07 Março 2020
"Em meio às discussões sobre a criação de outras formas de luta pela universidade pública, defendem a greve por um motivo simples: é preciso tempo para se organizar, sobretudo quando o trabalho universitário, cuja intensificação é generalizada, se desenvolve em situação mais gritante para quem faz parte da numerosa classe de precarizados e precarizadas", escreve Carolina Catini, professora do departamento de Ciências Sociais da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, coordena a Linha de Pesquisa Trabalho e Educação no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. Entre suas obras publicadas, destacamos Privatização da educação e gestão da barbárie (São Paulo: Edições Lado Esquerdo, 2017).
Em janeiro de 2020 um coletivo de trabalhadoras e trabalhadores precários do ensino superior e da pesquisa de Paris convoca à solidariedade de docentes titulares e estudantes para combater a destruição da universidade pública. [1] Defendem a greve como forma de luta, desde que ela seja realmente realizada pela paralisação de todas as atividades de trabalho: “ou a fazemos ou a impedimos”. Em meio às discussões sobre a criação de outras formas de luta pela universidade pública, defendem a greve por um motivo simples: é preciso tempo para se organizar, sobretudo quando o trabalho universitário, cuja intensificação é generalizada, se desenvolve em situação mais gritante para quem faz parte da numerosa classe de precarizados e precarizadas.
Em janeiro, momento em que precários elaboram a chamada de solidariedade e ação conjunta, uma nova onda de mobilização pela universidade se inicia junto com a mobilização já em curso, das lutas contra a reforma da previdência na França, que envolveu grandes manifestações em diversas cidades dentro de uma longa greve iniciada em 5 de dezembro de 2019. Às universidades e laboratórios de pesquisa se impõe a necessidade de organização também porque é colocada em pauta a discussão da Lei de Programação Plurianual da Pesquisa (Loi de Programmation Pluriannuelle de la Recherche – LPPR).
A LPPR é fundamental porque propõe mudanças radicais no funcionamento da pesquisa e do ensino superior. Mas mesmo sem ela, alerta o coletivo mencionado, “a situação já é catastrófica, o sistema já é "desigual e darwinista". [3] Faz-se referência aqui à polêmica declaração do presidente do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), Antoine Petit, que disse, em novembro de 2019, que a França precisa de “uma lei ambiciosa e desigual - sim, desigual, uma lei virtuosa e darwinista -, que incentive os cientistas, equipes, laboratórios e estabelecimentos a obterem um melhor desempenho em escala internacional”. [4]
E é evidente que é exatamente disso que se trata a lei da pesquisa em questão: da consolidação de um sistema desigual pela submissão completa das atividades de ensino e pesquisa à competição e à concorrência sem limites. Ao contrário de responder à demanda de estabilidade no emprego na Universidade, a LPPR amplia as possibilidades de contratos temporários, de acordo com a conquista de financiamentos de pesquisa, nos “contratos por projetos” e avaliação constante das “performances”.
De acordo com os textos de coletivos e sindicatos, [5] a elaboração da lei parte de um diagnóstico que considera o sub financiamento público da pesquisa e a baixa remuneração para atividades de ensino e pesquisa, notadamente dos ingressantes na carreira, que tem como consequência uma redução no número de doutorandos e doutorandas. A baixa remuneração leva a uma queda no recrutamento de pesquisadores e pesquisadoras e crescimento de editais de projetos de pesquisa. Em conjunto com tudo isso, a diminuição de postos de trabalho de funcionários técnicos e administrativos nas universidades, aumenta a carga de trabalho de docentes e pesquisadores/as.
Como se tais elementos fossem absolutamente externos à política educacional e ao Estado, a proposta de solução para tal diagnóstico é o aumento do financiamento da pesquisa a custo da concorrência generalizada.
O novo tipo de contrato que se propõe não é apenas temporário – trata-se de um contrato temporário por projeto de pesquisa, o que torna intermitente o trabalho e precário o vínculo, não apenas com a universidade, mas também com estudantes e com a formação para a pesquisa científica. Não é por acaso que o cartaz diz: “Na faculdade, nós somos formados por pesquisadores. Quando eles não estão procurando os financiamentos”. O trabalho na universidade se submete ao empreendedorismo por projetos, a captação e gestão de recursos, e os resultados medidos pela sua aplicabilidade e rentabilidade. E como os financiamentos públicos estão em queda, se propõe o aumento das parcerias público-privadas e o uso de recursos privados para financiar pesquisa. Seja estatal ou empresarial, a avaliação da pesquisa é feita por organizações externas às universidades e laboratórios de pesquisa, com orientação acentuada para a competitividade econômica. A Coordenação Nacional de Faculdades e Laboratórios de pesquisa em luta considera a lei mais um passo no avanço da mercantilização da Universidade que as políticas neoliberais têm imposto, junto a essa complexidade de diversas reformas e mudanças estruturais. [6] Além do “coquetel” de reformas – da lei trabalhista, da reforma da previdência, do seguro-desemprego, da lei da mudança da função pública, que afetam a todos e todas, as reformas da educação básica e superior alteram drasticamente a forma e função da educação pública no país. A LPPR prevê o aumento de 9% do trabalho de técnicos administrativos, sem aumento salarial. A mudança na avaliação da passagem do ensino médio para o ensino superior (o famoso BAC e PacourSup) e a cobrança e aumento de taxas para ingressar na universidade pública, que afeta sobretudo estudantes não europeus e das classes populares, deixa ainda mais clara a intenção de criar um sistema desigual. Vale dizer que para não europeus a taxa cresceu 1600% neste ano de 2019-2020. [7] E é preciso aqui observar que a discussão de cobrança de taxas, que começa como um simples ato de “contribuição” daqueles que – em tese – podem pagar, pode, e deve mesmo, conduzir a uma privatização do serviço em termos clássicos, estabelecendo relação de troca mercantil pelo serviço educativo.
A falta de bolsas de estudos para estudantes de pós-graduação desmonta um sistema da produção da pesquisa e formação de pesquisadores e pesquisadoras e no caso de doutorados/as os obriga a aceitar o trabalho precário nas faculdades. A denúncia no cartaz ao lado demostra essa gravidade: “Professores/as precários dão cursos, buscam financiamentos e às vezes tentam terminar sua tese, todos na expectativa de usar o seguro-desemprego”.
Parece evidente que a mudança em curso cria a cisão entre ensino e pesquisa, alterando radicalmente a formação universitária. Mais claro ainda é o projeto de criar pequenas ilhas de excelência e produção de pesquisa com recursos públicos e privados, mas submetidos à necessidade de aplicação e rentabilidade econômica, o que elimina a autonomia da pesquisa. Ao que tudo indica, a diferenciação dos tipos de “direito à educação” se amplia e cria-se um novo padrão de desigualdade no bojo do processo de fim da universalidade.
No último dia 5 de março, 108 faculdades e 268 laboratórios de pesquisa paralisaram suas atividades. Mas não só: 134 revistas, 46 Seminários, 30 coletivos de professoras e professores precários espalhados pelo país, 54 avaliadores e avaliadoras do HCERES (Alto Conselho de Avaliação da Pesquisa e do Ensino Superior).
A Coordenação Nacional de Faculdades e Laboratórios de Pesquisa Em Luta, em seu chamado para a manifestação de 5 de março, avalia que depois da grande greve de mais de dois meses contra a reforma da previdência se torna ainda mais necessário que a luta da educação não conte apenas com paralisações espaçadas, pois com a luta cada vez mais distante no tempo, não se chegará à vitória. [9]
O coletivo de precários e precárias de Paris acha fundamental considerar que o governo se manteve indiferente mesmo diante da imensa greve contra a reforma da previdência. Embora tenha se anunciado que a idade pivô não será alterada nos próximos anos, e a aprovação da lei esteja sendo atrasada, a reforma da previdência continua em andamento com as propostas de mudança da contagem de pontos e de capitalização. Alguns pensam mesmo que a tática – greve, bloqueios, manifestações – não seja mais suficiente, mesmo que massiva. Dessa forma, as propostas de ação se multiplicam: elas vão desde aquelas mais conhecidas entre nós, como reter as notas e não permitir o fluxo universitário, mas vão até propostas de demissão de cargos de gestão universitária e laboratórios de pesquisa, passando pelo boicote dos sistemas de avaliação, paralisação das atividades de pesquisa – mesmo a realização dos trabalhos de campo e entrega de relatórios de pesquisa, supressão do alimento virtual dos índices de produtividade, a suspensão de todos os chamados de publicação e congressos, pelo envio de textos aleatórios às “revistas predatórias”, animar e contribuir com as universidades populares e por aí vai. [10]
Que sobre toda essa tentativa de destruição da universidade – pelo menos dessa forma que conhecemos e fazemos existir com nosso trabalho – se encontrem caminhos para a resistência e criação de alternativas. Pois é certo que como dizem trabalhadores e trabalhadoras precários do ensino e da pesquisa, “é hora de agir à altura da urgência”. [11]
[1] Disponível aqui.
[2] Conferir os números aqui.
[3] Disponível aqui.
[4] Conferir uma citação, com referência completa, em texto do site Savouns L’Unniversité, disponível aqui.
[5] Disponível aqui, aqui, aqui, e aqui.
[6] Disponível aqui.
[7] Disponível aqui.
[8] Disponível aqui.
[9] Disponível aqui.
[10] Disponível aqui.
[11] Disponível aqui.
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Hora de agir à altura da urgência: contra um projeto desigual e darwinista de pesquisa e de universidade pública na França - Instituto Humanitas Unisinos - IHU