo um caos completo e visando a retirada dos indígenas dos seus territórios”, diz Paloschi.
Ele afirma que, sem esperança de serem acudidos pelo governo, indígenas de várias regiões do país têm sido obrigadas a recorrer à solidariedade de outros cidadãos.
“Nesta pandemia, não há plano do governo para lidar com as necessidades mais básicas não só das populações indígenas, mas também dos mais pobres e vulneráveis”, critica.
O primeiro registro do coronavírus no Brasil foi em 24 de fevereiro. Um empresário de 61 anos, que mora em São Paulo (SP), foi infectado após retornar de uma viagem, entre 9 e 21 de fevereiro, à região italiana da Lombardia, a mais afetada do país europeu que tem mais casos fora da China.
De acordo com o Ministério da Saúde, o empresário de 61 anos tinha sintomas como febre, tosse seca, dor de garganta e coriza. Parentes dele passaram a ser monitorados. Dias depois, exames apontaram que uma pessoa ligada ao paciente também estava com o novo coronavírus e transmitiu o vírus para uma terceira pessoa. Todos permaneceram em quarentena em suas casas, pelo período de, ao menos, 14 dias.
Após o primeiro caso, outros diversos registros passaram a ser feitos no Brasil. Muitos vieram de países com inúmeros casos do novo coronavírus, mas depois foram registrados casos de transmissão local e, por fim, comunitária.
Duas semanas depois, foi anunciado que o empresário de 61 anos está curado da doença provocada pelo novo coronavírus.
A principal recomendação de profissionais de saúde que acompanham o surto é simples, porém bastante eficiente: lavar as mãos com sabão após usar o banheiro, sempre que chegar em casa ou antes de manipular alimentos.
O ideal é esfregar as mãos por algo entre 15 e 20 segundos para garantir que os vírus e bactérias serão eliminados.
Se estiver em um ambiente público, por exemplo, ou com grande aglomeração, não toque a boca, o nariz ou olhos sem antes ter antes lavado as mãos ou pelo limpá-las com álcool. O vírus é transmitido por via aérea, mas também pelo contato.
Também é importante manter o ambiente limpo, higienizando com soluções desinfetantes as superfícies como, por exemplo, móveis e telefones celulares.
Para limpar o celular, pode-se usar uma solução com mais ou menos metade de água e metade de álcool, além de um pano limpo.
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Coronavírus pode dizimar povos indigenas, diz pesquisadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU