22 Outubro 2019
O julgamento ocorre na cidade de Marabá/PA, terça feira, no dia 22. Movimentos sociais prometem ato de apoio ao educador e documentarista.
Na manhã do dia 22, na cidade de Marabá, sudeste do Pará, o professor Evandro Medeiros, da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), irá a julgamento. O “crime”: ter participado, por alguns minutos, de um ato na periferia do município, em solidariedade às famílias que tiveram as vidas destruídas com o rompimento da barragem da mineradora Vale, em Mariana/MG, no ano de 2015. O caso do professor representa uma conta de um rosário perto de 200 pessoas que a empresa processa na região de Carajás. O professor correu o trecho desde cedo. Trabalhou vendendo banana e frango em ruas e feiras, até alcançar a universidade pública, e cursar Pedagogia. É professor da Unifesspa desde 2002, com forte atuação junto aos movimentos camponeses numa região onde mais se mata dirigente e sem terra no país. Além de professor, Medeiros é documentarista. A titular da 1ª Vara Criminal, Renata Guerreiro Milhomem de Souza, julgou procedente as acusações, após o educador ter sido absolvido na Cível. Para ele o processo em que é alvo possui a verve de um autentico conto kafkaniano. Apesar da conjuntura distópica, o professor acredita que a justiça prevalecerá.
A entrevista é publicada por Blog Furo, 19-10-2019.
Professor, o senhor pode falar um pouco sobre a sua trajetória de vida?
Cresci na estrada. Sou filho de uma família pobre. Meu pai era funcionário do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER). Era tratorista. Trabalhou na abertura da Transamazônica, Belém-Brasília. Minha mãe era costureira, cozinheira. Eles se separaram quando eu tinha sete anos. Fui morar com tios em Paragominas [região marcada pela exploração madeireira e pecuária], depois de já ter morado em Itaituba [área de garimpo a oeste do estado] e Belém. Mas, Mãe do Rio é a minha cidade de nascimento. Região de São Miguel do Guamá, perto da capital. Sou um filho do trecho. Em Belém morei no boêmio bairro da Pedreira, na Guanabara e Cidade Nova. Estudei sempre em escola pública. Vendi banana na rua, frango na feira da Batista Campos, picolé em campo de futebol, etc. Cursei Pedagogia na UFPA, trabalhei como professor do ensino fundamental no bairro do Distrito Industrial, na periferia de Ananindeua. Fui educador de rua na Praça da República e no Ver o Peso, trabalhando com crianças em situação de risco social, vítimas de violência e em situação de prostituição. Atuei como assessor de desenvolvimento comunitário junto à população ribeirinha das ilhas que fazem parte de Belém, como Cotijuba, Cumbú e Jutuba. Também trabalhei como alfabetizador de adultos. E em 2000 fui cursar mestrado em Florianópolis, na UFSC. O foco da pesquisa era educação e movimentos sociais. Em 2002 fiz concurso para professor do campus de Marabá da Universidade Federal do Pará (UFPA), que em 2013 virou a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Na universidade atuo com formação de professores nos cursos de licenciatura, em especial na área da Educação do Campo. Agora estou afastado para cursar o doutorado em educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bem, em resumo, é esta minha trajetória profissional e como educador. Sempre alinhado à educação dos setores populares e a luta por direitos mobilizada pelos movimentos sociais, em especial com os movimentos camponeses, MST a Federação de Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri). Além de professor, desde 2006 tenho atuado também como documentarista. Aqui na região fizemos documentários sobre várias histórias envolvendo a luta camponesa, sobre a trajetória de dirigentes da luta pela terra assassinados, sobre a Guerrilha do Araguaia, e claro, sobre a mineração, sobre os impactos das atividades da Minera Vale na região. Creio que essa ação tenha incomodado a empresa.
O que é a região de Carajás?
Vivemos numa região marcada por grandes contradições de toda ordem. É uma região rica do ponto de vista de minérios, principalmente. O crescimento populacional da região deve-se a esta especificidade. Bem como ao processo de integração física da região, implantado durante a ditadura civil-militar (1964-1985), que advogava que a Amazônia era um vazio demográfico. E que a terra aqui abundava. O sul e o sudeste paraense representam o lócus onde a luta pela terra se deu de forma mais violenta no país. E isso vem se perpetuando. Aqui foi palco do Massacre de Eldorado, em 1996. Mais recentemente tivemos o Massacre de Pau D´arco. Se por um lado a disputa entre posseiros e fazendeiros pela terra marca a história dessa região, é preciso ter claro que após a descoberta da província mineral nos anos de 1950, essa disputa se inicia também pelo subsolo, demarcando a existência de uma disputa por território mineral, em que a Mineradora Vale é o principal agente. Penso que a Guerrilha do Araguaia (1968-1972), mais que desejar derrubar a ditadura, contemplava a preocupação com a riqueza mineral da região e o seu destino. Os países centrais dessa época tinham conhecimento dessa riqueza mineral. Sabiam do papel estratégico dela na geopolítica, em planos de desenvolvimento de tecnologias militares, de comunicação e da informação. Desde sempre a região de Carajás mobiliza interesses internacionais. Isto explica a presença aqui de tantos quarteis do Exército, o fato de ser de interesse da Segurança Nacional. Existe uma acirrada corrida pelo controle da região. Por algum tempo as disputas pela terra, eclipsaram as disputas territoriais pelo controle dos territórios minerais. No momento atual, agudizasse a exploração de ferro, níquel, cobre, ouro, e tantos outros minérios. Esta dinâmica afronta as realidades de indígenas, de camponeses e de quilombolas. Os que ousam atravessar o caminho das grandes corporações são processados, e quiçá, correm o risco de morte. É assim que opera o capital.
O que representa a Vale no estado do Pará e em Carajás em particular?
É a Mineradora Vale quem tem a hegemonia política e, de certa forma, governa o estado e a região. Os interesses da mineração não sofrem nenhum tipo de contestação na região. Recentemente um juiz exigiu que a empresa reconhecesse o risco de rompimento de duas barragens da aqui na região. Mas, isso é uma exceção. As atividades da Vale provocam vários impactos socioambientais. Os “investimentos” que ela realiza em escolas, estradas e outras infraestruturas, são insignificantes diante dos danos e expropriações da riqueza mineral que ela realiza. O conjunto da sociedade, governantes e políticos silenciam. É público que ela financia as campanhas de todos os partidos. Aqui sempre que setores atingidos judicilizam a empresa, não tarda os advogados desistem. Literalmente, ela represa qualquer contestação. É certo que existem os grupos de políticos e frações que controlam parcelas de poder, e sobre eles, a Mineradora Vale impera. O calculo que a gente pode fazer é que tudo isso representa o poder financeiro da corporação.
O processo em que o senhor é alvo, bem como outras pessoas que atuam em defesa do meio ambiente e dos diretos humanos, e que a Vale representou judicialmente é digno de um conto de Gabriel Garcia Márquez?
A obra de Garcia Márquez é incrível e, se a gente considerar que ele trabalha com o realismo fantástico, e que os seus contos se inspiram em realidades de pessoas comuns e suas tragédias, eu diria que sim. Nossa região é marcada por aridez social ímpar por conta do avanço do capital sobre esta fronteira. Avanço que engendrou tragédias pessoais e coletivas de todos os tipos. Quando uma empresa do porte da Vale se empenha em processar pessoas por lutarem por seus direitos e a empresa é colocada como vítima, estamos diante de conteúdos de realidade que poderiam ser certamente trabalhados por “Gabo”, menos que mágico, eu diria, que numa perspectiva do realismo trágico na verdade. Por outro lado, avalio que o momento pelo o que eu tenho passado nesses últimos três anos, se aproxima mais da obra do Kafka, lembrando que Gabriel Garcia Márquez se inspirava nele, em partícula na obra Metamorfose. Este ambiente dessa peleja jurídica que vivo tem a cara da obra O Processo. Aquela em que um dia a pessoa acorda, e se ver processada sem saber o motivo. E o processo dura uma longa temporada. O conto apresenta o personagem num ambiente de angústia pelo fato dele não saber o que crime que cometeu. É um ponto de vista trágico, que provoca o leitor a refletir sobre como aquilo um dia pode acontecer com ele. Estamos diante de uma sociedade em que as coisas foram tomando um formato em que o maior crime é o fato de você assumir posturas humanistas. O fato de você ser crítico ante as violências e se colocar alinhado aos injustiçados. O Processo relata isso, uma sociedade onde os instrumentos jurídicos e burocráticos nos colocam em risco da perda dos direitos e liberdade por tentarmos defender e vivenciar os nossos direitos e liberdade! O que ocorre é uma inversão dos valores. Estamos diante algo ultrajante em nossas vidas. No meu caso, o crime reside em ser crítico, denunciar as arbitrariedades cometidas por uma empresa, e lutar por afirmar melhores condições de vida para todos que habitam a região em que esta empresa explora as riquezas.
O senhor cursa doutorado na Federal da Paraíba, tem 3 filhos, trabalha numa região super delicada, marcada pela brutal disputa pela terra, como isso tudo tem afetado a sua vida, o seu trabalho?
Tenho três crianças. Um de 14 anos, um de 11 e uma de 2 anos. Miguel, Joaquim e Aimée. Em 2015 e 2016 os meninos sentiram muito a barra pesada do processo. Todos os dias chegavam da escola perguntando o que estava acontecendo. Na escola os colegas perguntavam por que o pai deles estava sendo processado pela Vale, se eu iria ser preso, quando eu seria preso etc. Esse ambiente não é legal para as crianças. Neste mesmo período descobri que sou hipertenso, me envolvi em acidentes de carros por não conseguir me concentrar direito nas atividades laborais. Sempre fui muito ativo na universidade e na produção audiovisual. O processo atrapalhou essas atividades. Vivi num crescente quadro de estresse. Daí em me reportar ao livro do Kafka. Não confundir com a comida, rs. O sentimento de impotência e indignação provoca raiva e estresse. Aqui sempre fui engajado com os movimentos populares e sociais. Vivenciei execuções de sindicalistas e de alunos meus. Como o caso da Maria do Espírito Santo, do Projeto de Assentamento Praia Alta Piranheira, no município de Nova Ipixuna, junto com o esposo, José Cláudio. Ela era minha aluna, estudante do curso de Pedagogia, e ele parceiro de atividades na universidade. O doutoramento foi uma oportunidade em sair um pouco do meio do furacão. Uma necessidade de respirar e deslocar os meninos para outros ambientes. Também foi a oportunidade de pensar academicamente sobre essas situações. Fiquei uns dois anos fora. Agora estou na região outra vez, para atividade de pesquisa de campo.
Quem são os advogados que defendem o senhor, e qual a sua expectativa em relação ao desfecho do processo?
Os meus advogados fazem parte do quadro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). Não tenho condições de bancar esse processo, e não teria confiança em outros advogados que não fossem esses ativistas. E, até pelo fato da Mineradora Vale ter a tradição de comprar advogados da região, não estaria seguro com outros advogados. José Batista Afonso (CPT) coordena a equipe em parceria com Marco Polo (SPDDH). São notórios em defesa das lutas populares. Tenho total confiança. O caso na vara cível fui absolvido. Os advogados conseguiram demonstrar que as acusações da Vale não tinham fundamento. Ganhamos em primeira e na segunda instância. Transitado e julgado. Agora estamos na batalha criminal pelo fato do Ministério Público ter acatado as acusações da Vale. Não sabemos quais são a novas acusações que a empresa alega. Estamos estudando o processo. A juíza não aceitou o pedido de arquivamento feito pela defesa com base na sentença do processo da vara cível. Agora estamos indo para o julgamento no dia 22 de outubro. Vamos com a mesma coragem e tranquilidade do primeiro processo. A gente sabe que há uma inversão de papeis, onde as vítimas, os processados, que somam quase 200, estão sendo colocados como réus por defenderem a vida em sua plenitude. Apesar da distopia reinante nos campos da política e da justiça, a expectativa é que se faça justiça. Sendo absolvido, a gente moverá ações contra a Mineradora Vale por danos de toda ordem. Bom seria que os advogados dessa região não realizassem um grande levante contra os abusos da mineradora, cujas atividades impactam em especial comunidades quilombolas, indígenas e camponesas. A batalha não encerra aqui, no meu caso.
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Vale: professor vai a julgamento por ato em solidariedade às famílias de Mariana/MG - Instituto Humanitas Unisinos - IHU